NOMINALIZAÇÃO, MEMÓRIA DISCURSIVA
E ARGUMENTAÇÃO

Hilda de Oliveira Olímpio (UFES)

 

Introdução

A meta deste trabalho é mostrar como a estratégia de nominalização cria objetos-de-discurso(e não referentes previamente definidos) que se alimentam da memória discursiva dos interlocutores, a qual constitui ponto fundamental para a direção argumentativa dos textos com discurso opinativo. Apoiando-se num quadro teórico já definido pela lingüística interacional (Mondada & Dubois, 1995; Koch & Marcuschi, 1998) em associação com o conceito de pressuposição, oriundo da semântica argumentativa (Ducrot, 1978 e 1984), esta análise busca explicar a ocorrência de estruturas resultantes de nominalização como uma estratégia socialmente trabalhada, dependente de discursos anteriores sobre os quais os interlocutores atuam. Nessa linha de investigação, a noção de contexto abarca a memória de lugares discursivos prévios, que alimentam novos discursos, numa dialogia entre um já-dito e um novo dizer. Os dados reforçam essa proposta, sugerindo que este é um veio rico a ser explorado.

 

Nominalização e referenciação

No tratamento da referência, muitos estudiosos têm apontado as descrições nominais definidas como expressões típicas do processo discursivo de referenciação, admitindo que tais formas têm a função de remeter “a elementos presentes no co-texto ou detectáveis a partir de outros elementos nele presentes” (Koch, 2004b: 244), sendo, portanto, formas nominais anafóricas. Inserida nesse quadro, a estratégia de nominalização é um campo fértil e aberto a diferentes reflexões. Na opinião de Zamponi (2003: 199),

As nominalizações talvez constituam o fenômeno anafórico que mais deixa à amostra, no texto escrito, os bastidores da construção de objetos-de-discurso pela atividade referencial. Com efeito, quando um sintagma nominal transforma em referente o processo denotado por uma proposição, que, obviamente, não tinha esse estatuto anteriormente, testemunha-se claramente a operação discursiva de referenciação. Não é à toa que a própria denominação de processo – nominalização - indica... um processo.

É a partir do conceito de referenciação como criação de objetos-de-discurso que pretendemos discutir aqui a estratégia discursiva de nominalização, particularmente o seu papel nas cadeias referenciais presentes nas superfícies dos textos tomados para investigação. A análise é desenvolvida basicamente a partir de ocorrências colhidas no jornal A Gazeta – Vitória (ES). Alguns exemplos, entretanto, não foram transcritos ipsis litteris; foram formulados e contextualizados a partir da “memória” do jornal. Nesse caso, diferentemente dos exemplos fielmente transcritos (todos datados), não há indicação de data.

A estratégia de referir por meio de um sintagma nominal definido, dando status de nome a uma seqüência textual com outro status categorial (geralmente uma proposição), é um recurso de progressão textual muito comum na língua portuguesa e, por esse viés, tem recebido grande atenção de especialistas. No Brasil, essa foi a tônica dos primeiros estudos de lingüística textual que abordaram o fenômeno, rotulado de nominalização e visto, sobretudo, como recurso de coesão referencial nas cadeias anafóricas (Koch, 1984 e 1989). A partir da adoção de uma perspectiva sócio-interacional no trabalho com textos, a nominalização passou a ser encarada como estratégia argumentativa de organização textual e como expressão de polifonia, portanto como um processo mais ligado à dinâmica textual-discursiva (Koch, 1992).

Na tentativa de aclarar melhor questões relativas à cadeia anafórica, alguns autores têm distinguido as noções de retomar, remeter e referir, salientando que o fenômeno da anáfora não implica retomada nem relação correferencial, do mesmo modo que “a continuidade referencial não implica referentes sempre estáveis nem identidade entre referentes” (Koch, 2004a: 60). Essa ressalva aponta para a necessidade de se buscar nas ações sócio-interativas e cognitivas explicação para a organização intratextual, particularmente para os casos de anáfora indireta (Marcuschi, 2003 e 2005). Avançando nessa direção, procuramos, na análise da nominalização, relacionar os fenômenos de “retomada” anafórica a enunciados pressupostos na organização interna dos textos, mas não ali presentes como seqüências formais.

