A metáfora e o discurso

Lilian Manes de Oliveira (UNESA)

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo abordar diferentes tipos de metáfora, no discurso de Graciliano Ramos, na obra São Bernardo. Pretende ampliar o enfoque inicial, morfossintático-semântico, posicionando tal figura de linguagem como recurso argumentativo da expressão escrita no romance do mestre alagoano.

O arcabouço teórico centrou-se na contribuição de Castro (1978) e percorreu um roteiro que incluiu Aristóteles (1966), Jakobson (1977), Coseriu (1955), Cohen (1974), Câmara (2001) e Charaudeau (1992).

Se a língua é uma tentativa de expressão da realidade, não se caracteriza somente por ser uma estrutura de relações contrastantes, mas também de relações semelhantes.

Após o Círculo Lingüístico de Praga, seguindo-se a teoria de Jakobson (1977), posicionou-se que os tropos podem ser englobados em duas classes distintas: metáfora (relação por semelhança) e metonímia (relação por contigüidade). A Lingüística moderna deu relevo especial às duas. Há tendência para se. elevar a metáfora à categoria de a mais importante das figuras de palavras.

Sem desmentir a autoria do mestre russo, Henry (1971) atribui tal posicionamento a H. Adank, em publicação de 1939. Acrescenta este mais dois tropos: a ironia e a antífrase, que mantêm entre seus elementos uma relação de contraste. Adank retoma quase integralmente o conceito de Vossius (1978), filólogo holandês dos séculos XVI e XVII, que considerava quatro tropos principais: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia, destacando que a metáfora relaciona coisas separadas, não ligadas por nenhum elo natural, mas por um procedimento de semelhança.

Como definir metáfora?

A vários autores se tem atribuído a definição “Um conto é... um conto”. Pode-se parodiá-la, respondendo: metáfora é... metáfora.

Com efeito, desde a antiga Grécia se tentou defini-la. Aristóteles (1988) colocou na metáfora a idéia de transferência de sentido de um conceito a outro, idéia que permaneceu nas definições posteriores. Para alguns autores, ela é uma comparação implícita, reduzida, em que não aparecem conectores ou palavras que encerrem tal idéia. Cohen (1974) a conceitua como mantenedora de uma relação de semelhança entre duas idéias. Mas acrescenta-lhe a característica de redução do desvio de uma não-pertinência. Cita, como exemplo, a frase “O homem é o lobo do homem”, em que o predicado só se tornará pertinente ao sujeito, se entendido no sentido metafórico. Já Herculano de Carvalho (1969) distingue a metáfora comum, corrente, da metáfora oriunda de uma intuição criativa.

A parte criadora da metáfora tem sido objeto de atenção de alguns lingüistas. Câmara (2001) salienta seu caráter subjetivo: “ ao contrário da metonímia , não se fundamenta numa relação objetiva entre a significação própria e a figurada, mas sim numa relação toda subjetiva, criada no trabalho mental de apreensão” Mais adiante, salienta seu caráter sincrônico, o que a converte num recurso de grande efeito de sentido, pois, substituindo o termo próprio pelo figurado, acrescenta ao primeiro um dado expressivo que não tem como elemento da langue, já que “só existe quando o termo tem a significação própria nitidamente distinta da do termo que é substituído”; portanto processo enriquecedor do patrimônio lexical de uma língua.

Assim, varia ela de língua para língua, pois cada uma representa a realidade à sua maneira e não põe à disposição do escritor as mesmas possibilidades expressivas. Por outro lado, como observa Coseriu (1955), “o conhecimento lingüístico é muitas vezes um conhecimento metafórico”, por meio de imagens. Aparentemente, concorda com a teoria do inconsciente coletivo, de Jung, quando afirma que tais imagens se orientam no mesmo sentido, “que nos fazem pensar seriamente em certa unidade universal na fantasia humana”.

Charaudeau (1992) afirma que a metaforização propõe uma visão do mundo em que os signos sofrem uma metamorfose; produz-se uma contaminação entre os conteúdos semânticos de dois termos.


 

DESENVOLVIMENTO

O papel morfossintático-semântico da metáfora

Em São Bernardo, de Graciliano Ramos (1952), encontram-se: metáforas verbais, adjetivas, em aposto, construídas por sintagmas em que aparece o verbo de ligação ser ou por um só termo (chamadas puras); e aquelas ligadas a fenômenos e aspectos da natureza, plantas, animais e partes do corpo.

