A ESTILÍSTICA TEOPOÉTICA
NA OBRA DE RUBEM ALVES

Maria Celeste de Castro Machado

 

A poesia, a poesia verdadeira é sempre “epifânica”; ela revela, e a beleza dela é isto. A beleza não é o assunto. (...) l. Em arte, a beleza não é do tema, é da forma. E, se a beleza está na forma, qualquer assunto me serve, qualquer coisa é a casa da poesia. Ela não recusa absolutamente nada que diz respeito à experiência humana, porque ela guarda, na sua forma, exatamente esta revelação - é só “olhos de ver”. Por isso é que a Bíblia, e todas as escrituras sagradas de todas as religiões, sobrevivem há milênios, há séculos e séculos, por causa da linguagem. É por causa da linguagem. Os teólogos falariam aqui: "É por causa de Deus". É, mas eu estou falando a mesma coisa. É uma linguagem divina. A linguagem da arte é divina. Isto não é uma força de expressão.

(Adélia Prado. Entrevista concedida
no Simpósio da Abralic-2002)

 

Ler as obras de Rubem Alves é sempre um prazer muito especial, não só pela beleza de seu escrito, mas principalmente pela importância teológica que deles emana. Ao iniciar esta comunicação pela fala da poetisa Adélia Prado, fui estimulada não só pela afinidade que existe entre os dois grandes escritores, mas também pela profundidade da afirmação de Adélia sobre a epifania que a beleza da Poesia pode revelar. Nada mais verdadeiro em relação ao escritor de que ora desejo falar.

Rubem Alves, pensador brasileiro, conhecido no exterior desde o início da década de 70, ganha cada vez mais a atenção de pesquisadores brasileiros interessados em estudar aspectos da sua obra, sobretudo, a partir da segunda metade da década de noventa, quase trinta anos após as primeiras pesquisas sobre seu pensamento serem realizadas no exterior. É em diálogo com Marx, Freud, Nietzsche, Agostinho, Kierkegaard, Wittgenstein, Fernando Pessoa, Mannheim, Feuerbach e outros que seu humanismo vai sendo elaborado de maneira original e criativa. A preocupação central de sua reflexão está em resgatar o homem, enquanto ser de desejos e sonhos, no interior de uma tradição filosófica e de uma sociedade massificada que tem como princípio fundamental a produtividade, na qual o homem aparece como uma realidade abstrata, ou como peça de uma grande engrenagem. Portanto, constrói seu pensamento a partir de uma crítica à metafísica clássica e ao pensamento moderno. Ele mostra a essencialidade do desejo e da imaginação na vida do homem. Para Alves, o conhecimento é importante, mas quem nos move são os desejos. Considera preciso despertar a beleza e os sonhos adormecidos dentro dos seres humanos. Assim sendo, fala de uma educação estética que será, antes de tudo, uma educação pelo amor e com sabor.

Começo justificando o uso da primeira pessoa: não há como abster-me de emoção pessoal quando estudando Rubem Alves, como não há possibilidade de falar sobre Poesia, no caso de suas obras, sem usar maiúscula. O autor não escreve poesia, mas usa a Poesia em seu significado mais sublime, aquele que nos veio da tradição artística mais elaborada, a da poiésis (poiésis) grega - conceito abstrato que revela a imanência da beleza presente em todo texto literário.

Quando a poetisa fala em epifania da beleza, imediatamente somos remetidos ao tratamento que Rubem Alves dá aos seus textos. Construindo-os com uma forma poética de grande qualidade, repleta de metáforas e plurissignificação, imprime-lhes a beleza teológica de um falar sobre Deus que nos transmite as verdades do amor humano e do amor divino, do amor do homem a Deus e do grande amor de Deus a toda a Criação. É impossível não se sensibilizar com sua expressão melancólica às vezes, às vezes transbordante de alegria, mas sempre com o toque refinado que faz vibrar as mais íntimas regiões do sentir humano. Não há coração que consiga fugir de suas metáforas suaves como as de um poeta simbolista, profundas como as de um escritor barroco, teológicas como as dos mais belos salmos bíblicos...

