O LUGAR DO “BARROCO”
NA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA BRASILEIRA

Fernanda Shcolnik (UERJ)

 

O presente trabalho é resultado de um ano de pesquisa em Iniciação Científica sob orientação da professora doutora Ana Lucia Machado de Oliveira, realizada no Instituto de Letras da UERJ, com bolsa fornecida pela FAPERJ. Nossa investigação diz respeito ao período literário que se convencionou chamar de “Barroco”. Aqui, especificamente, abordo o lugar das letras coloniais na historiografia literária brasileira.

Sendo o período em questão geralmente pouco conhecido e estudado, tido como consolidado em nossa história literária dentro de certos parâmetros taxonômicos fechados, consideramos pertinente um retorno à classificação do mesmo, no intuito de revisar os critérios de avaliação que o situam em posição desprivilegiada nas histórias literárias brasileiras, motivo pelo qual o “Barroco” se encontra, muitas vezes, esquecido ou deixado de lado, até mesmo pelos cursos de Letras universitários.

É sabido que a denominação “Barroco” indica um tratamento pejorativo em relação às letras coloniais seiscentistas. Esse dado nos remete à origem da nossa historiografia literária, no século XIX, quando os críticos românticos, munidos de ideais nacionalistas e iluministas, postularam a necessidade de afirmação de uma cultura nacional, para a qual se fazia fundamental o registro da memória cultural brasileira, onde se incluem as letras produzidas no século XVII. Sendo assim, como invenção dos mesmos referidos críticos, a classificação das letras produzidas no período seiscentista foi elaborada dentro de um parâmetro historiográfico teleológico, organizando a história como “encadeamento de uma seqüência acabada de eventos” (Campos, 1989: 13) que deu origem à divisão da literatura que conhecemos hoje, em categorias como “Barroco”, “Neoclassicismo”, e assim sucessivamente, todas acompanhadas da idéia de superação em relação à anterior.

No entanto, a caracterização inaugurada no século XIX, regida pela idéia de progresso e continuidade, não corresponde à perspectiva de história em voga no século XVII, a qual abarcava um sentido estritamente providencialista, que incluía, como afirma João Adolfo Hansen, “a história como uma figura do tempo definido como ente criado, efeito e signo da única Causa e Coisa absolutamente autêntica, Deus.” (Hansen, 2006: 13). Com isso, como já havia constatado Haroldo de Campos (1989) ao tratar do paradoxo da “presença poética e ausência histórica” de Gregório de Matos, o que se impõe é a questão “da própria noção de ‘história’ que alimenta a perspectiva segundo a qual essa existência é negada, é dada como uma não-existência” (Campos, 1989: 11), além de configurar a idéia de inferioridade do período chamado “Barroco”, que se considera como superado.

No intuito de solucionar o problema das perspectivas divergentes de história, que constitui a origem primeira de outros anacronismos que envolvem a conceituação das letras coloniais, Hansen menciona Foucault, que trabalha com a descontinuidade em oposição à referida perspectiva teleológica/evolutiva de história tomada pelos românticos. Ao eliminar as positividades e propor a pura descontinuidade, Foucault suprime também as origens, situando os acontecimentos numa relação de autonomia, em oposição à ideologia de cunho evolucionista. Segundo Hansen (1997), com o fim do Romantismo ocorre a queda dos preceitos evolutivos regentes das histórias literárias e, conseqüentemente, a substituição do evolucionismo nacionalista tipicamente romântico pela multiplicidade descontínua dos “estudos-micro”. Dessa forma, há o deslocamento de unidades amplas, como século e época, para as rupturas, o que evita interpretações anacrônicas e deterministas.

No entanto, ao recorrermos à tradição historiográfica literária brasileira, interpretações anacrônicas são, ainda, encontradas com freqüência. Elas são oriundas da visão romântica, que divergia dos parâmetros dominantes no período histórico relativo ao século XVII, momento em que foram produzidas as letras em questão.

