PALAVRAS ADELIANAS
ARTE SOB A FORMA DE METÁFORA

Robson Barbosa Cavalcânti (UERJ)

 

Nesta comunicação pretendo apresentar algumas observações acerca da pesquisa que venho desenvolvendo como aluno do curso de especialização em Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação da Profa. Dra. Maria Teresa Gonçalves Pereira. Estudando o estilo de Adélia Prado, imaginei que o trabalho desta artista da palavra pode ser conduzido, de forma prazerosa e proveitosa, ao espaço das aulas de português.

Os poemas de Adélia Prado remetem a um universo muito particular. A escolha lexical, as construções sintáticas, as possibilidades semânticas e a sonoridade de seus poemas apontam para um estilo repleto de paradoxos intrigantes, como profano x sagrado, prosaico x poético, condição assumida de mulherzinha x mulher que anseia por liberdade, recato x explosão de sensualidade.

Uma característica fortemente presente na poética adeliana é a profusão de metáforas. Esta figura de linguagem, considerada por Aristóteles “a rainha das figuras”, proporciona à obra da escritora mineira efeitos expressivos carregados de criatividade, beleza e afetividade.

O uso lingüístico de metáforas proporciona uma experiência de liberdade ao falante-escritor, estimulando-o ao exercício de novas “aventuras” no campo da linguagem. A metáfora liberta o usuário da língua do uso enfadonho de imagens óbvias e desgastadas – muitas vezes catacréticas – e o encoraja na tentativa de experiências inovadoras.

Penso que o estudo estilístico de construções metafóricas – recorrentes na obra da escritora natural de Divinópolis – pode se transformar em agradáveis aulas de estilística. Aliás, o fato de o estudo acerca do estilo estar tão afastado do âmbito escolar muito me incomoda. A escola tem desprezado uma oportunidade profícua de transformar as aulas de língua portuguesa em momentos prazerosos.

O desenvolvimento de atividades que provoquem questionamentos nos alunos a respeito dos usos da língua e de todas as possibilidades que esta proporciona pode enriquecer – e muito – o processo de ensino-aprendizagem de língua materna, além de colaborar para a instauração de um ambiente que favoreça o gosto pela leitura. A estilística ajudar muito o professor quanto ao desempenho desta tarefa, com grandes possibilidades de sucesso, afinal, como diz Maria Teresa Gonçalves Pereira (1996), “a oportunidade de tratar a linguagem associando o prazer (estético) ao saber (ortodoxo) só se pode dar plenamente através de uma abordagem estilística”.

A análise estilística contempla todos os elementos lingüísticos que interagem na construção de imagens poéticas dotadas de expressividade: sonoridade, léxico, sintaxe e semântica. O professor pode conduzir o aluno a várias leituras, estimulando, sempre, a percepção da camada afetiva das palavras e das construções, além de propor a discussão acerca das escolhas do aluno-autor na elaboração de seus próprios textos.

E por falar em textos, sugiro a adoção de textos poéticos em aulas de português porque estes apresentam uma fonte muito rica de possibilidades expressivas, obtidas muitas vezes, inclusive, em função da presença de metáforas.

A escolha cuidadosa dos textos por parte do professor dará início a um estudo lingüístico bastante profícuo. A adequação daqueles ao perfil dos discentes é fundamental.

Veremos, a partir de alguns poemas de Adélia Prado, exemplos de como as imagens metafóricas construídas a partir dos elementos lingüísticos combinados entre si, de forma significativa, podem ser estudados:

Explicação de poesia sem ninguém pedir

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento. (Prado, 1991: 49)

A definição de trem-de-ferro recorre ao uso da linguagem denotativa para definir esse meio de transporte somente no primeiro verso do poema, que aqui se encontra reproduzido na íntegra. A visão que a autora tem do objeto trem é potencializada expressivamente através da inserção da conjunção adversativa mas, que introduz uma série de significações para a máquina que se move sobre trilhos. A conjunção é responsável pela passagem de uma definição puramente dicionarizada para a exibição de imagens que fazem de um comboio ferroviário um objeto especial.

O sentimento da autora em relação ao sujeito trem-de-ferro é mostrado a partir da conjunção acompanhada pelo verbo atravessar conjugado no presente do indicativo e é complementado pelos verbos atravessou e virou, que introduzem os dois últimos versos.

Pode ser trabalhado, junto aos alunos, também, as possibilidades criativas de definição dos elementos do mundo material que a metáfora proporciona. Seria recomendável comentar o aspecto morfossintático da construção do primeiro verso, onde temos um sujeito simples constituído por um substantivo composto, numa oração que possui predicado nominal, evocando um ambiente favorável para a liberdade de expressão do eu-lírico da poetisa, através dos desdobramentos metafóricos do predicativo do sujeito.

Vamos a outro poema de Adélia:

Impressionista

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alanrajado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo. (op. cit., p. 37)

Penso que o professor não pode perder a oportunidade – que um poema como este acima proporciona – de dizer aos seus alunos que um procedimento quotidiano, corriqueiro e banal, como o de pintar uma casa pode ser transformado em poesia através do uso cuidadoso, carinhoso com a linguagem.

A metáfora constantemente amanhecendo pode ser o ponto de partida para o desenvolvimento de atividades nas quais os alunos podem elaborar construções metafóricas para poetizar seu dia-a-dia. O estudo da língua pode (na minha opinião, deve) reverter-se numa prática de sensibilização para todos que trabalham com ela no âmbito escolar.

Vejamos com o poema Verossímil (op. cit., p. 111) mais uma sugestão de estudo de texto a partir da abordagem estilística, tendo como base a análise de construções metafóricas:

Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
‘Canta alto, espevita as palavras bem’.
Eu levantava vôo rua acima.

O estudo do título do poema seria um modo interessante de iniciar o trabalho. Uma consulta ao dicionário e a leitura do verbete cuja palavra nomeia esta obra de arte podem constituir-se num ponto de partida para discussão da relação entre o título e os versos do poema.

Outra questão merecedora de estudo seria quanto à exploração da existência ou não de metáfora no fragmento virava anjo. Pode-se, também, propor reflexão quanto ao teor do verbo virar conjugado no pretérito imperfeito precedendo o substantivo anjo. Acredito que seria necessário fazer um estudo semântico deste verbo e de seus usos em outros textos, sem desperdiçar a oportunidade de comentar sobre a relação emaranhada entre os aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos na elaboração dos textos de qualquer natureza, mesmo quando um texto poético é o corpus de uma aula.

A palavra anjo, apresentada logo no primeiro verso, pode originar uma discussão bastante produtiva quanto à camada afetiva do léxico: o conteúdo emocional e expressivo que algumas palavras de nossa língua têm, em comparação a outras.

È claro que a obra de Adélia Prado possibilita uma infinidade de estudos lingüísticos, mas para o momento, deixamos que a audácia dos leitores destas linhas, a iniciativa de recorrer à obra desta mulher desdobrável para transformar suas aulas de português em momentos de festa, de celebração.

Por fim, deixo uma pergunta que remete ao título deste trabalho: quando a metáfora atinge um nível de criatividade e beleza que surpreende, emociona, fascina e apaixona o leitor, por que não considerá-la uma obra de arte? Quando conscientizarmos – nós, professores de língua portuguesa que atuam fora do âmbito acadêmico – nossos alunos de que mais que um meio de comunicação eficiente, a língua serve como um instrumento poderoso para expressar sentimentos e emoções, podemos realizar um trabalho interdisciplinar no qual arte e língua caminharão juntos com o objetivo maior de sensibilizar o aluno em relação não só à literatura, mas à qualquer tipo de manifestação artística: estaremos exercitando corações e mentes para o delicioso exercício de apreciação da vida através da arte.

 

Referências bibliográficas

CASTRO, Walter de. Metáforas machadianas. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978.

PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. A Linguagem como Forma e Força Expressiva do Pensamento. Revista Tempo Brasileiro: Leitura e Interpretação. 124: 115-125. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991.