Rubem Alves, em várias de suas obras, cita um novo ramo de estudos literários e teológicos como sendo sua forma atual de escrever sobre religião, sobre Deus, sobre a linguagem: a Teopoética. Embora não sendo um termo novo, ele foi revitalizado pelo teólogo alemão Karl-Josef Kuschel, que, desde 1991, a estuda como a crítica estético-literária a Deus, no discurso crítico-literário sobre Deus, no âmbito da Literatura e da análise literária, a partir da reflexão teológica presente nos autores. Especificamente propõe as seguintes questões: Quais os critérios estilísticos para um discurso teológico dentro da Literatura? Qual o discurso sobre Deus que esta veicula? Quais as relações entre literatura contemporânea e crise existencial da consciência moderna, que se refletem neste discurso proferido pelas obras literárias?No dizer do próprio Kuschel, “Eis, pois, o que se esconde por trás da palavra ‘teopoética’: não a procura por outra teologia, não a substituição do Deus de Jesus Cristo pelo dos diferentes poetas, mas a questão da estilística de um discurso sobre Deus que seja atual e adequado” (Kuschel, 1999: 31).

Em sua obra, Kuschel afirma que “A fé na arte [como substituta da religião] comprovou-se um erro. Os escritores (...) em certo sentido, não incorrem na ilusão de que a arte possa substituir a religião.” (Kuschel, 1991: 214) De certo modo, Rubem Alves parece seduzido por esta ilusão, já que faz arte poética e usa a intertextualidade para inferir teologia. Embora ele renegue tal condição ao negar-se o título de teólogo, sua obra é um contínuo “falar sobre Deus e sobre os fatos bíblicos”. E nisto reside a grandiosidade de suas obras, pois elas definem um posicionamento teológico todo peculiar, idiossincrático, flagrantemente marcado pela Bíblia e pela tradição reformada, sem repetir chavões religiosos, metaforizando tudo que se refere a Deus e ao sentimento cristão, além de achegar-se a outros autores e filósofos, que usam o mesmo recurso, através da intertextualidade. Ao recorrer ao diálogo com as obras de outros autores, instaura-se em seus escritos uma verdadeira polifonia[1], em que o discurso de vários outros escritores, inclusive o discurso bíblico, têm participação e valor.

Faz-se necessário reavaliar conceitos, pois Rubem se diferencia dos outros artistas que falam sobre Deus , podendo e devendo ser considerado teólogo, porque seu discurso não é crítica de Deus, nem sobre Deus, mas consiste numa nova linguagem sobre como se deve amar a Deus, louvá-lO, senti-lO, vivê-lO. Enquanto os outros escritores questionam literariamente a fé, sua própria religiosidade, a forma com que Deus se lhes apresenta, Rubem Alves narra sua ausência de conflitos com Ele, reafirma categoricamente sua crença nEle, e, se faz crítica, é aos poderosos, aos religiosos fanáticos, àqueles que aprisionaram Deus em gaiolas de palavras e ritos e impedem que os homens vejam o Pai em Sua plenitude, em Seu real significado e alcance.

Para que se tenha melhor entendimento desta argumentação, serão trazidas algumas passagens mais significativas, em que fica bem caracterizada a forma estilística e teopoética de Rubem Alves. Também se tentará explicitar, ainda que brevemente, algumas correlações feitas pelo autor entre os conceitos presentes na Bíblia e as metáforas que ele cria em seus escritos.

Falando sobre a noite de nascimento do Menino Jesus, lembra-se que no Novo Testamento,

O verbo usado é perilampein . Lampein é brilhar. Dele se deriva lâmpada. E peri quer dizer “em volta”: um brilho que ilumina tudo ao redor. É desse verbo que se deriva pirilampo... Pirilampo é vaga-lume. Você pode imaginar que as estrelas, repentinamente, apareceram como milhões de vaga-lumes – e a luz era tão bela que aqueles que a viram sentiram que ali estava presente a beleza divina.

