A influência da oralidade
na obra de Lygia Bojunga:
uma abordagem estilística

Aline Gonçalves de Brito

 

“Era uma vez uma escritora que amava seu ofício mais que tudo...”

Essa personagem se chama Lygia Bojunga, gaúcha de nascimento, carioca de coração, autora premiadíssima no Brasil e fora dele por seu talento como “artesã da palavra”. Mais conhecida por sua produção infanto-juvenil, a obra de Bojunga ultrapassa as barreiras etárias ao retratar o universo interior e exterior da criança, do adolescente e do adulto construindo uma atmosfera de fantasia e delicadeza. Não são somente os temas de caráter universal que conquistam os leitores: muito de seu mérito pode ser atribuído à linguagem empregada para contar as histórias. Em determinada entrevista, Lygia Bojunga assim descreveu seu projeto literário:

Desde o meu primeiro livro venho buscando o coloquial, a oralidade (...). Foi essa a maneira que eu escolhi – entre as várias que existem – de vestir a minha literatura. Cada vez que eu percebo (e quantas vezes eu não percebo!) a minha escrita contando uma coisa diferente do que eu contaria se aquilo fosse um bate-papo aqui em casa, eu volto atrás, eu faço de novo, eu experimento outra vez. Dez, vinte, cem vezes. A minha paciência pra mexer com palavras não tem limite (...) (Sandroni, Laura. De Lobato a Bojunga, p. 171).

A escolha explícita pelos elementos da oralidade se refletem na escrita da autora por meio de marcas lingüístico-expressivas que acabaram por constituir seu estilo, normalmente denominado “prosa falada”. Caracterizada pela simplificação, a estratégia exige, na verdade, grande elaboração e apuro por aprte de quem escreve, visto que, por se tratarem de modalidades distintas da língua, fala e escrita apresentam características bastante peculiares, que nem sempre podem ser transferidas de um meio para outro. Assim, o desejo de melhor investigar as especificidades da “prosa falada” de Lygia Bojunga deu origem a essa dissertação, em que se pretende analisar o tema à luz da Estilística, tendo como base Pierre Guiraud, que define estilo como o “aspecto do enunciado que resulta de uma escolha dos meios de expressão, determinada pela natureza e pelas intuições do indivíduo que fala ou escreve” (apud Martins, Nilce Sant’Anna.  Introdução à estilística, p. 2. - grifos nossos). Igualmente pertinente no que se refere à questão do estilo na obra de Bojunga se mostra a tendência sociolingüística apresentada por Sírio Possenti, que, entendendo o conceito dentro da multiplicidade de códigos e variantes da língua, reconhece que “o falante é considerado capaz de variar não só segundo o contexto, o que é relevante, mas segundo seus objetivos, embora não necessariamente esteja consciente desse fato” (Idem, p. 259.). A noção de escolha que perpassa ambas as concepções associada à questão da variação lingüística constituem os mecanismos que contribuem para constituir o projeto literário da autora de aproximar a linguagem o máximo possível daquela utilizada por seus interlocutores, como forma de se estabelecer entre texto e leitor um nível alto de identificação, adentrando nesse momento no terreno da subjetividade e da afetividade. Não nos devemos esquecer, obviamente, da questão da elaboração da linguagem por que passam ambas as definições, e que se mostra muito evidente em Lygia Bojunga.

Ao investigar a influência cada vez mais forte da oralidade na literatura contemporânea, acabamos por constatar o preconceito presente nos estudos lingüísticos tradicionais com relação à língua falada, que, considerada caótica e instável, não poderia sequer constituir objeto de estudo sistemático. Afirmações como esta, que hoje, se sabe, se mostram equivocadas, têm sua base numa perspectiva dicotômica que coloca fala e escrita em posições opostas, em que normalmente os elementos da oralidade aparecem comparados e “corrigidos” tendo como modelo os padrões da escrita. Procedimentos como esses, que, aliás, norteiam até mesmo o ensino da Língua Portuguesa nas escolas, servem apenas para disseminar preconceitos contra a modalidade falada, como se não fosse igualmente importante e necessária para o processo comunicativo. Por isso, na dissertação, terão grande relevância, ao lado da Estilística, os ensinamentos da Sociolingüística e da Análise da Conversação, por levarem em conta, respectivamente, aspectos como a heterogeneidade lingüística e a importância da conversação espontânea como realização elementar da língua, com regras e características próprias, distintas da modalidade escrita. Com base em noções como essas, a visão dicotômica foi substituída pela perspectiva do continuum, fundamentada, segundo Marcuschi, na crença de que

