O mesmo e o outro do(a) professor(a):
a relação entre gênero do discurso e suporte
na construção de imagens discursivas
do trabalho docente

Bruno Deusdará (UERJ)
Décio Rocha (UERJ)

 

Considerações iniciais

O presente artigo problematiza a relação entre texto e suporte como constitutiva da totalidade do gênero do discurso. Para tal reflexão, utilizaremos fragmentos do córpus de uma pesquisa acerca da construção de imagens discursivas do trabalho docente no mural da sala de professores de uma escola da rede pública[1].

No referido contexto, consideramos a sala de professores como situação de trabalho, uma vez que não se trata apenas de um espaço reservado ao descanso dos profissionais entre uma aula e outra. Antes, constitui-se no cenário de trocas diversas, tais como estabelecimento de acordos entre docentes no que se refere ao trabalho conjunto entre disciplinas, relato de situações ocorridas em sala de aula para as quais os demais colegas se voltam no sentido de resolvê-las, auto-organização do coletivo, entre outras. Assim sendo, além das imagens constituídas na sala de aula, classicamente identificadas com o trabalho docente, há outras que se constroem a partir das interações em outros espaços.

Pretendíamos discutir os diversos lugares que os profissionais são convocados a assumir, nas trocas enunciativas na sala dos professores, como servidor público, como membro de uma categoria, como cidadão, etc. Para isso, optamos por uma observação empírica das interações ocorridas na sala de professores de uma escola da rede pública estadual. Nos oito meses de observação, utilizamos um “diário de bordo” como instrumento de registro. Em pouco tempo, percebemos o lugar do mural nas interações ocorridas naquele espaço.

Os textos afixados no mural provêm de contextos de circulação diversos; encontram-se estabilizados no mural, o qual constitui assim um dispositivo que reúne textos supostamente necessários à prática docente naquela instituição.

Neste artigo, ao tratarmos especificamente, da relação texto / mural, discutiremos inicialmente a noção de gênero do discurso (Bakhtin, 2000) como categoria metodológica de análise, ressaltando os fundamentos teóricos subjacentes a essa noção. Em seguida, refletiremos sobre a relação entre o mídium e a totalidade do gênero do discurso, a partir da perspectiva proposta por Maingueneau (2001), como embasamento da relação texto / mural, tal qual se apresenta em nosso córpus.

A seguir, analisaremos dois textos com o objetivo de elucidar de que modo essa perspectiva teórica se atualiza nos textos que constituem o córpus de nossa pesquisa. O intuito é destacar o fato de que a alteração do suporte provoca mudança em todo o quadro de referência da situação de enunciação.

 

A totalidade do gênero do discurso
e a relação texto / mural

Ao longo de oito meses de observação empírica das interações ocorridas na sala de professores, “coletamos”[2] vinte e sete textos afixados no mural. Adotamos os seguintes critérios de seleção de textos para composição do córpus de análise de nossa pesquisa: (i) textos que se dirigem explicitamente aos professores, ou seja, textos nos quais conste vocativo, pronome ou outro elemento que marque a inclusão do professor como interlocutor prioritário do referido texto; (ii) textos que tematizem o trabalho, mais especificamente o trabalho docente.

Encontrávamos assim um desafio: o que fazer com textos tão distintos quanto uma notícia de jornal, um bilhete e uma circular? As diferenças entre eles eram marcantes: constroem-se lugares diversos para os coenunciadores de cada um dos textos, distinguem-se no que tange à organização textual, possuem diferentes contextos de circulação, etc. Nosso estranhamento diante de um material tão heteróclito devia-se certamente à posição quase consensual em pesquisa de que o córpus constituído para fins de análise deve conter semelhanças ou pontos de interseção suficientes de modo a lograr trazer à luz um determinado conjunto de saberes acerca da realidade investigada. Percebemos, no entanto, que era exatamente aquela variedade de elementos que caracterizava o mural como dispositivo de interação entre os profissionais que circulavam por aquele espaço. Nesse sentido, optamos por agrupar os textos previamente selecionados em gêneros do discurso.

 

A noção de gênero do discurso

A noção de gênero do discurso adotada no presente artigo remete às reflexões de Bakhtin (2000), para quem essa noção emerge da tentativa de estabelecer, no âmbito dos estudos da linguagem, uma perspectiva que leve em conta as situações concretas de enunciação.

Ao se confrontar com a singularidade de cada situação de enunciação, Bakhtin elabora o conceito de gêneros do discurso como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (Bakhtin, 2000: 280). É essa relativa estabilidade que fundamentará a teoria do enunciado concreto atribuída ao referido autor.

Em oposição aos modelos informacionais em que o locutor assume uma posição ativa, como emissor de uma dada mensagem, enquanto o interlocutor apenas a recebe, a partir da noção de gênero do discurso compreende-se a comunicação verbal como espaço de co-produção entre os parceiros, ambos, locutor e interlocutor, em atitude responsiva ativa.