Quem vê a beleza divina num cacho de vaga-lumes com certeza viu a glória de Deus. (Alves, 2001: 34)

Rubem metaforiza a grandiosidade do céu que viu o nascimento de Jesus com a beleza de miríades de vaga-lumes , só explicável pela presença de Deus naquele grande acontecimento. É impossível ficar alheio à percepção de que o autor nos leva do terreno ao celestial quando aproxima nossa experiência natural da experiência epifânica do nascimento, encarnado, do Filho de Deus. O homem e a mulher mais simples poderão compreender a grandiosidade do fato , quando reconhecerem que a glória divina se expressa, também, nas pequenas coisas sempre ao alcance da humanidade. Assim, participar da criação como um todo é ver o próprio Deus.

Em outra instância, como que a responder a críticas que comumente lhe fazem, Rubem Alves usa a ironia para dizer (Alves, 2001: 39):

Para tranqüilizá-los, vou me explicar:

1.  Sobre a Bíblia. Eu a estudei muito e a amo. Para mim ela é um poema cujas palavras me confortam e me fazem mais sábio. (...) De Deus, a única coisa absolutamente certa que conhecemos é o amor. (Cf. 1 Co: 13 )

2.  O que é a fé? (...) Na minha interpretação, fé é uma relação de confiança com Deus. É flutuar num mar de amor, como se flutua na água.

3.  Acho que Cristo enche todos os espaços do universo. Lutero falava da ubiqüidade do corpo de Cristo e dizia que ele está presente até na menor folha (...) Quem ama uma folha ama Cristo. Quem tem amor respira Cristo, mesmo que não fale o nome dele. (...) Os Reformadores falavam no “Christo absconditus” - isso é, o Cristo escondido, invisível, sem nome, em toda a criação.

4.  As escrituras sagradas são um livro enorme. Muitos dizem que as escrituras inteiras são inspiradas. Se realmente acreditam nisso, então todos os textos têm que ser objeto do nosso amor, são “palavras de Deus”.Noto, entretanto, que eles se comportam como se alguns textos fossem mais inspirados do que outros. Fazem silêncio sobre muitos textos. (...) Por que o silêncio? Acho que, secretamente, eles acreditam que uns textos são mais palavras de Deus do que outros.

5.  E quanto ao destino de minha alma, não se preocupem. (...) Deus criou tudo, não é? Vocês acham que eu ia entregar ao Diabo aquilo que saiu das suas mãos? Um Deus que é todo amor não pode ter no seu universo uma câmara de torturas em que as almas sofrem por pecados cometidos no tempo. Quem iria ficar feliz com isso é o Diabo. E vocês acham que Deus está a fim de realizar os desejos do Diabo? No fim, o amor de Deus triunfa!

Observe-se que poucos religiosos fariam tal declaração de amor à Bíblia com tanta naturalidade. É também notável a sabedoria com que o autor enuncia verdades bíblicas e teológicas como as presentes: “Deus é amor” , ter fé é confiar no próprio criador, “amar uma mísera folha é amar a Cristo, pois Ele está nela” , “todos os textos bíblicos são palavras de Deus e, como tal, têm que ser cridas e respeitadas”, “no fim, o amor de Deus triunfa”.

Como nós, seres humanos, vemos o ponto escuro na veste branca, mas não percebemos a alvura do linho tecido, talvez ficássemos tentados a reagir negativamente a seu pensamento sobre o inferno, aqui enunciado como “câmara de torturas”.

Rubem Alves recorre, freqüentemente, a outros autores cujo pensamento sustenta sua própria teologia. É o caso das numerosas citações da fala do personagem rosiano, Riobaldo[2], como no exemplo em que Rubem o trata de “doutor na vida , porque ele sabe tudo de Deus e do Diabo:

Como não ter Deus? Com Deus existindo tudo dá esperança; sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivém, e vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar... Tendo Deus é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então a gente não tem licença de coisa nenhuma... (Alves, 2001: 48-49)

E Rubem termina, definindo: “Deus é a esperança que o amor inventa para não perder a alegria... Idéia louca? Pode ser. Só sei que cuido bem da minha chama para que a catedral arruinada não fique na escuridão” (Alves, 2001: 49).