Isso nos levou a admitir cadeias discursivas ligando a organização interna dos textos, muitas vezes encabeçados por uma forma nominal anafórica, a um discurso anterior que, embora fora da estruturação intratextual, participa, como memória, de sua organização. Para dar conta desses dados, lançamos mão do conceito de pressuposição, como revisto por Ducrot (1984) para explicar a polifonia presente nos enunciados. Esse recurso permitiu imprimir à memória discursiva um referencial analítico de maior poder explicativo. Possibilitou, ainda, evidenciar a fragilidade das fronteiras entre o intralingüístico e extralingüístico, uma vez que instâncias pragmáticas e culturais, discursivamente partilhadas, presidem a utilização da linguagem. E são essas instâncias “externas” que explicam tanto a escolha dos núcleos nominais quanto a direção argumentativa que lhes imprime o produtor do texto.

Quanto à escolha do determinante – artigo definido ou demonstrativo – esta não foi uma questão priorizada nesta pesquisa. Observou-se, entretanto, que as construções nominais anafóricas que apontam para discursos “externos” ao texto, portanto as anáforas aqui denominadas de memoriais, constituem contexto privilegiado para o definido, em comparação com o demonstrativo, só aceito em condições muito específicas de focalização de um referente dentro de um conjunto maior de elementos. Tal restrição aponta (como já sugeriu Ducrot, 1977) para uma espécie de anáfora in absentia - no caso da determinação com o definido -, e reforça a linha de reflexão de estudos anteriores, que associam o demonstrativo ao foco de atenção dos interlocutores (Zamponi, 2001) ou à condição de saliência do nome focalizado (Cavalcante, 2004). Esta oposição não será aprofundada aqui.

Um dado que – desde cedo – nos chamou a atenção, sobretudo nos editoriais de A Gazeta – Vitória/ES (de onde estraímos a maior parte dos exemplos), foi a ocorrência de textos encabeçados por formas nominais anafóricas. Exemplos típicos desse “encabeçamento” poderiam ser, nos dias de hoje, construções nominais como as denúncias de Roberto Jefferson, a distribuição do mensalão, o depoimento de Delúbio, a existência de caixa-dois, o superfaturamento nos contratos públicos, a renúncia de José Genoíno, a reação do presidente, a existência de corrupção...

Ora, não havendo no cotexto uma seqüência lingüística (uma âncora) à qual a construção nominal anafórica possa ser relacionada (mesmo indiretamente, por inferência), como explicar essa anáfora? Como explicar que uma expressão referencial nova no texto possa ser veiculada como já sendo conhecida? Eis a questão.

Como se adiantou na introdução, o quadro teórico inicialmente escolhido como posto de observação dos dados foi o definido por Mondada e Dubois (1995), para quem a referenciação, aqui incluída a nominalização, é um fenômeno discursivo. Entretanto, a partir de alguns pontos de interrogação surgidos no decorrer da análise, procuramos o auxílio de outros referenciais teóricos, externos a esse quadro inicial (Ducrot, 1978 e 1984).

 

Nominalização e memória discursiva

Inegavelmente, a nominalização é um recurso coesivo dos mais usados entre as estratégias de remissão e progressão textual. Seja o exemplo:

Dois menores invadiram ontem à tarde uma casa em Cariacica, onde se realizava uma festa de aniversário, e roubaram vários pertences das pessoas presentes. A invasão provocou tanto tumulto que ninguém teve a iniciativa de chamar a polícia para investigar o roubo.

Veja-se que a invasão retoma a proposição centrada no verbo invadir, e o roubo retoma a proposição centrada no verbo roubar. Nesse contexto, cada uma das formas nominais anafóricas, retomando uma informação já explicitada, constitui um novo tópico, sobre o qual se assenta a progressão textual. Este uso é corrente nos discursos jornalísticos, tanto nas notícias quanto nos editoriais e artigos de opinião. Entretanto, mais do que um instrumento de progressão referencial, a nominalização é uma estratégia de referenciação e de textualização ancorada na memória discursiva, esta pressupostamente partilhada pelos interlocutores. Como estratégia de textualização, retoma e trabalha outros discursos, criando, com isso, a imagem de um continuum discursivo.