(...) tanto a fala como a escrita apresentam um continuum de variações, ou seja, a fala varia e a escrita varia. Assim, a comparação deve tomar como critério básico de análise uma relação fundada no continuum dos gêneros textuais para evitar as dicotomias estritas (Marcuschi, Luiz Antônio. Da fala para a escrita, p. 42).

Quando a questão é levada ao texto literário, vemos que os limites entre as modalidades se mostra ainda mais fluido, visto que é incontestável que, cada vez mais, a literatura contemporânea encurta a distância tradicionalmente imposta entre linguagem oral e a escrita. Na tentativa de estabelecer uma aproximação maior com o público-leitor, os escritores vêm promovendo uma espécie de “revolução” na linguagem, reivindicando, de maneira implícita e silenciosa, através de seus textos, um olhar menos preconceituoso no que diz respeito à transposição de estruturas e elementos típicos da oralidade. Olhando para o passado podemos verificar que esse “movimento” não é recente. Afinal, não podemos esquecer do “visionário” Oswald de Andrade, que no início do século XX, em seu “Pronominais”, já criticava a gramática tradicional, defendendo a dissolução do preconceito em torno da linguagem coloquial. Como esquecer, também, do brasileiríssimo Jorge Amado, que trouxe para a literatura o delicioso “sotaque” baiano? E Guimarães Rosa, praticamente um “subversivo”, trazendo o linguajar pulsante do sertanejo para as páginas de seus romances e contos, reinventando a sintaxe e o léxico? Mais recentemente, podemos citar Rubem Fonseca, com seu estilo jornalístico e extremamente atual, dando voz aos excluídos de nossa sociedade. Enfim, inúmeros são os exemplos sobre os quais poderíamos discorrer para comprovar as influências da oralidade na literatura brasileira.

E por que, então, Lygia Bojunga? Além do admirável trabalho com a linguagem, em que as marcas da oralidade são exploradas de forma inusitada e extremamente criativa (o que já justificaria a escolha de sua  obra como corpus para nossa análise), some-se a relação afetiva estabelecida com a obra da autora, iniciada na época da graduação, em que, ainda como aluna, fui apresentada à narrativa de Paisagem, e continuada no decorrer da vida profissional, já como como professora, ao mergulhar, juntamente com os alunos, no complexo universo da criação ficcional abordado em Fazendo Ana Paz, livro que representou o gérmen dessa dissertação. Ao me aprofundar na literatura de Bojunga, a paixão foi aumentando e também a certeza de que a escolha de seus livros para tratar da influência da oralidade na escrita fora mais do que adequada. Afinal, os aspectos mais vivos e pulsantes da modalidade falada podem ser vistos na obra da autora, seja naqueles textos em que a criança é personagem principal, seja nos de temática mais adulta – se  acreditarmos em tal delimitação. Isso sem empobrecer escrita literária ou simplificá-la em demasia; ao contrário, com a “prosa falada”, Lygia Bojunga demonstra ao leitor toda a riqueza do idioma, sua capacidade de recriação e suas potencialidades expressivas inesgotáveis, sem se importar em subverter as rígidas regras impostas pela gramática normativa para atingir seus objetivos. Afinal, estilo também pode implicar desvio.

As marcas da oralidade verificadas na obra de Lygia Bojunga se distribuem pelos níveis em que normalmente são classificados os estudos gramaticais. Desse modo, temos a tentativa de reproduzir aspectos da língua falada no que se refere aos sons (nível fônico), que resultam em efeitos estilísticos bastante surpreendentes, como a rouquidão da personagem de Os colegas, representada pela repetição da vribrante /r/:

–Você vai ter que usar aquilo tudo outra vez.

Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr.

