A estilística cotidiana de Heloisa Seixas

Fernanda Freitas (UERJ)

 

Este trabalho é uma pequena demonstração do que estou desenvolvendo em minha dissertação do Mestrado em Língua Portuguesa na UERJ. A proposta é analisar estilisticamente os Contos Mínimos de Heloisa Seixas, cronista que escrevia semanalmente na Revista Domingo do Jornal do Brasil.

Para iniciar o trabalho, será feita uma breve apresentação da autora.

Heloisa Seixas é carioca, tem 54 anos, e é esposa do tão conhecido Ruy Castro. Sua história com o mundo das letras começou no jornalismo, que ela cursou na UFF, e se estendeu pelos anos em vários trabalhos ligados à imprensa que ela desenvolveu. Sua inserção direta na literatura foi de certa forma tardia, pois só aos quarenta anos ela começou a escrever, a tirar a gaveta aqueles textos que não se tem vontade de mostrar para ninguém. Segundo ela, era como se tivesse uma paixão clandestina, proibida.

Em uma entrevista dada a um site da internet (2001), a autora fala de sua descoberta como escritora:

Escrever para mim - que comecei há apenas dez anos, já com 40 - foi uma revelação surpreendente. Eu tomei um susto. Não tinha o sonho nem a pretensão de ser escritora, a não ser talvez em algum compartimento muito secreto dentro de mim. E, de repente, por uma série de razões, incluindo o acúmulo de histórias na minha cabeça, a coisa explodiu, aconteceu. Sem volta. (www.desconcertos.com.br)

Nesses 14 anos de escritora, Heloisa já produziu bastante. Além das crônicas semanalmente publicadas, ela é autora dos livros dos contos Pente de Vênus (1995 - reeditado em 2000) e Sete Vidas; e também dos romances A Porta (1996), Diário de Perséfone (1998), Pérolas Absolutas (2003) e da novela Através do Vidro (2001) que, juntamente com a reunião dos Contos Mínimos que também virou livro em 2001, recebeu um prêmio da União Brasileira dos Escritores. Nesse tempo, Heloisa também organizou e traduziu antologias de contos e seus textos fizeram parte de duas antologias com outros autores como João Silvério Trevisan, Silviano Santiago, Affonso Romano de Sant'anna, Ana Miranda e Marina Colassanti.

Justifico meu interesse pela escrita Heloisa Seixas principalmente pelo fato de ela conservar em seus textos algo que preservo muito como leitora: ler pelo puro e simples prazer da leitura. Soma-se a isso seu estilo peculiar de escrever, de trabalhar a língua, que é o que será ilustrado e o que torna possível um trabalho de análise no Mestrado.

É preciso esclarecer por que aqui os Contos Mínimos são chamados de crônicas. Na verdade, a autora faz um misto de conto e crônica, permanecendo em uma tênue fronteira entre os dois gêneros. Segundo ela, “As fronteiras – como muitas outras na vida e na literatura – são imprecisas” e por isso é possível que, ao analisar seus textos do ponto de vista teórico, a classificação não seja precisa.

Optou-se pela nomenclatura crônica pelo maior número de características do gênero: a estrutura de frases curtas e entrecortadas, a temática cotidiana que fala de memórias, assombrações, conflitos interiores, amores perdidos e cenas num sinal de trânsito e, é claro, o veículo de publicação: uma revista publicada semanalmente em um jornal. A própria Heloisa declara que quando os textos “vêm”, ela já sabe se renderão um conto mínimo, que é a crônica, um conto maior ou um romance. A crônica é comparada ao conto, mas não deve perder seu tom coloquial.

Drummond, um de nossos maiores cronistas, fez uma declaração sobre a crônica que parece sustentar o que se expõe aqui sobre os textos da Heloisa Seixas:

Crônica tem esta vantagem: não obriga ao paletó e gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem o faz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, esporte, política nacional e internacional, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico, etc, mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou o comentário preciso que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial, e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a variação do espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal, ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo. (www.algumapoesia.com.br. Andrade: Jornal do Brasil: 1984)

E por mais que os Contos Mínimos possam, muitas vezes de acordo com a temática, apresentar um caráter menos efêmero, eles têm a essência da crônica.