Este é o caso clássico da intertextualidade, pois o autor, usando palavras e voz de outro, reitera o discurso teológico de Guimarães Rosa com suas próprias colocações sobre a existência de Deus e a importância de Sua presença na vida humana, para trazer esperança e ordem a tudo. A polifonia do discurso deixa claro que, também para Rubem Alves, Deus existe e põe ordem e felicidade no caos de nossas vidas.

Procurando fazer breve hermenêutica das duas metáforas citadas na fala do próprio Rubem, “minha chama” e “catedral arruinada”, pode-se remeter a primeira à parábola das Dez Virgens, enquanto a segunda tem, certamente, uma carga teológica profunda, inferida pela ironia do trecho, no qual pode-se entender “catedral” como o corpo = templo do Espírito Santo, ou como Igreja, instituição que , na obra do autor, é apresentada como em falência, em processo de decadência, graças à intolerância e ao fanatismo religioso instaurados pela escravidão às palavras ocas e vazias de significado fiel a Deus.

Em outra obra, que se pode classificar de mais científica do que a exemplificada até agora, encontra-se um trecho que parece ser uma das maneiras mais poéticas e testamentárias de se falar sobre Gênesis e nosso Paraíso cristão:

Acredito: muitas gravidezes acontecem através do ouvido. Ora, o que entra no ouvido é a palavra: o Pássaro divino cantou um canto tão lindo que a Virgem ficou grávida e dela nasceu o Filho de Deus. Hoje muito se fala sobre anjos e suas funções. Mas nunca ouvi ninguém se referir aos importantíssimos Anjos engravidantes, os mesmos que fizeram Sara ficar grávida depois de velha. Assim, pela mediação de um Anjo engravidante, Deus Todo-Poderoso empreendeu trazer o Paraíso de novo à terra.. (Alves, 2005: 16)

Percebamos como o autor trata tanto do AT quanto do NT, considerando verídicos os dois relatos bíblicos citados. Percebamos também que ele usa maiúsculas em Filho de Deus, Paraíso, Anjo e Virgem, denotando acatar como reais as personagens e os fatos. Estas metáforas – “engravidar pelo ouvir” e “Anjo engravidante” – servem para ratificar, de modo poético, o texto bíblico e torná-lo mais próximo de um entendimento humano, apesar de fazê-lo usando linguagem poética. Além disso, sintamos a beleza de considerar-se que o nascimento de Jesus é o retorno do Paraíso à Terra. Quanto de significado existe nessa metáfora, que traz o sentido de que a salvação vinda por Jesus é o melhor de todos os paraísos, sem proibições, sem árvores do conhecimento, mas cheio de gratuidade e amor!

Sobre linguagem, pode-se afirmar que ela é a base da teologia do autor, não só nas obras nascidas após 1980, mas também no início de sua produção, quando se posicionava mais criticamente sobre Protestantismo e Religião. Encontra-se em Dogmatismo e Tolerância, livro saído em 1984, a definição (Alves, 2005: 35)

De fato, há algo mágico na palavra. Não foi por acidente que as palavras foram escolhidas como ferramentas de bênção e feitiço. Elas são portadoras de poder. Pela palavra todas as coisas se fizeram. No princípio era a Palavra.

Bem dizia Wittgenstein que a palavra tem poder para enfeitiçar...