E não foi difícil encontrar, tanto nos editoriais quanto nos artigos de opinião examinados, “encabeçamentos” definidos, que apontam para um discurso anterior, pressuposto:

Repercute intensamente a visita que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez na quinta-feira ao Espírito Santo. (26-02-2005)

O aumento da carga tributária brasileira, que o Governo tantas vezes negou, agora é reconhecido oficialmente. (14-03-2005)

O falecimento de João Paulo II significa para a humanidade a perda de um de seus maiores líderes, em todos os tempos. (03-04-2005)

A escolha do novo papa é uma resposta a problemas enfrentados pela Igreja Católica na Europa, disse ontem o Arcebispo de Vitória, dom Luis Mancilha Vilela. (20-04-2005)

Do ponto de vista semântico, a nominalização veicula um conteúdo pressuposto, subjacente (e “exterior”) ao que é dito no evento enunciativo. Assim, a morte do papa pressupõe que o papa morreu; a queda do dólar pressupõe que o dólar caiu ou está caindo; a denúncia de corrupção pressupõe que alguém denunciou a existência de corrupção; a reação do presidente pressupõe que o presidente reagiu de algum modo. Pressupor, no sentido aqui defendido, é apontar para um discurso anterior, que se inscreve no evento enunciativo como um preconstruído (Henry, 1992). A ilusão de objetividade referencial, advinda dessa estratégia, decorre exatamente do fato de que os referentes (resultantes do processo de nominalização) foram construídos fora, em um discurso anterior, de responsabilidade pública.

Ora, dentro da concepção Bakthiniana de dialogismo, todo enunciado é uma resposta a um já-dito, com o qual entra em relação na cadeia infinita dos discursos. Admitindo essa dialogia, vários estudiosos têm associado esse já-dito à noção de pressuposição, de interdiscurso, ou de memória discursiva. Segundo Ducrot, para tratar adequadamente a argumentação é preciso admitir que o sujeito da enunciação fala sempre a partir de um “lugar comum” argumentativo (de um topos), onde um sistema comum de crenças é partilhado. É a partir desse “lugar comum” que se constroem os discursos. Passar um conteúdo sob a forma de pressuposição é, portanto, uma estratégia eficaz na formação de opinião.

Para fazer um contraponto, vamos tomar o primeiro enunciado do editorial de A Gazeta, de 21 de outubro de 2004: O Brasil fracassa em combater a corrupção. Esse modo de veicular o conteúdo dá à forma verbal fracassa o estatuto de informação da opinião defendida pelo jornal no evento da produção do editorial. Diferente seria se a formulação tivesse sido: É evidente o fracasso do Brasil em combater a corrupção. Nessa recontextualização, a forma nominal o fracasso do Brasil já pressupõe que o Brasil fracassa, tomando essa imagem de fracasso como já conhecida, veiculada publicamente. O modalizador é evidente marca o engajamento do jornal na existência dessa imagem, o seu grau de crença nesse discurso de fracasso, de conhecimento público, que vem de outro lugar.

Na perspectiva textual-discursiva, que assumimos aqui, nominalizar um predicado é, numa retomada anafórica, pressupô-lo como conhecido do interlocutor e, a partir desse pressuposto, acrescentar uma informação nova. É o que explica a diferença de estruturação entre A e B, a seguir:

A. O coordenador da campanha distribuiu mesadas aos parlamentares da base aliada e isso foi altamente criticado pelos membros da CPMI.

B. A distribuição de mesadas pelo coordenador da campanha aos parlamentares da base aliada foi altamente criticada pelos membros da CPMI.

Em A, temos duas unidades de comunicação, postas em seqüência. Primeiramente, o ato de distribuir mesadas é informado ao locutor; a seguir é acrescentada uma informação nova (um comentário) sobre esse primeiro ato. Em B, temos apenas uma unidade de comunicação. Nesse caso, a distribuição de mesadas ... é um conteúdo pressuposto que já faz parte da memória textual do leitor; a informação nova é o comentário de que tal ação foi altamente criticada pelos membros da CPMI.