Além da questão do gênero, a pesquisa consiste na identificação dos mecanismos lingüísticos que supostamente tornam a escritura de Heloisa Seixas tão envolvente. Observando seus textos, saltam aos olhos a maneira de pontuar e organizar os parágrafos, a preocupação com uma descrição minuciosa, traços de oralidade, certas inversões sintáticas e uma discreta conversa com o leitor, entre outros aspectos recorrentes.

Para que se observem alguns traços do estilo da autora, uma crônica será analisada:

 

Uma cena

É de manhã. Não num lugar qualquer, mas no Rio. E não numa época qualquer, mas no outono. Outono no Rio. O ar é fino, quase frio, as pedras portuguesas da calçada estão úmidas. No alto, o céu já é de um azul escandaloso, mas o sol oblíquo ainda não conseguiu vencer os prédios e arrasta seus raios pelo mar, pelas praias, por cima das montanhas, longe dali. Não chegou à rua. E naquele trecho, onde as amendoeiras trançam suas copas, ainda é quase madrugada.

Mesmo assim, ela já está lá – como se à espera do sol.

É uma senhora de cabelos muito brancos, sentada em sua cadeira, na calçada. Na rua tranqüila, de pouco movimento, não passa quase ninguém a essa hora, tão de manhãzinha. Nem carros, nem pessoas. O que há mais é o movimento dos porteiros e dos pássaros. Os primeiros, com suas vassouras e mangueiras, conversando sobre o futebol da véspera. Os segundos, cantando – dentro ou fora das gaiolas.

Mas mesmo com tão pouco movimento, a senhora já está sentada muito ereta, com seu vestido estampado, de corte simples, suas sandálias. Tem o olhar atento, o sorriso pronto a cumprimentar quem surja. No braço da cadeira de plástico branco, sua mão repousa, mas também parece pronta a erguer-se num aceno, quando alguém passar.

É uma cena bonita, eu acho. Cena que se repete todos os dias. Parece coisa de antigamente.

Parece. Não fosse por um detalhe. A senhora, sentada placidamente em sua cadeira na calçada, observando as manhãs, está atrás das grades.

Meu irmão, que foi morar fora do Brasil e ficou 15 anos sem vir aqui, ao voltar só teve um choque: as grades. Nada mais o impressionou, tudo ele achou normal. Fez comentários vagos sobre as árvores crescidas no Aterro, sobre o excesso de gente e carros, tudo sem muita ênfase. Mas e essas grades, me perguntou, por que todas essas grades? E eu, espantada com seu espanto, eu que de certa forma já me acostumara à paisagem gradeada, fiquei sem saber o que dizer.

Penso nisso agora, ao passar pela rua e ver aquela senhora. Todos os dias, o porteiro coloca ali a cadeira para que ela se sente, junto ao jardim, em frente à portaria, por trás da proteção do gradil pintado com tinta cor de cobre. E essa cena tão singela, de sabor tão antigo, se desenrola assim, por trás de barras de ferro, que mesmo sendo de alumínio para não enferrujar são de um ferro simbólico, que prende, constrange, restringe.

Eu, da calçada, vejo-a sempre por entre as tiras verticais de metal, sua figura frágil me fazendo lembrar os passarinhos que os porteiros guardam nas gaiolas, pendurados nas árvores.

Logo no título aparece a característica primeira da crônica: o relato do cotidiano, “uma cena”. O texto é dividido em dois momentos: o primeiro, em que o narrador é observador e limita-se a descrever minuciosamente a cena observada e o segundo, em que o foco narrativo mistura-se com o da 1ª pessoa. Nesse segundo momento a proximidade com o leitor é representada em maior intensidade, é quase uma conversa, um desabafo.