Prova da força da tradição historiográfica literária criada pelos românticos é a permanência desses conceitos até os dias de hoje, já que o próprio uso da nomenclatura “Barroco”, anacrônico, pois indica “confusão”, “mau gosto” e “irracionalidade”, foi uma atribuição de críticos do século XX, o que mostra o quão arraigada se tornou a imagem de inferioridade das manifestações seiscentistas. De acordo com Afrânio Coutinho (1950), o termo “Barroco” substituiu o termo “seiscentismo” a partir de 1914.

Segundo o mesmo crítico (Idem), o período de fins do século XIX ao início do século XX abarcou debates entre os críticos sobre uma possível nova classificação das manifestações artísticas e literárias, com o objetivo de afastá-las do parâmetro positivista que se seguia então. Nesse período, a categorização de Wölffllin, em sua obra Renascimento e Barroco, de 1888, que opunha “Barroco” e “Clássico”, no intuito de classificar obras pictóricas italianas, surge como alternativa para as classificações que se pretendiam substituir.

De acordo com esse novo esquema, enquanto no “Clássico” “predomina a linha do desenho nítido, que exige do observador uma observação quase estática de superfícies coordenadas em formas claras e distintas” (Hansen, 1997: 1), a designação “Barroco”

(...) classifica artes em que predomina o pictórico, ou a massa acumulada de cores confusas ou confundidas (...) que exige do observador uma observação minuciosa da integração ou da subordinação dinâmica das formas a um único ponto de vista. (Idem)

Assim, as imagens criadas pelo referido quadro wölffliniano são as de “Clássico” como formal e “Barroco” como informal.

Embora Coutinho (1950) coloque a morfologia de Wölfflin como uma tentativa de solucionar o problema classificatório da história das artes, que por iniciativa do próprio Wölfflin se estendeu às histórias literárias, posto que cada categoria determinava uma classificação fechada para mesmos períodos, Hansen enfatiza o fato de esta lógica se guiar, ainda, pelos preceitos evolutivos do século XIX, cuja aplicação generalizada é inadequada e a qual criticamos aqui. De fato, apesar da tentativa de Wölfflin no sentido de revisar os critérios normativos das determinações historiográficas, afirmando o “Barroco” não como declínio, mas como um desenvolvimento natural do “Classicismo” a um outro estilo, ele acaba por cair, novamente, na lógica evolucionista da qual tentava se afastar, ao colocar um estilo como causa ou origem daquele que o sucede.

Embora a teoria wölffliniana tenha atraído críticos e eruditos interessados na discussão teórica acerca da classificação historiográfica das artes e da literatura, pode-se constatar, de fato, o seu equívoco, não só ao enquadrar novamente os eventos históricos como contínuos, dividindo-os em “períodos” de caracteres generalizados, mas também ao, por exemplo, identificar a “irracionalidade” como característica “barroca”. Afinal, ao modelo retórico que se impunha como norma de produção poética no século XVII é impensável que se atribua “irracionalidade”, mas sim o contrário, já que é a racionalidade que se impõe como uma marca das artes seiscentistas. O senso racional estava sempre presente no processo de produção dessas obras, determinando o exercício da emulação, que estimulava os artistas a aperfeiçoarem cada vez mais a sua técnica, conhecida como imitatio, que demandava grande conhecimento, capacidade e apuração estéticos.

Como se não bastassem as tentativas de mudança com base nos conceitos de Wölfflin, houve ainda a sua apropriação pelas vanguardas do século XX e a criação, na contemporaneidade, da nomenclatura “neobarroco” para certas manifestações que acreditam operar uma aproximação com as letras seiscentistas. Essa classificação, entretanto, apenas reforça a “unificação de práticas, temporalidades e lugares muito diversos” (Hansen, 1997: 5) que constituíam o universo referencial do século XVII. Com tudo isso, é possível concluir que se faz necessária uma investigação mais aprofundada para que se possa realizar apropriações de uma nomenclatura que, por si só, já carrega inadequações e que, além disso, remete a invenções e crenças infundadas, posta a diversidade, que muitos desconhecem, do que se convencionou chamar “Barroco”

Voltando às origens românticas, o anacronismo ao qual as letras coloniais foram, e ainda são, submetidas se encontra principalmente na imposição de uma análise psicologizante do sujeito emissor, de acordo com a perspectiva de sujeito como indivíduo singular e original, inexistente no século XVII, e também na idéia de literatura como construção da nacionalidade. Em função da referida concepção de indivíduo, dotado de subjetividade própria, houve até mesmo atribuições de plágio ao mais expressivo poeta do período colonial, Gregório de Matos. Essas interpretações ignoram, entretanto, a lógica de produção poética da própria época em que viveu o poeta, que seguia modelos mimético-retóricos regidos pela racionalidade, numa lógica onde a emulação era prática vigente, e o conceito de originalidade, desconhecido.