Essa mesma análise proposta para B pode ser aplicada a C, logo abaixo:

C. A queda no índice de aprovação ao desempenho do presidente da República reflete equívocos do Governo na condução insatisfatória de problemas. (20-04-2005: 3).

O conteúdo presente na construção nominal destacada é, aqui também, tomado como conhecido, como pressuposto; a informação nova é encadeada a esse pressuposto, esse “já–dito em outro lugar”. Nesse caso, o enunciado, encabeçado pela construção nominal definida, é, todo ele, caracterizado como comentário, tendo na sua estruturação a combinação de conteúdos de status informacional diferente: um conteúdo comentado (de conhecimento público) e o comentário feito, de teor avaliativo (informação nova), numa dialogia entre o já-dito e um dizer, ou melhor, numa relação entre o interdiscurso e o intradiscurso, dentro de um processo discursivo virtualmente infinito. Tal conclusão pode ser depreendida, sem dificuldade, dos enunciados que acabamos de comentar. Detalhando melhor essa direção de análise, vamos tomar ainda um enunciado que, nos últimos tempos, tem rondado a memória discursiva de maioria dos brasileiros: “A existência de corrupção no congresso prejudica a imagem do país”.

Informação de conhecimento público: existe corrupção no congresso.

Informação nova: prejudica a imagem do país.

Essa estratégia de nominalizar um evento (colocando-o na posição de nome com função remissiva) faz dele o objeto de um olhar, a partir de uma perspectiva pessoal (ou sócio-ideológica) do enunciador, que quer engajar o leitor no seu ponto de vista (ou no ponto de vista de um grupo) a respeito de uma verdade pública, já sabida e admitida pelos interlocutores.

Para situar nossas colocações, vamos lembrar que o propósito do editorial não é informar fatos, eventos ou propriedades (à maneira de uma narrativa); é, antes, refletir, fazendo julgamentos de valor, sobre esses fatos, eventos e propriedades (na maioria das vezes já veiculados no próprio jornal), expressando um ponto de vista, favorável ou desfavorável.

Daí o conteúdo comentado recuar para a posição de nome, deixando livre a posição de predicado para ser preenchida por um verbo de opinião ou de argumentação do tipo: provar, confirmar, significar, implicar, convir, surpreender, interessar, merecer, ser útil, ser justo, ser fácil, ser difícil, ser possível, ser provável, ser lamentável, ser válido, ser estranho...

O editorial jornalístico é (por sua natureza efêmera e circunstancial) um gênero discursivo que se presta muito bem ao uso da estratégia de nominalização e, particularmente, desses “encabeçamentos” anafóricos. Ora, por sua própria função, o editorial comenta fatos já veiculados e, em geral, muito recentes, de modo que o redator (representante do jornal) os pressupõe conhecidos do leitor. Aliás, parece ser aceitável a hipótese de que é a memória discursiva do leitor que encaminha o editorialista na escolha de sua estratégia. Se este entende que vai passar ao leitor uma informação nova, ainda não situada na sua memória discursiva, naturalmente não a veiculará sob a forma de informação dada. Primeiro ela será introduzida como informação nova e só depois poderá ser comentada. É o que podemos constatar nos exemplos que se seguem, em que as formas destacadas introduzem um referente novo:

Um choque ocorrido na Av. Beira Mar ontem de tarde tumultuou o trânsito por mais de duas horas.

Uma manifestação de estudantes na entrada da UFES ontem de manhã provocou uma reação violenta da polícia.

Uma decisão pessoal do presidente da República, tomada na reunião da coordenação política do Governo, impediu que a educação fosse castigada pelo rigor da política fiscal. (04-05-2005)

Se, ao contrário, o redator supõe que os fatos a serem comentados estão na memória do leitor, estes são tomados como pressupostos e comentados diretamente. Daí, o uso de construções nominais definidas (veiculando informações pressupostas) ser, como já salientamos, uma estratégia bastante freqüente no “encabeçamento” de editoriais.

Se aplicarmos aos referidos enunciados (em foco na seção anterior) os testes de interrogação, negação e encadeamento, propostos por Ducrot (1984), o pressuposto permanece; só a informação nova será atingida nessa recontextualização.