Observando a estrutura do texto, vê-se a presença de frases curtas e fragmentadas que dão ritmo à narrativa e são uma marca forte do estilo da autora. Observa-se também a paragrafação: o segundo parágrafo é curtíssimo, mas expressivo. Ela separa a descrição do cenário da apresentação da personagem, e só em um terceiro parágrafo vem a descrição da mulher.

É comum encontrar-se também períodos iniciados com conjunções, como no quarto parágrafo: “Mas mesmo com tão pouco movimento...”. O “mas” é freqüente no início dos períodos de Heloisa. No sétimo parágrafo, onde ela traz a fala do irmão, há mais uma representação disso: “Mas e essas grades, me perguntou, por que todas essas grades?” Em outros textos, há grandes seqüências de períodos assim, não só com o “mas”, também com outras conjunções.

Outro ponto a ser observado é a pontuação, que é bastante expressiva. Pela fragmentação das frases, os pontos são constantes e também colaboram para o ritmo da narrativa. Para exemplificar, pode-se apontar questão do discurso. Não há qualquer distinção entre a sua fala como narradora e a do personagem que se manifesta na história. Não há aspas ou travessão, apenas o verbo discendi nos dá a informação.

Um outro traço marcante é o da oralidade. Na crônica isso pode ser representado pelo E que inicia alguns períodos, como no último período do primeiro parágrafo: “E naquele trecho...”. Isso também acontece logo depois da fala do irmão: “E eu, espantada com seu espanto...” e mais abaixo no penúltimo parágrafo: “E essa cena tão singela...”

Com essa pequena demonstração, procurou-se apontar algumas possibilidades de análise estilística do texto da autora que serão feitas na dissertação.

Para finalizar, um trecho de uma crônica que Heloisa fez em resposta a um leitor:

Um leitor me pergunta afinal que lugar é esse onde vivo e que janelas são essas, as minhas, que ora dão para montanhas e lagoa, ora para apartamentos onde vivem casais felizes e infelizes, ora parecem estar quase ao rés do chão, permitindo-me observar de perto os transeuntes e os catadores de papel. Tem razão, o leitor. Que janelas são essas? Onde vivo? Pois respondo. Vivo em vários lugares e são muitas, de fato, minhas janelas, sendo múltiplas as visões que descortino. (Seixas, Domingo: 2005)

No trecho, a proximidade com os leitores é aparente. É claro que nesse caso o texto é realmente direcionado ao leitor pelo fato de ser uma resposta, mas isso acontece sutilmente em diversas crônicas. A narração em 1ª pessoa contribui muitas vezes.

O trecho não só mostra uma outra espécie de temática da crônica da Heloisa como traz um interessante uso da pontuação: a vírgula separando o verbo e seu sujeito na inversão sintática. Gramaticalmente sabe-se que isso não é “permitido”, porém, ela quebra a norma a fim de alcançar expressividade.

Por meio de uma linguagem que beira o lirismo, Heloisa Seixas nos apresenta o mundo pela sua ótica. Um mundo nosso, interior, mas também comum a todos os homens. Suas crônicas são retratos do cotidiano que ora provocam alegria ora uma ponta de tristeza no coração do leitor. Essa autora do novo cenário da literatura brasileira tem o poder de descobrir detalhes aparentemente ocultos pela velocidade do mundo de hoje (como a velhinha sentada atrás das grades), mas que estão o tempo todo visíveis aos olhos de qualquer mortal. Tudo isso de uma maneira peculiarmente feminina, que envolve pouco a pouco o leitor em uma rede sedutora de palavras.

 

Referências bibliográficas

BENDER, Flora Christina e LAURITO, Ilka Brunhilde. Crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993.

COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Texto e linguagem).

SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985. (Série Princípios).

SEIXAS, Heloisa. “Contos mínimos”. In: Domingo. Rio de Janeiro, 2005.

www.desconcertos.com.br

www.algumapoesia.com.br