Por tratar a história como um movimento contínuo e evolutivo, a caracterização romântica das letras seiscentistas resulta em generalizações simplistas e não condizentes com os verdadeiros preceitos de produção do século XVII. Elas acabam originando as já referidas categorias literárias com base na divisão em “épocas”, “escolas” ou “períodos”, que atendem ao intuito de universalização, coesão, e configuram, assim, uma falsa homogeneidade dos períodos do tempo e dos eventos inseridos neles.

Sendo assim, para readequar as letras do Brasil colonial à própria lógica que as orientava, é necessária a tentativa de nos colocarmos no lugar do homem do século XVII para que possamos compreender, até onde nos for possível, como era operada a produção das letras de então, nos aproximando ao máximo das ideologias do próprio período de enunciação das mesmas. Como afirma Hansen,

É pertinente reconstituir a primeira legibilidade normativa que aparece formalizada no contrato enunciativo dos discursos, lembrando que é justamente essa normatividade que foi – e continua sendo – eliminada nas histórias literárias brasileiras e nos cursos de literatura da escola secundária e da Universidade (Hansen, 2006: 23).

No período seiscentista, o Brasil se encontrava submetido ao poder político autoritário da monarquia portuguesa, configurada em Estado Nacional, cuja perspectiva era a do lucro com base na exploração do território colonial. Somava-se a isso o grande poder concentrado nas mãos da Igreja, a qual regia os parâmetros ideológicos da sociedade de então e dominava as instâncias educacionais por meio da ação coercitiva e controladora dos jesuítas, organizados institucionalmente na Companhia de Jesus. Junto à ação educacional estavam, ainda, os tribunais da Inquisição, que constituíam peça importante na imposição severa de ideologias teológicas.

Com isso, temos que o Brasil do século XVII apresenta um quadro de dependência política e econômica em relação à metrópole e, o que mais nos interessa aqui, uma sociedade submetida à teologia católica dominante. Ambos, poder político e religioso, como que se misturavam, sendo que um sustentava o outro. A sociedade brasileira colonial vivia sob valores teológicos e políticos severos que pregavam a ética cristã e o poder de Deus como ser superior e originário de todos os seres e coisas.

Em decorrência disso, a idéia de “corpo místico” correspondia ao imaginário social teológico da população colonial, onde toda e qualquer pessoa, independente do lugar ocupado na hierarquia social, era, antes de tudo, marcada pela posição subordinada diante do poder divino supremo. Ao invés do conceito de indivíduo singular, predominante na perspectiva romântica e inexistente no século XVII, o que havia então era uma sociedade situada como totalidade em relação à força superior de Deus.

Intimamente ligadas a essa lógica católica, as letras coloniais seiscentistas seguiam modelos retóricos onde a prática vigente era a emulação de autoridades consagradas, num processo em que se apresentavam “a mímese aristotélica, a definição escolástica da pessoa, a teologia-política católica, a tópica da ‘razão de Estado’, a ética cristã e um fortíssimo sentido providencialista da história.” (Idem, p. 17). As representações seiscentistas serviam à lógica dominante, na medida em que funcionavam como instrumento para reforçar constantemente as ideologias teológico-políticas dos lugares hierárquicos ocupados pelas pessoas dentro da totalidade do referido “corpo místico” composto por toda a sociedade.