– O que é que você disse? (Com a rouquidão de Flor às vezes era difícil à beça entender o que ela dizia:

Rr disse: paciência, a gente tem rrr tentar tudo. (Col., p. 49/50)

Aspectos da fala normalmente difíceis de ser reproduzidos, como a duração e a intensidade, aparecem com freqüência na obra da autora, por meio da repetição de fonemas, ou com a exploração de recursos gráficos como o uso de maiúsculas ou do itálico, demonstrando ousadia ao transpor até mesmo as barreiras da ortografia para expressar os mais variados sentimentos dos personagens: “Porto berrou: “O nó desmanchooooooooooooooooou!” (Ang., p. 93); “Eles? Eles? – O olho brilhou. – foi teu pai e tua mãe que falaram que tá na cara que eu não tenho madrinha nenhuma?” (CM, p. 74); em “– O cachorro que você ia me dar no dia do meu aniversário: CADÊ?” (SVL, p. 34).

As marcas da oralidade também se refletem no nível léxico-morfológico, representadas pela presença das gírias e expressões populares, algumas desgastadas pelo uso, aparecem revitalizadas, como em “(...) a gente resolveu procurar um cara de talento, mas ainda não conhecido. Por que não uma cara? Você?” (RC, p. 224), onde a questão morfológica também aparece fortemente marcada. Aliás, contrariando o pensamento de alguns autores de que a morfologia não se prestaria à elaboração estilística, Bojunga mais uma vez demonstra criatividade ao retratar tendências da oralidade que revolucionam também esse nível da gramática, tradicionalmente caracterizado pela rigidez: “Pois ela não gostava daquela cama velhérrima que ela tinha aqui? E não ficou lá na Europa anos a fio, escolhendo a dedo tudo quanto é lugar supervelhíssimo pra ir morar?” (Cam., p. 111); “Pra nós, não, a praia chega assinzinho na porta de casa.” (RE, p. 20).

No nível sintático, que maior liberdade oferece no campo da exploração estilística, vemos características típicas da modalidade falada, como as repetições (“Depois bebeu o suco que sempre bebia, tomou o iogurte que sempre tomava, comeu a torrada que sempre comia...” (RC, p. 211)), a simplificação verbal (“E se a Maria cai?” (CB, p.18)) e os chamados solecismos, definidos, nas gramáticas tradicionais, como “erros” na sintaxe ((“Eles ouviam falar do Pavão e vinham ver ele de perto.” (CM, p. 22)). Além disso, vê-se a utilização estilística dos sinais de pontuação, interferindo na organização frasal e tentando reproduzir ritmos próprios da fala: “Você e mais essa... essa... que bicho mesmo que ela é?” (Ang., p. 33); “– E olha, eu vou pedir à minha mãe (ela é legal, vai topar) pra você e o Pavão dormirem lá em casa também.” (CM, p. 30).

Então, o que se percebe da análise da obra da autora é que não há motivos para preconceitos no que se refere à utilização de elementos da língua falada no texto literário, desde que a escolha e a elaboração sejam efetuadas com talento e rigor por parte do escritor. Qualidades que, como vimos, não faltam à Lygia Bojunga, que não à toa foi a primeira latino-americana agraciada com a Medalha Hans Christian Andersen, em 1982, considerada o Nobel de literatura para crianças e jovens, e mais recentemente, desbancando concorrentes do mundo inteiro, foi a única vencedora do prêmio Astrid Lindgren Memorial Award – 2003 pelo conjunto de sua obra, dado pelo Parlamento sueco na pessoa da Rainha Silvia.

Já no Brasil, Lygia Bojunga recebeu, no ano de 2005, o prêmio “Faz a diferença”, concedido pelo jornal carioca O Globo a personalidades de diferentes setores da sociedade brasileira, que, através de seu trabalho, contribuem para mudar o país. Vencedora da categoria “Prosa & Verso”, a autora provou, de fato, fazer a diferença, na medida em que sua obra cumpre a função não só de entreter e emocionar, mas de celebrar a Língua Portuguesa, mostrando aos leitores um de seus aspectos mais instigantes.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A autora se refere a De Lobato a Bojunga – de Laura Sandroni, a Pierre Guiraud, citado por Nilce Sant’Anna em Introdução à estilística, e a Da fala para a escrita – de Luiz Antônio Marcuschi, além de outras, mas se esquece das informações sobre as obras citadas ou referidas. [Nota do Editor.].