O trecho já apresenta dois conceitos basilares para a teologia tão estilisticamente metafórica como a de Rubem: “palavra” e “feitiço”. Sua construção teológica trabalha a capacidade da palavra e da linguagem de representar os conceitos bíblicos, tal como visto em “Palavra”. Com maiúscula, o termo ganha em plurissignificação. É a fala de Deus, é o logos (verbo) criador presente no primeiro verso do evangelho de João, ou é o próprio Jesus, como tem sido interpretado por tantos séculos? Por outro lado, o feitiço da palavra é apresentado por ele, em obras posteriores, como a atração que Deus e a Trindade exercem sobre o homem, cujo desejo é o próprio Deus. A imbricação de significados é favorecida pelo uso de termos que chegam a beirar o simbólico e, por isso, permitem uma leitura teológica que , mais que um falar sobre Deus, é o falar de como Deus é, como é amado pelo ser humano e como deve ser visto por sua criação. É o que se identifica em Creio na ressurreição do corpo, também de 1984 (p. 18):

Deus, invisível como Deus, se torna visível como desejo e vai virando coisa, gente, gesto: as mãos dadas, a criança brincando na bica d’água, o pobre que come o seu pão, o sozinho que tem com quem falar, o fraco que não precisa mais se encolher, agachado, as plantas que nascem, cercas que são desmontadas, as prisões são abertas, os aleijados pulam, os desertos se transformam em jardins, os velhos, sem medo da velhice, e os instrumentos de dor e de morte, invenções da maldade, são transformados em fogueira – e lá estão as botas e as fardas tintas de sangue, pouco importa que sua fabricação e venda nos tornem mais ricos e sejam boas para a economia – a ressurreição do corpo,os sorrisos de prazer, a liberdade, os campos cobertos de trigo e feijão, balançando, sob a brisa, e as vinhas carregadas de uvas, a expulsão final do medo, a vida eterna...

E ele completa seu capítulo confirmando que a união de todos estes desejos é a “tapeçaria de desejos” que os cristãos se permitem tecer sobre o corpo humano de Cristo. Ensinamento que se coaduna com este aparece em Dogmatismo e Tolerância: “O homem não é o seu corpo. Ao contrário, ele manipula o seu corpo, por meio da linguagem. A linguagem é a trama onde a vida é tecida” (Alves, 2004: 31).

O livro Pai Nosso: Meditações pode ser considerado um dos mais representativos da construção metafórica de sua teologia e, via de conseqüência, da sua linguagem poética, tal como a teopoética de Kuschel permite compreender. Ao escrever melancólica e emotivamente sobre a mais importante das orações cristãs, Rubem Alves impregna seu leitor do mesmo “desejo da ausência”, revelado pelo Vento que passa e perpassa o corpo do homem “onde mora o desejo do Vento”, onde está a saudade , a nostalgia daquela ausência. O livro é um diálogo do homem com Deus através da oração que Jesus ensinou. E é um tratado teológico em forma poética, que faz dialogarem o teólogo e a Bíblia. Perceba-se a intertextualidade com o salmo 139 (Alves, 2004: 19):

Sei que meus ossos, o líquido vermelho que corre em minhas veias e os meus músculos se formaram na escuridão do ventre materno.Mas o meu corpo, este lugar encantado, muito mais que ossos, sangue e músculos, habitação de medos e esperanças, possibilidade de crueldade e de compaixão, sim, meu corpo nasceu e cresceu no interior dos olhos que o contemplaram e que eu guardei dentro de mim.

A efetivação do discurso teológico se faz inconteste na passagem a seguir, em que o autor esclarece alguns pontos nevrálgicos de sua teologia. Para ele, Deus é o mistério, é invisível como o Javé do AT. Sua ação é a do AT, operada com estrondo e força, arrastando os homens em sua passagem. Mas Deus lhe vem com a beleza, em forma poética, deixando um enorme sentimento de saudade, de desejo pela sua presença, que ficou marcada no corpo como um poema, ou como o “aguilhão”, ou como as “chagas da crucificação”. Como o próprio Rubem já disse em outra situação: “De Deus só conhecemos o amor”. (Alves, 2004: 26)

Ó Deus! Quem és tu?

Que nomes moram no teu mistério sem fim?

Ninguém jamais te viu.

Passas como o Vento e só ficam as marcas da tua passagem gravadas na memória: o sentimento de beleza, o sentimento de tristeza, o corpo que espera, sem certeza, com um poema na carne. Tua face,nunca a vi. Só conheço as muitas faces da minha saudade.