Dentro desse aspecto, é interessante a aproximação que podemos constatar entre a ação repressora do Estado católico e a operação poética da sátira, gênero marcante das manifestações letradas seiscentistas no Brasil, aqui consagrado por Gregório de Matos. Ambos operavam o que Hansen chama de “tecnologia católica de controle do corpo e produção da alma” (Idem, p. 18). Isso porque a imposição da perspectiva de mundo católica realizada pelo poder vigente se estendia à produção poética, mais notavelmente na sátira, onde as críticas incisivas eram elaboradas não no intuito de combater o poder dominante, mas sim de moralizar os “faltosos”, aqueles que escapavam aos limites impostos pelo catolicismo. A ação da sátira consistia, portanto, na denúncia que ela operava. Embora por vias ficcionais. Por isso a sátira tinha caráter moralizante, e não combativo do poder político. O que ela combatia era exatamente a desobediência às claras regras sociais impostas pelo Estado e pela Igreja.

Dessa forma, pode-se pensar a semelhança entre discurso poético e discurso institucional, já que ambos, sátira e política católica, exerciam um papel social no sentido de um rígido reforço do pensamento teológico e, principalmente, no sentido de um controle da sociedade, constituindo-se num mecanismo repressor e de denúncia de que todo o Estado provém, de algum modo.

A relação de repetição que impunha lugares hierárquicos bem marcados e, ao mesmo tempo, a subordinação dos corpos à lei divina, levava a mesma lógica repetitiva às letras, as quais reproduziam modelos formais e temáticos que carregavam a ideologia vigente, no intuito de enfatizar os lugares sociais, exercendo um papel de controle político e manutenção da ordem hegemônica da Igreja.

Dado esse quadro referencial do período seiscentista, me detenho agora na investigação da Formação da Literatura Brasileira, de Antônio Cândido, que exclui o “Barroco” da Literatura Brasileira, ao postular a “literatura como sistema”. Esta pressupõe o triângulo autor-obra-público como requisito fundamental para a existência de manifestações literárias, junto a “uma certa continuidade de tradição” (Cândido, 1993: 16).

De acordo com esses pressupostos, ele suprime o “Barroco” de sua obra ao supor a inexistência, no mesmo, do referido “sistema literário”. Cândido afirma que apenas no século XIX a “nossa literatura aparece integrada, articulada com a sociedade, pesando e fazendo sentir a sua presença” (Idem), sugerindo, assim, a ausência de recepção das letras coloniais. Dessa forma, ele conclui que a Literatura Brasileira se configura apenas no decorrer do século XVIII.

A partir do prefácio à Formação da Literatura Brasileira, podemos identificar com clareza a presença da ideologia romântica na reflexão de Cândido. O tratamento dado por ele à história corresponde àquele tipicamente iluminista, ao colocar a “divisão de períodos” como um problema, solucionado pela referida lógica da literatura como sistema. Até aí, temos a questão da revisão da perspectiva de história, já referida, que se impõe necessária para reaver o lugar do “Barroco” não mais como um momento superado, mas como o que hoje chamamos de literatura, embora seja relevante ressaltar o anacronismo desse uso.

No que tange a essa questão, Haroldo de Campos, em O seqüestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: o caso Gregório de Mattos, escrito exclusivamente para combater a exclusão das letras coloniais da obra de Antônio Cândido, afirma: “De fato, essa ‘perspectiva histórica’ foi enunciada a partir de uma visão substancialista da evolução literária, que responde a um ideal metafísico de entificação do nacional” (Campos, 1989: 12). Ele enfatiza, ainda, o caráter teleológico dessa perspectiva, que opera o “encadeamento de uma seqüência acabada de eventos” (Idem, p. 13). Aqui, seria pertinente um retorno às mencionadas idéias de Foucault, para pensarmos os eventos da história como rupturas, com base na descontinuidade que elimina as origens.

Voltando ao prefácio de Cândido, encontramos também a exaltação do Arcadismo, justificada por uma perspectiva etnocêntrica que consagra a utilização dos padrões europeus pelos árcades como responsáveis pela inserção da “literatura do Ocidente no Brasil“ (Cândido, 1993: 17). Para Cândido, foi com os árcades que a nossa literatura de fato “funcionou” no país, em decorrência de uma produção séria e consciente que teria dado origem a uma “poesia civilizada, inteligível aos homens da cultura, que eram então os destinatários das obras” (Idem). Identificamos, ainda, no discurso do referido crítico, a presença do conceito de originalidade como valor literário, o que nos remete novamente aos românticos e sua idéia de subjetividade.