O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência do enunciados anteriores – emanates dele mesmo ou do outro – aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação. (Bakhtin, 2000: 291)

Locutor e interlocutor, para nos utilizarmos aqui da terminologia de Bakhtin, respondem não apenas um ao outro, mas a enunciadores anteriores à situação concreta em que se encontram; da mesma forma, de algum modo, seus enunciados são antecipações de questionamentos ainda por serem realizados. O sentido se produz exatamente nessa relação com enunciados anteriores e posteriores e não em formas lingüísticas que remetem ao sistema da língua.

Um gênero do discurso se define sócio-historicamente por remeter a uma esfera da atividade humana e, no plano lingüístico-discursivo, por articular tema, estrutura composicional e estilo.

Em nosso material, os vinte e sete textos selecionados ao longo dos oito meses de observação foram agrupados em dez gêneros do discurso, quais sejam: mapa de controle de freqüência, versículo bíblico, notícia de jornal, cartaz publicitário, circular, resolução, bilhete, poema, nota informativa, panfleto.

 

A relação texto/mural

Posteriormente ao agrupamento dos textos em gêneros do discurso, o próximo desafio a ser superado referia-se à relação texto/mural. Notamos que, aparentemente, essa relação se constituiria linearmente. Se tomássemos como exemplo os versículos bíblicos, as notícias de jornal ou as resoluções, perceberíamos que tais gêneros possuem contextos de circulação que chamaríamos “habituais”, isto é, não têm no mural seu suporte privilegiado. A existência desses contextos “habituais” de circulação nos faria pensar que esses gêneros gozam de autonomia frente ao mural e que, por isso, seriam anteriores a ele. Nesse caso, o mural seria apenas uma moldura possível.

Outros gêneros, como o bilhete, por exemplo, fazem supor que sua existência depende do mural, ou seja, é posterior a ele. Tanto nesse caso como no anterior, a relação entre texto e mural se configuraria em um esquema linear.

No entanto, a partir da noção de gênero acima referida, compreendemos que não se trata apenas de uma categoria metodológica, mas sim de todo um quadro teórico que se funda com referência nas práticas de linguagem.

Se notarmos o modelo de comunicação que subjaz à teoria do enunciado concreto de Bakhtin, perceberemos que, da perspectiva interacionista proposta por Bakhtin, rejeita-se a idéia de que primeiro se tem algo a dizer para, em seguida, se escolherem os meios utilizados em sua circulação. Por esse ponto de vista, o suporte seria apenas o meio escolhido, secundário frente ao que se teria a dizer.

A esse respeito, Maingueneau ressalta:

O mídium não é um simples ‘meio’, um instrumento para transportar uma mensagem estável: uma mudança importante do mídium modifica o conjunto de um gênero de discurso” (Maingueneau, 2001: 72)

Retomando a atualização da relação texto/mural em nosso córpus de análise, percebemos que, ao se retirarem os textos de seu contexto “habitual” de circulação, afixá-los no mural não se configura em uma atividade secundária, isto é, não se escolhe simplesmente o suporte, já de posse da informação. Afixar os textos no mural constitui uma relação de poder em que se produzem certos saberes sobre a prática docente. Imaginar que se pode afixar um cartaz que trata da adoção de livros didáticos, ou uma resolução sobre faltas abonadas com atestado médico no mural da sala de professores pressupõe não só que haja interesse coletivo em tais temas, mas também que todos eles têm na sala de professores o espaço privilegiado para sua circulação.

No próximo item, explicitaremos de que modo essa concepção se materializa nos textos que constituem nosso córpus. Observados os limites do presente artigo, selecionamos dois textos, pertencentes a dois gêneros do discurso distintos, uma notícia de jornal e um panfleto.

 

Afixar textos no mural
e a construção de um interesse coletivo

Neste item, analisaremos as marcas lingüísticas presentes em dois textos de nosso córpus à luz da discussão acerca da relação texto/mural.

O primeiro texto, intitulado “Mudam as regras do Nova Escola”, é uma notícia de jornal extraída do jornal O Dia e afixada no mural. Em seu contexto “habitual” de circulação, ou seja, o jornal O Dia, tal notícia teria como co-enunciador os leitores desse jornal. Esse aparente deslocamento de seu contexto “habitual” de circulação altera não somente o mídium, mas toda a situação de enunciação. Os co-enunciadores não são mais os leitores de O Dia em geral, mas um público em particular, qual seja, os professores de uma dada escola da rede pública estadual do Rio de Janeiro.

A referida notícia foi publicada na seção “Nosso Rio”, conforme consta no topo da página afixada no mural. Se tal notícia estivesse no jornal, o pronome “nosso” se referiria ao conjunto dos leitores do jornal. No entanto, afixado no mural da sala de professores, a referência do pronome trata especificamente dos profissionais que circulam por aquele espaço.

No subtítulo da seção “O que acontece perto de você”, vemos que ocorre fenômeno semelhante. O pronome de tratamento “você” deixa de se referir ao cidadão fluminense leitor do jornal O Dia e passa a se dirigir aos profissionais daquela escola. Vemos assim que, ao retirar um texto de um contexto de circulação e inseri-lo em outro, não se altera somente o suporte, mas todo o quadro de referências.