Metáforas verbais: na metáfora verbal, “há necessariamente dois termos: um é o verbo tomado figuradamente, o outro, em princípio, é um substantivo no seu sentido próprio, que mantém com o primeiro determinada relação sintática” (Castro, 1978).

No corpus analisado, foram encontradas as seguintes metáforas verbais:

“apanhou os cacos de sua pequenina vaidade” (cap. I). O verbo é metafórico, porque “da sua pequenina vaidade” faz o termo “cacos” ter o sentido figurado;

“mas arranjar palavras com tinta é outra coisa” (cap. I). O verbo é metafórico em relação a “com tinta”, pois, por seu intermédio, se obtém o sentido metafórico de “palavras”, uma vez que a expressão engloba ao mesmo tempo o sentido material de escrever e o mental de organização verbal do pensamento.

Seguem outros exemplos:

“O doutor... sacudiu-me a justaposição e a religião” (cap.III);

“ali escondia a amargura e a quebradeira” (cap. IV);

Apanhei o pensamento que lhe escorregava pelos cabelos emaranhados” (cap. V);

“ ...afastei um plano mal esboçado” (cap. V);

“Há umas pestes que ... arrotam importância.” (cap. VI);

A infelicidade deu um pulo medonho (cap. XXIX).

Metáforas adjetivas: também requerem dois termos. O adjetivo é metafórico por emprestar ao substantivo que modifica um significado que não lhe é próprio. O termo determinante pode ser expresso por um adjetivo, por uma locução adjetiva ou por uma oração adjetiva.

I.por adjetivo

vida agreste / alma agreste (cap. XIX)

 

II. por locução adjetiva

Está aqui enrascado numa conta de cabelos brancos. (cap. IX)

 

III. por oração adjetiva

O doutor, que ensinou rato a furar almotolia (cap. III)

Graciliano hiperboliza, no caso, a “esperteza” do doutor. Segundo Aristóteles, “as hipérboles que mais saboreamos são igualmente metáforas” (Castro, 1978).

 

Metáforas em aposto

“O safado do velhaco, turuna, homem de facão grande no município dele...” (cap. III)

“As do Dr. Magalhães, homem de pena, eram macias como pelúcia...” ( cap. XXV)

 

Metáforas com o verbo de ligação ser

Os exemplos a seguir expressam uma comparação implícita.

“Aquilo é um jumento” (cap. IX)

“... mas no gênero mulher é uma rede” (cap. XXV)

No capítulo VIII, o protagonista do romance – Paulo Honório –, disposto a ampliar a sua fazenda, a qualquer preço, começa a invadir as terras vizinhas. Dentre estas, a de um antigo desafeto, a quem mandara matar. As filhas deste último, herdeiras da propriedade, reclamam. Ele manda que protestem na justiça. E acrescenta: “ Como a justiça era cara, não foram à justiça.”

O predicativo cara, aliado ao substantivo abstrato justiça, revela a visão de mundo da personagem, caracterizado pela vitória da força e da violência sobre o direito de cada um.

 

Metáforas de um só termo

São metáforas expressas por um substantivo, por vezes acompanhadas de artigo. O contexto indicará a acepção do termo, que deverá ser tomado pelo leitor não no seu sentido corrente e sim no que se articular com o restante da frase. São metáforas por simples substituição, também chamadas puras, já que expressam o mais alto grau a que pode chegar o processo metafórico. Aristóteles (1966) a exemplifica, quando, ao referir-se a Homero, escreve: O leão ataca, assim caracterizando a personalidade do poeta grego. Tal metáfora reflete o processo da predicação por analogia (Carvalho, 1969), cujo modelo seria “Ele é um leão”.

“Os currais que se escoram uns nos outros, lá embaixo, tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus.” (cap. XXXVI)

O autor chama currais às habitações dos empregados da fazenda e bezerrinhos aos filhos destes. Segue-se o raciocínio: As casas dos trabalhadores são como currais/As casas dos trabalhadores parecem currais/As casas dos trabalhadores= currais.

 

Metáforas ligadas a fenômenos e aspectos da natureza,
plantas, animais e partes do corpo

“ ... esperneei nas unhas do Pereira. (“cap. III)

“Gosto dele. E’ corajoso, laça, rasteja, tem faro de cão e fidelidade de cão” (idem)

“ ... se o Pereira tinha pisado em casca-de-banana...” (cap. IX)

 

Comparação

A comparação é vista pela maioria dos teóricos como uma metáfora explicitada. Nela, destacam-se três elementos: o comparado (de quem se fala); o comparante (modelo) e o traço ou os traços comuns aos dois, o que constitui o fundamento da comparação.

No corpus, foram encontrados os seguintes elementos relacionadores:

a) como (o mais freqüente)

“Andei, virei, mexi, procurei empenhos – e ele duro como beira de sino. (cap. III)

 “Achei a propriedade em cacos: mato, lama e potó como os diabos.” (cap. IV)

 “Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato como Casimiro Lopes..”.(cap. XXXVI)

b) comparação gramatical (conjunção comparativa em correlação com uma palavra de intensidade) / mais... que; menos... que; tão... como; tanto... como.

“... e saíram dois artigos em que o nome mais doce que o Brito me chamava era assassino.” (cap. XIII)

Em todo o caso, suponho que os médicos estudam menos nos livros que abrindo barrigas.” (cap. XVI)

Tão bom era um como o outro.” (cap. XXIII)

“... essa gente ouve missa, mas não é católica, e tanto se deixa levar para um lado como para o outro. (cap. XXIV)

 

c) igual a

“Está bem, mãe Margarida, terá um tacho igual ao outro.” (cap. X)

 

d) verbo parecer

“Coitado! Tão miúdo, tão chato, parecia um percevejo.” ( cap. X)

 

e) comparativo substantivo:

“O pior é que o que é desnecessário ao senhor talvez seja necessário a muitos...” (cap. XXII)

 

f) comparativo lexical

“– Não há comparação.” ( cap. XXV)


 

O papel discursivo da metáfora

A força argumentativa da metáfora no discurso pode ser exemplificada no capítulo VII. Os pressupostos e os subentendidos dela decorrentes e aí presentes deixam transparecer a ideologia do mestre alagoano, a de denunciar a opressão do homem pelo homem, de uma classe social menos favorecida por outra, privilegiada.

Ao traçar o roteiro destruidor da Revolução Industrial, em relação ao ser humano de vida simples, massacrado pelo progresso material, o autor contesta os valores de uma sociedade emergente, numa técnica peculiar, caracterizada por uma preocupação constante com o individual, singularizando um determinado personagem, o que constitui o seu modo de evidenciar a realidade.

Inicia a narrativa por uma antítese: “Seu Ribeiro tinha setenta anos e era infeliz, mas havia sido moço e feliz”. E prossegue, usando metaforicamente o vocábulo “inocente”, a fim de contrapor duas atitudes: “ Seu Ribeiro não era inocente”. “Os outros homens, sim, eram inocentes”. Com apenas uma palavra, explicita a oposição saber versus ignorar, ao demonstrar que aquele que possuía o conhecimento liderava os que não o tinham. “A decisão do Major era um prego”, isto é, era firme, irretorquível.

“As histórias dos santos morreram na memória das crianças.” A frase, enunciada depois de “Veio o Vigário, que fechou a capela e construiu uma igreja bonita”, encerra o implícito de que uma religião como instrumento de poder se sobrepõe a uma religião sem fins materiais. Tal implícito encontra respaldo quando o narrador afirma adiante “ Efetivamente a cidade teve um progresso rápido”.

A conclusão sintetiza toda a crítica de Graciliano à sociedade capitalista. Se o conhecimento de mundo revela que o escritor pertenceu ao Partido Comunista, sofreu prisão e perseguição durante o Estado Novo, foi prefeito de Palmeira dos Índios, sem ceder à corrupção e às exigências pouco éticas do poder, interpretam-se as metáforas finais – “Quando o velho acabou de escorrer a sua narrativa, exclamei: – Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, Seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? E’ o diabo.” – como: Seu Ribeiro “deixou as pernas”, isto é, seu ritmo era o do homem que valorizava o ser humano, sem a pressa do progresso; o “automóvel” trouxe uma mudança de valores próprios da sociedade de consumo que se antevê então, devoradora dos direitos básicos do homem, que, pouco a pouco, se vê esmagado por uma corrente brutal, centrada em parâmetros exclusivamente econômicos.

 

CONCLUSÃO

Alguns teóricos afirmam que Graciliano Ramos tem um estilo seco e direto. Entretanto, à moda do latim que possuía poucas preposições, mas as usava bem, poder-se-ia dizer que suas poucas metáforas produzem um vigor discursivo tal que transformam seu texto narrativo em argumentativo. Do capítulo VII, cujo cenário, como o de quase toda a obra, é o lugarejo alagoano de Viçosa, se depreenderia a tese “ A Revolução Industrial destruiu os valores essenciais do ser humano, tese comprovada pelos argumentos neste artigo analisados.

 

referências bibliográficas

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