Com tudo isso, fica clara a certeza de Cândido sobre a suposta ausência de um “sistema literário” nas letras seiscentistas, no qual ele baseia a sua divisão classificatória da literatura em períodos e a própria exclusão do “Barroco” da Literatura Brasileira. No entanto, pela perspectiva de história unilateral utilizada por ele, onde Cândido toma para si o modo de ver do homem iluminista do século XVIII, mostrando-se um fiel seguidor das leituras românticas, podemos contestá-lo se voltarmos ao contexto do século XVII, situando o “Barroco” em seu devido lugar e tempo.

De acordo com o modelo teológico-político regente da sociedade colonial, é possível constatar a existência de um “sistema literário” próprio à época, situado dentro dos preceitos de repetição de modelos tanto sociais como estéticos. O fato de conceitos como os de indivíduo, literatura e sistema literário não existirem na sociedade de então não exclui, porém, a existência de um circuito, um sistema literário, como o quer Antônio Cândido, composto pelo trinômio autor-obra-público, mas dentro de uma perspectiva retórica, mimética e teológica.

Embora não houvesse um circuito literário propriamente, no que tange aos processos de comunicação e divulgação das letras coloniais, pode-se dizer que havia um sistema próprio dentro da lógica teocêntrica sob a qual se situava a sociedade seiscentista. A esse sistema correspondem regras de produção baseadas em preceitos retórico-poéticos que determinavam a prática da emulação de autoridades diversas e que pressupunham usos públicos diversificados, como afirma Hansen. Essas práticas estavam sempre permeadas pela lógica católica, sendo a repetição estética uma extensão da repetição social que se pregava, de que os homens, antes dos lugares que ocupavam na hierarquia social, correspondiam a um mesmo patamar, inferior a Deus.

Sendo assim, o próprio papel das letras seiscentistas se fundava em reforçar sempre essa mesma lógica, daí a prática da repetição que se estende do social aos preceitos poéticos. As representações teatrais, assim como as letras, visavam construir alegorias de aspectos da cultura católica, encenando a subordinação do corpo a Cristo e desprezando o corpo que não se submete.

Os destinatários dessas práticas eram públicos de diversas ordens, mas, apesar disso e assim como as práticas artísticas, regidos pela normatividade teocêntrica, que correspondia à aceitação dos valores teológicos e à respectiva ocupação, pelo indivíduo, de um lugar inferior em relação a Deus, cuja supremacia era imposta e estava sempre sendo encenada.

Cabe ressaltar que, dentro das práticas retórico-miméticas que regiam o modelo de produção poética, os autores coloniais eram, como afirma Hansen, “politécnicos, sendo capacitados a imitar os estilos de várias autoridades de gêneros diversos” (Hansen, 2006: 27). O mesmo crítico constata a existência de registros que mostram esse caráter múltiplo da prática da emulação, já que em autores seiscentistas foram encontradas reproduções de diversas ordens de discursos, entre elas “variações de um subgênero aristotélico do cômico, o ridículo” (Idem, p. 16) e também a maledicência, outra variação desse mesmo subgênero.

Com isso, podemos afirmar que havia uma liberdade de criação nas letras seiscentistas, embora essa liberdade se situasse dentro de normas fechadas, o que para nós pode parecer contraditório, mas que, no momento em questão, fazia pleno sentido.

Sendo assim, o sistema que envolvia as produções letradas de então se compunha de regras de produção e recepção prescritas pelo sentido retórico-teológico regente da sociedade colonial. Os produtores de discursos representavam a estrutura social vigente e o público esperava, já, encontrar a referida estrutura nessas letras, como num espelho.

Também na defesa da legitimação do “Barroco” há a perspectiva de Haroldo de Campos, na já mencionada obra que dialoga com a de Antônio Cândido. Sua abordagem apresenta a diferenciação entre os preceitos seiscentistas e românticos de produção literária a partir da apropriação do esquema classificatório das funções da linguagem, de Roman Jakobson. Campos constata, em capítulo do mesmo nome, o “privilégio da função referencial e da função emotiva” nas produções românticas oitocentistas como responsável pela rejeição das letras coloniais produzidas no século XVII, nas quais predominam as funções poética e metalingüística.