O segundo texto, pertencente ao gênero panfleto, intitula-se “Esclarecimento acerca do famigerado código 61[3]”. Ao se propor como um esclarecimento, tal texto pressupõe a existência de dúvidas, encena assim um conhecimento prévio não só de quem são os profissionais daquela escola, mas especialmente também das questões que os afligem. Organiza a relação entre os coenunciadores de uma dada maneira.

Embora não esteja assinada, essa enunciação é assumida em primeira pessoa nos verbos. Vejamos um exemplo: “Li no mural da sala dos professores que a direção não aplicaria o famigerado 61” [Extraído do texto “Esclarecimento acerca do famigerado código 61”].

Nesse exemplo, o enunciador se assume como alguém que transita pela sala dos professores e também lê o mural, assim como seu co-enunciador. Provavelmente, trata-se de um profissional da escola. Constrói-se assim certa proximidade entre os coenunciadores.

Há outras marcas que corroboram essa idéia como em “nossa classe”. O que há em comum entre ambos é a noção de pertencimento a uma classe.

Vemos, a partir da análise dos exemplos, que a alteração dos contextos “habituais” de circulação não é secundária, ou seja, o mídium constitui a totalidade do gênero. A mudança do mídium provoca a mudança de todo o quadro de referência da situação de enunciação.

 

Considerações finais

A opção pela observação empírica das interações ocorridas na sala de professores nos permitiu perceber que, diferente do que se pode pensar, não se trata de um espaço de descanso apenas. Nele os profissionais são convocados a uma série de atividades, sejam elas pedagógicas, administrativas, ou mesmo sindicais.

Compreendemos assim que a produção / circulação de sentidos do trabalho docente não se restringe à sala de aula, mas toma outros espaços, como a sala de professores. Os profissionais são informados das alterações na legislação, nos programas de gratificação, tomam ciências dos resultados da escola nas avaliações realizadas pela Secretaria, são convidados a organizar atividades pedagógicas em conjunto, a comparecer a reuniões ou festas da escola, são convocados a participar de assembléias ou paralisações. Enfim, são chamados a desenvolver um conjunto de atividades relacionadas à sua prática profissional.

 Ressaltamos ainda o lugar do mural nessas interações. A atividade de afixar textos no mural constitui-se num exercício de poder, conforme propõe Foucault (2002). Um poder que não tem como função primordial reprimir ou impedir, mas, antes, produzir um dado estado de coisas. Diferente do poder do rei, que usurpa o resultado da produção do camponês, o poder disciplinar (essa é a designação de Foucault a esse tipo de poder) se exerce sobre os atos e, ao mesmo tempo em que submete, produz corpos úteis (Foucault, 2004).

O mural configura-se, ao mesmo tempo, numa rede de poderes que produz saberes sobre o trabalho docente. Saberes pedagógicos, administrativos, técnicos, políticos, religiosos, que se pressupõe necessários ao exercício do magistério. Esta é a função do mural: dar visibilidade a enunciações de origens diversas, que se encontram como construtoras de um “interesse comum”, pressupondo-se, assim, que todos os profissionais que transitam pela sala dos professores querem / precisam das informações afixadas no mural.

Dessa maneira, vemos que retirar um texto de seu contexto “habitual” de circulação e afixá-lo no mural não representa uma alteração secundária, mas um exercício de poder que pressupõe saberes necessários à prática docente em dada instituição e que, portanto, altera todo o gênero do discurso.

 

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M.. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

––––––. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento das prisões. 29ª ed. Trad. Raquel Ramalhete Petrópolis: Vozes, 2004.

––––––. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

––––––. Microfísica do poder. Trad. e org. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Tradução de Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001.

ROCHA, Décio. Une approche discursive de la classe de langue étrangère em tant que lieu de travail. Revista D.E.L.T.A., vol. 19, nº 1. São Paulo: Educ, 1998. p. 155-80.

––––––. DAHER, M. del Carmen F G. & SANT’ANNA, Vera L. de A. Produtividade das investigações dos discursos sobre o trabalho. In: SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília P. de & FAÏTA, Daniel (orgs.). Linguagem e Trabalho: construção de objetos de análise no Brasil e na França. São Paulo: Cortez, 2002.


 


 

[1] Trata-se da pesquisa de Deusdará (mimeo), a qual configurará dissertação de Mestrado a ser defendida ainda em 2006 na área de Lingüística do Programa de Pós-graduação em Letras do IL-UERJ.

[2] Embora a expressão “coletar dados” seja recorrente em manuais de metodologia de pesquisa, cria-se um efeito de sentido indesejável, encenando aparente distanciamento entre o pesquisador e seus “dados”. Optamos por manter o verbo “coletar”, atenuando seu sentido com o uso das aspas.

[3] O código 61 constitui-se como código registrado no cartão de ponto dos profissionais da rede estadual, no caso de greve. Historicamente, tal código foi solicitado pelo movimento sindical como forma de dar ao conhecimento público a informação precisa da adesão às greves. No entanto, por medida autoritária, os governos estaduais têm-se utilizado do código legalmente apenas informativo, para base de desconto pecuniário.