Retomemos, para isso, o um dos exemplos já focalizados:

A escolha do novo papa é uma resposta a problemas enfrentados pela Igreja Católica na Europa, disse ontem o Arcebispo de Vitória, dom Luis Mancilha Vilela. (20-04-2005)

Aplicando aí o teste da interrogação:

A escolha do novo papa é uma resposta a problemas enfrentados pela Igreja Católica na Europa?...

Aplicando agora o teste da negação:

A escolha do novo papa não é uma resposta a problemas enfrentados pela Igreja Católica na Europa, ...

Nos dois contextos (interrogativo e negativo), a escolha do novo papa é um conteúdo que se mantém verdadeiro, pressuposto. Quanto ao teste de encadeamento, o próprio texto (de onde o referido enunciado foi destacado) mostra que o seqüenciamento do conteúdo na progressão textual se dá sobre a informação nova. O pressuposto é apenas um quadro de referência, que faz parte de um acordo enunciativo.

A escolha do novo papa é uma resposta a problemas enfrentados pela Igreja Católica na Europa, disse ontem o Arcebispo de Vitória, dom Luis Mancilha Vilela. Ele afirma que o cardeal alemão Joseph Ratzinger, eleito ontem papa Bento XVI, terá que dar respostas firmes a críticas à Igreja decorrentes do crescente contato de europeus com outras crenças... (20-04-05)

Vale salientar que os conteúdos pressupostos não se referem obrigatoriamente a fatos ou eventos efetivamente realizados; mas a fatos ou eventos textualizados, informados, enunciados (no sentido de inscritos na história). Mas não é de tempo cronológico que se trata. Trata-se de um tempo interno à própria enunciação, de uma enunciação presente com vestígios de uma enunciação anterior, em termos de linguagem, e não de mundo. É isso que se evidencia no enunciado seguinte, em que a construção nominal (a reunião de governadores,...), embora se refira a uma ação a ser realizada no futuro, já foi veiculada na mídia.

A reunião de governadores, marcada para terça-feira próxima, na residência oficial da Praia da Costa, será importante para o Espírito Santo (04-10-96).

O predicado nominalizado, tomado como de conhecimento geral, não precisa ser justificado. Não é sobre ele que se dá o encadeamento seqüencial do texto, a sua continuidade argumentativa. Aliás, ele não está em discussão, sendo, na verdade, o ponto de partida sobre o qual recai o comentário. Segundo Ducrot, pressupor um conteúdo é apresentá-lo como devendo ser mantido em todo o discurso subseqüente, que deve ser encadeado sobre o posto e não sobre o pressuposto. Se o posto é a informação nova; se o subentendido é o que o interlocutor pode concluir; o pressuposto é um conteúdo partilhado, tomado como já sabido, que cria uma espécie de cumplicidade entre os interlocutores. É nesse sentido que a nominalização é uma estratégia argumentativa, um jogo sobre a imagem do referente, tomada como uma informação partilhada, aceita como evidente, uma vez que pertence a um “já-dito”, não sendo de responsabilidade exclusiva do interlocutor. Aliás, pode ocorrer de o editorialista, por meio de aspas (ou de outro expediente), explicitar seu afastamento dessa enunciação anterior.

 

Conclusão

Essas questões levantadas podem ser associadas à polifonia e à heterogeneidade discursiva, uma vez que aí se evidencia uma cisão entre o sujeito do conteúdo pressuposto (esse outro, essa voz anterior, já enunciada em outro lugar), que pode ou não incluir o locutor; e o sujeito do conteúdo posto (em que o locutor efetivamente se inclui). A seleção dos núcleos nominais nessa retomada é também um bom campo para discutir essa partilha de responsabilidade na formação dos pressupostos como “lugar comum” enunciativo.

Tomando como referência o primeiro parágrafo do editorial de A Gazeta, de 1º de novembro de 2005 (Prorrogações inaceitáveis), que comenta as iniciativas do deputado José Dirceu de se livrar do processo de cassação do seu mandato na Câmara, admitimos que “não dá no mesmo” substituir as tentativas por as estratégias, as manobras, as falcatruas, as táticas protelatórias, os expedientes abusivos ou as decisões inteligentes. Trata-se de objetos-de-discurso diferentes, oriundos de diferentes memórias discursivas e que apontam para direções argumentativas diferentes.


 

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