No Romantismo, o uso da função referencial refere-se à perspectiva objetiva e pretensamente documental decorrente da motivação nacionalista de descrever a pátria, configurando um quadro de nacionalidade demandado pela nova situação de independência política do Brasil. Nesse sentido, a literatura romântica se caracterizava por certos aspectos que, somando-se à questão da literatura como sistema, tiveram papel fundamental para o “seqüestro do Barroco” da Formação da Literatura de Antônio Cândido, já que ela correspondia, tomando novamente as palavras desse crítico, a uma literatura “interessada (...) voltada (...) para a construção duma cultura válida no país.” (Idem) E completa: “Quem escreve, contribui e se inscreve num processo histórico de elaboração nacional” (Idem).

É claro que aspectos relativos ao tempo de enunciação da literatura romântica podem explicar a elaboração de tal projeto; entretanto, é preciso, no presente momento, que se repensem as perspectivas históricas, que vêm, ainda seguindo os preceitos oitocentistas, inadequados para a caracterização de outras épocas que não a sua. E, conseqüentemente, pensar as letras coloniais dentro da lógica do seu próprio momento de enunciação

Foi exatamente isso que Antônio Cândido não fez, e que Haroldo de Campos exalta como atitude responsável pela exclusão do período colonial de sua classificação da nossa literatura. Para Campos, o seqüestro do “Barroco” é efeito do “próprio ‘modelo semiológico’ engenhosamente articulado pelo autor da Formação. Modelo que confere à literatura (...) as características peculiares ao projeto literário do Romantismo ontológico-nacionalista.” (Campos, 1989: 32) Nesse modelo, os valores recaem sobre uma literatura “integrada” e “comunicativa”, na medida em que ela “retrata” o nacional, configurando-se como “a língua geral duma sociedade à busca do autoconhecimento.” (Cândido apud Campos 1989: 33)

Já a função emotiva presente na literatura oitocentista relaciona-se à ênfase dada às subjetividades individuais pelos românticos, visto que o século XVIII trouxe a noção de singularidade aos sujeitos, que anteriormente eram tidos como totalidade homogênea perante a lógica teocêntrica, como vimos ao analisar a lógica vigente no século XVII.

Campos ressalta, então, o “não-lugar” do “Barroco” no modelo romântico, já que nas letras seiscentistas o privilégio recai sobre as funções poética e metalingüística, em operações onde são freqüentes os processos que envolvem a intertextualidade e a auto-reflexividade textual. Há uma diferenciação fundamental entre as operações estéticas seiscentistas e as românticas, já que as primeiras, segundo Campos, têm interesses puramente lúdicos, lingüísticos e retóricos, sendo que o que muitos já classificaram como “linguagem do excesso” apresenta motivações estéticas de fruição baseadas em ornamentos lingüísticos, discursos retóricos e jogos de linguagem e tema que visam não só a fruição, mas também a interação com o leitor, por meio de estruturas racionalmente construídas que demandam a decodificação por parte de quem as recebe. Por sua vez, a literatura romântica apresenta um propósito de funcionalidade, servindo a um projeto explícito e se utilizando de uma linguagem mais enxuta e simples, que visava basicamente comunicar, informar.

Assim sendo, o problema do lugar do “Barroco” na historiografia literária brasileira parece se referir à sua adequação a lógicas distintas, em função de variadas leituras de mundo e de estruturações político-sociais divergentes, as quais, conseqüentemente, determinam modelos de produção estética também diversificados. É preciso que se elabore, por parte dos críticos literários, autores da historiografia literária brasileira, uma revisão da perspectiva de história que vem sendo seguida por eles, para que possamos solucionar os anacronismos oriundos de análises que seguem critérios inadequados e que, por sua vez, acabam inserindo idéias também equivocadas acerca de manifestações literárias inseridas em outros contextos. No caso das letras seiscentistas, é preciso que se vá às obras dos autores e ao modelo retórico-poético específico, dominante nessa época.

 

Referências Bibliográficas

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––––––. século XVII. São Paulo: Cia. das Letras/ Secretaria de Estado da Cultura, 1989

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