Não é possível terminar sem fazer pequena menção à intertextualidade contida nas epígrafes de Rubem. Ele as escolhe com grande perspicácia e, através delas, também nos fala e explica sua teologia , graças às inferências que podemos fazer entre seu discurso e o discurso dos autores epigrafados.

Rubem Alves nos leva a sonhar com um mundo melhor, um mundo de homens felizes, mais próximos de Deus, como se já estivéssemos no Jardim das Delícias, ao lado do Pai. Com seu simbolismo, ele nos faz “ver” a natureza que canta as belezas e solicitudes de seu Criador. Ele nos faz sentir o inefável toque da passagem daquele “vento que sopra onde quer, quando quer” , e nos dá vida. Lê-lo é, ao mesmo tempo e na mesma intensidade, perceber nossa humanidade e o desejo de transcendê-la, não porque ela seja vergonhosa, mas porque é nela que o Pai se vê, é a ela que Ele ama e amará sempre. Por isso ele crê na ressurreição do corpo, um corpo mais feliz, mais puro, mais desejoso da presença amorosa do Pai. É um corpo que vibra de amor eros, mas também é capaz do amor ágape por todas as criaturas, desde o mais pequeno vaga-lume, às mais poderosas ondas de um mar encapelado; desde as vibrações mais intensas pelo desejo do corpo do outro, à esperança mais sequiosa pela visão do Senhor “na sarça ardente do próprio ser”.

Quando se lê Rubem Alves, tem-se a sensação mais vívida do que nos fala o Filho, pois a Poesia que o autor imprime às palavras traz-nos a doçura da voz divina do Amor a nos chamar, a nos incitar a procurar o irmão e com ele comungar na mesma emoção de fraternidade e grandeza da koinonia. Quando se lê Rubem Alves, as lições evangélicas abandonam seu tom doutoral, para assumirem a força do convite a que se pode, mas não se quer, dizer não...Ou será que se quer, mas não se consegue dizer não?...

Rubem Alves tem êxito em sua criação teológica, porque não se prende a imagens desgastadas, a fórmulas esvaziadas de sentido, mas tem coragem de usar metáforas inesperadas, associações vocabulares inéditas, assim como desmitifica algumas afirmações cristalizadas, que dificultam a apreensão do profundo sentido religioso que a Palavra de Deus apresenta. Alguns o consideram herético por isso. Outros o chamam erótico. Ele diz que brinca com as palavras como uma criança. E assim deve ser visto: um teólogo que transgride para significar; um religioso que surpreende para mostrar a verdade; um artista que embeleza para conquistar, pela Beleza, as ovelhas que estão perdidas pelo cansaço de ouvir chamados que não as seduzem mais, porque não falam mais o que seu coração precisa ouvir e que, há dois mil anos, espera para ser dito. Sob este ponto de vista, ele é um pregador que se faz poeta para conquistar aqueles que não foram alcançados pela sua teologia inicial, obscurecida pelo poder e pela intolerância daqueles que “não sabem” ler. A dificuldade está em ter “olhos de ver e ouvidos de ouvir”, porque ler, lê-se, mas interpretar as metáforas é tarefa de boa-vontade, de simplicidade de coração, mais que de conhecimento lingüístico ou teológico. Portanto, “o semeador sai a semear” e, quem sabe, os ipês amarelos se engravidarão de flores, os jardins se encherão de orquídeas, as gaiolas ficarão vazias, árvores serão plantadas para o amanhã, as crianças poderão brincar sem medo, os jovens se amarão com sinceridade, os velhos se verão nos filhos de seus filhos e todos, juntos, poderão descobrir o rosto para sentir o Vento que sopra onde quer...como quer...quando quer....+


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rubem. Coisas da alma, da vida, da alegria. São Paulo: Paulus, 2001.

––––––. Creio na ressurreição do corpo. 5ª ed. São Paulo: Paulus, 2003.

––––––. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Loyola, 2004.

––––––. Entre a ciência e a sapiência. 13ª ed. São Paulo: Loyola, 2005.

––––––. Pai Nosso: Meditações. 8ª ed. São Paulo: Paulus, 2004.

KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as Escrituras. São Paulo: Loyola, 1999.

 

ANEXOS

1. COISAS DA ALMA

Pense no mar como uma metáfora de Deus. Se tiver dificuldades leia a Cecília Meireles, Mar absoluto. Faz tempo que, para pensar sobre Deus, eu não leio os teólogos, leio os poetas. Pense em Deus como um oceano de vida e bondade que nos cerca. Romain Roland descrevia seu sentimento religioso como "sentimento oceânico": Mas o mar, cheio de vida, é incontrolável.

Mas, num dia como qualquer outro, ao olhar para a cebola que ela acabara de cortar, ela não viu a cebola: viu um vitral de catedral, milhares de mi­núsculos vidros brancos, estruturados em círculos concêntricos, onde a luz se refletia. Eu a tranqüilizei. Não estava louca. Estava poeta. Pablo Neruda escre­veu sobre a cebola: “rosa de água com escamas de cristal...”

Você viu o cacho de vaga-lumes e ficou pasmo!

No meio da confusão da vida, uma revelação do eterno!Como era possível que houvesse coisa tão linda, tão silenciosa, tão escondida - que os olhos dos comuns dos mortais não viam?

 

2. COISAS DO AMOR

No momento do seu nascimento o amor é sennntimento gratuito, que nada pede em troca.. “A rosa não tem porquês, ela floresce por­que floresce”: disse Angelus Silesius, Faço uma pa­ráfrase: "O amor não tem porquês. Ele ama porque ama”.

É dessa bagunça que nasce a literatura. Quem lê nem imagina! Vê as idéias organizadas, bonitinhas, uma atrás da outra. Não tem a mínima idéia do caos de onde nasceram. Para meu consolo Nietzsche dizia que o segredo da criatividade é ser rico em contradições. Os textos sagrados dizem que no princípio era o caos;foi do caos que nasceu a beleza. Com Deus tudo bem, porque Ele não se esquece de nada. Mas o problema é com a gente. Esquecemos – e com o esquecimento ferimos sem querer pessoas que amamos.

 

3. COISAS QUE DÃO ALEGRIA

Houve um silêncio. Aí a memória poética se transformou em imaginação teológica.

__ "- Eu acho que há muitos céus, um céu para ca<ia um. O meu céu não é igual ao seu. Porque céu é o lugar de reencontro com as coisas que a gente ama e o tempo nos roubou. No céu está guar­dado tudo aquilo que a memória amou ... "

       - Já sugeri que teologia é coisa que deve ser feita na cozinha. Claro que não é qualquer cozinha. Co­zinha de microondas e fogão a gás não serve. Sei que é mais prático. Fogão a lenha é coisa complica­da. É preciso muita arte para acender o fogo. E é preciso cuidado para que ele não se apague.

Fernando Pessoa era tomado por êxtases metafísicos ao contemplar o cais de pedra e os navios que partiam. Eu sinto o mesmo ao pensar no trem de ferro e no seu apito rouco que não mais se ouve. "Um trem de ferro é uma coisa mecânica, / mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, / atravessou minha vida, virou só sentimento" - assim foi o ge­mido rouco da Adélia Prado, poema-apito de trem de ferro.

Lembro-me do meu assombro quando meu pai completou 60 anos. Como ele me parecia velho! Com certeza já estava remando sua canoa rumo à terceira margem do rio. Eu acho que a terceira mar­gem é a saudade. Diz o Riobaldo que "toda sauda­de é uma forma de velhice". Hoje, 15 de setembro, jogo no rio da saudade mais um ano de vida. É a 63ª vez que faço isso. A vela está ficando curta. E o faço rezando, com a Maria Alice e a Adélia: "Meu Deus, me dá cinco anos, me cura de ser grande ..."


 

[1] Conceito da Análise do Discurso, aqui usado segundo a tradição de Mikhail Bakhtin: ouvem-se várias vozes diferentes dentro do texto, mas elas são concordantes no significado de suas falas.

[2] Personagem do romance Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa.