A construção do ethos
– um recurso persuasivo

Wagner Alexandre dos Santos Costa (UFF)

 

INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é analisar a construção do ethos de garotas de programa que se anunciam em jornais. Para tanto, seguiremos os conceitos de Mangueneau (2002 e 2005), nosso aparato teórico basilar. Esse artigo é parte de dissertação de mestrado em curso na Universidade Federal Fluminense, por isso apresentará resultados ainda parciais. 

Dos domínios discursivos de que dispõe nossa sociedade, o jornal é talvez o mais constante na vida da população, pois alcança todos os estratos sociais e as regiões do país, diariamente. Contém informações sobre diversos aspectos da nossa vida e do mundo, pelo preço de uma passagem de ônibus, aproximadamente. É escrito em linguagem culta e atual. Isso tudo torna-o fonte para vários estudos. 

Ele é usado também para anunciar produtos e serviços oferecidos por empresas e por pessoas. Há um caderno específico para publicação desses anúncios, os “Classificados”, onde se anunciam eletrodomésticos, carros, apartamentos e um mundo de bens. Anunciam-se, também, inúmeros serviços, inclusive os sexuais

Assim, os classificados sexuais (tipo de classificado específico para oferta de serviço sexual), gênero discursivo em questão nessa pesquisa, dividem com outros tipos de classificados (de imóveis, de veículos) o caderno de nome Classificados, nos jornais como O Globo, O Dia, Jornal do Brasil e Extra, donde se extraiu o corpus por um período de 30 dias, em março de 2006.

O custo do anúncio varia conforme o número de palavras: até 20, paga-se o valor mínimo da tabela. Disto decorre a presença abundante de abreviaturas no texto, a fim de não se ultrapassarem as 20 palavras.

Quem se anuncia não pode utilizar qualquer palavra que desejar, pois há restrições verbais. Palavras consideradas de baixo calão pelas empresas são proibidas. Então, ele terá de encontrar recursos variados para se caracterizar e, ao mesmo tempo, seduzir o leitor.

 

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

A “profissional do sexo” como qualquer profissional, é uma pessoa comum nas horas em que não está trabalhando, podendo representar papéis sociais (e discursivos) diferentes da garota de programa, ou seja, de consumidora (no supermercado), de cliente (no salão de cabeleireiros), de mãe (se tiver um filho), de mulher (se tiver um companheiro, namorado, marido, entre outras categorias) etc.

Quando sujeito do dizer, nos classificados sexuais, no entanto, ela é uma entidade discursiva elaborada pelo EUc (o sujeito do fazer), protagonizando, na cena da enunciação, somente o papel de garota de programa. Essa noção corresponde ao que Charaudeau (1996:5-43) denomina EUe. Ela se refere ao papel discursivo recuperado pelas marcas da enunciação, em oposição à pessoa (real) do sujeito da comunicação. Simultaneamente, há outra noção relativa à subjetividade no enunciado, fundada a partir de indícios textuais variados: é a de ethos.

Os antigos já se dedicavam ao estudo do ethos. Eggs (apud Amossy, 2005:32), retomando Aristóteles, lembra que um orador inspira confiança “(a) se seus argumentos e conselhos são sábios e razoáveis, (b) se argumentam honesta e sinceramente, e (c) se são solidários e amáveis com seus ouvintes”. Para tanto, o sujeito falante precisa, então, tomar conhecimento das idéias e valores pertencentes ao imaginário do destinatário. Somente dessa forma poderá eleger a maneira mais apropriada de se expressar, condizente com o seu projeto de fala. . Dessa forma, o ethos corresponderá à imagem necessária ao locutor para conquistar credibilidade junto ao seu interlocutor.

Enfim, Ethos, de acordo com Perelman & Tyteca (1999:363) resume-se “à impressão que o orador, por suas palavras, dá de si mesmo.”. Maingueneau (2002), nossa opção teórica, entende-o pelo fenômeno em que “por meio da enunciação, revela-se a personalidade do enunciador” e Barthes (1966, apud Maingueneau, 2002:98) destaca que

São os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua sinceridade) para causar boa impressão: são os ares que assume ao se apresentar [...] O orador enuncia uma informação, e ao mesmo tempo diz: eu sou isto, eu não sou aquilo.

Assim, segundo essa perspectiva, a eficácia do ethos deve-se ao fato de que, sem estar necessariamente explícito (dito) no enunciado, ele envolve de alguma forma a enunciação (mostra-se). Ducrot (1984), citado por Mangueneau (apud Amossy, 2005:122), afirma que “o que o orador poderia dele dizer, como objeto da enunciação, concerne (...) ao ser do mundo.” Trata-se, assim, das escolhas das palavras, dos argumentos, do ritmo e da entonação de seu discurso.

 

ANÁLISE DO CORPUS

De um modo geral, já que as “profissionais” oferecem serviços sexuais, a descrição do seu corpo (da forma que é feita) e a referência ao atendimento (ao programa) são, em si, um comportamento discursivo que transmite um ethos necessário de liberalidade e objetividade diante do sexo, identidade compatível ao mundo construído no seu enunciado. No anúncio a seguir,

Caixa de texto: CLAUDINHA JACAREPAGUÁ
Morena assanhadíssima! Seios durinhos, cinturinha pilão, quadrilzão enlouquecedor! Escultural!
Fernanda morenaça! Lábios suculentíssimos (finalizador)! Rebolando inesgotavelmente! Privê/ R$35,00. 9967-6824/ 9842-5314.
 

 

 

 

 


 

a maneira de se descrever utilizando os adjetivos assanhadíssima, durinhos, enlouquecedor, suculentíssimos e “finalizador” valida a finalidade do gênero textual – negociar sexo. Além disso, apela-se aos sentimentos do seu público-alvo, visando atingi-lo em seus desejos e completar a sua busca (como que a finalizá-la), pois é oferecida como “isca” a descrição de “um serviço de qualidade”: “Rebolando inesgotavelmente” (oração adjetiva). Observe-se, ainda, neste outro, a construção do ethos de liberalidade sexual a partir dos adjetivos (extremamente) “safada” e (quadril) “guloso”.

 

Caixa de texto: GABRIELA LINDÍSSIMA!!!
“Extremamente safada”, 20 aninhos, mulata gostosa!!! 1.70alt. (seios grandes) estilo mulherão (103 quadril guloso)!!! Atendimento carinhoso R$20,00. Copacabana 3820-9887.
 

 

 


 

Poder-se-ia afirmar a existência de um tom que conduziria a um ethos de garota de programa. Esse tom é o que daria, como explica Maingueneau (apud Amossy, 2005:72) “autoridade ao que é dito” , conferindo ao enunciador um status de “fiador” desse dito. Segundo o autor (idem.), todo discurso, mesmo os escritos possuem uma vocalidade específica que o vincula a uma fonte enunciativa.

Entretanto, o ethos (maior) da sensualidade e sexo, que pode ser adquirido como produto, é reforçado por vários outros que se desdobram a partir dele. Notam-se, a saber, ethos de ninfeta, da discrição, do ineditismo, do envolvimento emocional e de celebridade. Vejam-se, respectivamente, os classificados em questão:

 

Ethos de ninfeta:

Caixa de texto: LOLITA 18 ANINHOS (Novidade) Beleza jamais anunciada estilo namoradinha, completamente inesquecível, carinhosa, discretíssima apartamento aconchegante. Atendimento relaxante. Tel. (0xx21) 3903-0916/ 9445-9099 24hs Copacabana
a)

 

 

 

Caixa de texto: IOKO!!!
Princesinha oriental, 19, cabelos longos, toda delicada, combinando beleza/ sensualidade!!! Agrada com seu jeitinho carinhoso!!! Verdadeiramente linda!!! 2255-4983/ 22554532

 

 


 

b)

 

 

 

Em (a) o próprio nome do enunciador remete a um personagem infantil do cinema (filme Lolita) ao qual se soma o sintagma “18 aninhos”, donde se destaca o sufixo –inho (constante no vocabulário infantil). Destaque-se, no classificado (b), que “Ioko” é uma “princesinha” (-inha), além de ser delicada e de ter “jeitinho” carinhoso.O substantivo princesa remete a algo que está aquém da maturidade, sentido acentuado pelo sufixo –inha. Princesinha também é uma forma carinhosa de se tratar uma criança linda (“Verdadeiramente linda!).

 

Ethos da discrição

Ser discreta, na atividade da prostituição, é qualidade fundamental para a garota, pois, socialmente, o sexo pago não é bem-visto socialmente e, também, o homem (por diversas razões) não se admite como cliente. Segundo Hite (1981), vários homens disseram: “ter de pagar por sexo torna o homem um ‘perdedor’”. Esse aspecto reflete-se no discurso do enunciador ao construir o ethos da discrição. Veja-se:

Caixa de texto: LAÍS N.IGUAÇU!!!
(3066-1511/ 9762-6965/ 3101-5280). Loiraça, 1.70 altura, marquinha biquíni, bonita carinhosa, discreta, 25ª. Massagem relaxante. Indecepcionável!! Atendimento hotéis/ Escritórios.
 

 

 

 

 

 


 

O fato de o enunciador se afirmar como “discreta” não é o que nos conduz ao ethos apresentado. A própria utilização da maioria das palavras no seu grau normal, sem exagerar no emprego dos sufixos -íssimo, -aça, confere ao texto certa simplicidade. Outra pista textual é a descrição do serviço como “Massagem relaxante”, que adquire um tom eufemístico (se cotejada com outras como “Rebolado gostoso” ou “Quadril guloso”, por exemplo). Além disso, dizer que atende o cliente no escritório (de dia, no horário do almoço), e não apenas em privè ou hotéis, faz inferir uma aparência comum, discreta.


 

Ethos do ineditismo

Comumente, nos classificados sexuais, notam-se expressões como “recém-chegada”, “jamais anunciada”, “novidade” e adjetivos gentílicos como “gaúcha”, “catarinense” [1]... O objetivo do seu emprego é indicar, por exemplo, que a garota de programa (a) está no “mercado” há pouco tempo; (b) é novata na profissão ou (c) que sua imagem na localidade não está gasta. Tudo isso se relaciona ao fator novidade, caro ao universo do sexo. Esses sentidos, depreendidos a partir do anúncio compõem o ethos do ineditismo. Veja-se o exemplo:

Caixa de texto: BONSUCESSO!!!
Bárbara Morenaça. Andréia Loirinha sensual, manequim 38. Jamais anunciadas!!! Gabriela gatinha sarada. 3h= R$100,00. 3889-8275. Aceitamos cartões. 24h Precisa-se de moças.

 

 

 

 

 


 

Ethos de envolvimento emocional:

Caixa de texto: ANINHA LOIRINHA
Beijos ardentes! Bonita mesmo, rostinho apaixonante, corpo escultural, cinturinha fina, coxas grossas, 19 aninhos. Privê/ Hotéis 2232-0348/ 3852-2148. (R$20,00/ 35,00/ 50,00).
Este tipo de ethos comporta certos enunciados (como “adoro beijar” e “beijos ardentes”) que conferem à garota de programa uma aura de sinceridade a respeito do serviço que presta – como se estivesse igualmente envolvida pela emoção na relação. “Adorar beijar” faz significar envolvimento, em oposição a uma atitude de frieza e passividade sexual. Está implícita, também, a paixão que ela oferece (por 1 ou 3h) ao cliente, prometendo torná-lo único e desejado naquele período. Nos exemplos seguintes, apresentamos algumas dessas ocorrências:

a)                                                                                    

 

 

b)

Caixa de texto: BÁRBARA!!!
Mulata passista, 30; quentíssima””” 1, 82alt. Corpo escultural!!! Cabelos longos. Especialista em prazer!!! Adoro beijar muuuuuito!!! Acessórios!!! Senhores / Damas. Tel:2542-4454/ 8136-3118 Copacabana
 

 

 

 


 

O beijo representa um tabu na prostituição, algo interditado. Diferente da comunhão dos sexos, da cópula, ele não é apenas a necessidade, mas também o sentimento (no caso, constituiria o supérfluo, o luxuoso), o que forneceria mais uma situação envolvente no campo das emoções.

Por esse motivo, para não se envolver (não se apaixonar) pelo cliente (para não ocasionar prejuízos de ordem financeira) a personagem de Julia Roberts, em Uma linda mulher, não beija, não oferece esse “complemento” no programa.

É contrariando esse tipo de personagem que os enunciadores de a e b constroem um ethos de envolvimento emocional, inferido com base nos elementos destacados nos anúncios. Tal imagem é um forte recurso de persuasão/sedução porque rompe com uma idéia negativa ao projeto de fala do enunciador: a de que “prostituta não beija”.

 

Ethos de celebridade

Por vezes, o enunciador coloca em primeiro plano o seu “currículo” , que lhe dá um estilo, uma personalidade, um ar de pessoa importante, um ethos de celebridade. Isso é feito, às vezes, paralelamente à descrição; outras, com apagamento desta. Observem-se os exemplos:

Caixa de texto: CAREN (CAPA de Revista)
Brasilia/SP exterior elite 172/m40 sensualíssima impecável! Fetiche. At./Alto nível. Cachê R$400,00 Barra condução própria Tel: (021) 9788-8318.
a)

 

 

 

“Caren” logo de início desfila o seu currículo de “capa de revista”, embora não diga de qual veículo mediático. Ela informa, ainda, localidades onde atua (Brasília e São Paulo, no Brasil, além do exterior) e delimita o seu público-alvo: “elite”, “R$400,00”. Evidentemente possui carro (“condução própria”) ou pode arcar com a despesa de um táxi. A descrição, mesmo sendo discreta, não é deixada de lado em função da apresentação das atividades já realizadas.  

O custo do programa é alto, se comparado a outros anunciados, e ela o divulga como “cachê”, ou seja, trata-se de uma artista, não de uma garota de programa (como as outras, tantas no mercado).

Logo abaixo, veja-se o classificado de“Joyce”, que se diz “famosa” por ser “destaque” em “revistas”, por ter participações na “TV” e por ter atuado em filmes pornô. Nele não há preocupação com a descrição do seu corpo, como na maioria dos casos, porque o currículo já faz a sua apresentação. Além disso, se ela é famosa, todos conhecem a sua beleza (descrever-se seria redundância). Destaque-se que ela estará no Rio em “curta temporada” (tal como os espetáculos são anunciados) e aceitará “somente executivos”, aqueles poucos que conseguirem contar com os “seus serviços”:

Caixa de texto: FAMOSA JOYCE
Quase mulher!!! Destaque Revistas/ TV, Atriz pornô. Recém-chegada, S.P. Curta temporada R.J. Somente executivos!!! Privê luxo. R$200,00. 9396-4568 (www.bonecajoyce.com.br)

 

 

 

 

 

 


 

Assim, nesses anúncios, constrói-se, dessa forma, um ethos de personalidade, de pessoa incomum, de celebridade, já que elas dizem atuar (ou atuam) no mundo artístico e algumas (como “Joyce”) seriam “famosas. Isto justifica o “cachê” de R$200,00, R$400,00 e até mesmo de R$1.000, 00 que uma anônima não poderia cobrar – por mais bela que fosse.

 

CONCLUSÃO

Na composição do ethos, o enunciador incorpora estereótipos, representações sociais cristalizadas, valorizados pelo grupo do qual pretende adquirir adesão. Assim, imagens como a da ninfeta e a da novata, da mulher (ou travesti) famosa, ou ainda a da garota de programa envolvida , até mesmo a da discreta demonstram alguns dos recursos persuasivos empregados por ele nos classificados sexuais.  

A capa em que o ethos se constitui visa à diminuição do estigma de prostituta clássica e, por conseguinte, à inclusão em alguma categoria que possa, simultaneamente, qualificar o enunciador (ora produto) em sua descrição, despertando no cliente em potencial (os leitores dos jornais) a empatia necessária ao seu projeto de persuasão.

O enunciador só terá o seu discurso como meio de influência sobre o interpretante, excetuando-se aqueles casos de “famosas”. Por isso, gerir o ethos com competência pode determinar a atitude do “cliente”, já que são tantos os anúncios e tantas as garotas de programa que se descrevem como lindíssimas e esculturais.  

Do total de 300 anúncios analisados, 65% (195 anúncios) utilizam algum dos tipos de ethos aqui listados. Desses, 46% (89,7 anúncios) correspondem ao ethos do ineditismo e 31% (60,4 anúncios) ao de envolvimento emocional, seguidos pelo ethos de ninfeta, que conta com 19% (37 anúncios) do emprego desse recurso. Os 4% restantes (7,8 anúncios) dividem-se entre os de celebridade e discrição, usados com menor freqüência.  

Assim, pode-se inferir, a partir de tais dados, que, pela ótica das garotas de programa, é a idéia da novidade que realmente seduz o homem. E, em segundo lugar, é a promessa de envolvimento no programa, que se opõe à suposta frieza da prostituta, que parece ter a preferência. Também o fetiche pela garotinha virgem demonstra-se, pelo tom infantil observado nos anúncios, fazer parte da preferência dos “clientes”.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso – a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.  

CHARAUDEAU, Patrick. Para uma nova análise do discurso. In: CARNEIRO, Agostinho Dias. O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996.

EGGS, Ekkehard. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: AMOSSY, Ruth (org.) Imagens de si no discurso – a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

HITE, Shere. O relatório Hite sobre a sexualidade masculina. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1981.

MANGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Contexto, 2002.

––––––. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso – a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

PERELMAN, Chaim & TYTECA, Lucie Olbrechts. Tratado da argumentação – A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1999.  


 

[1] Considere-se que os jornais analisados circulam no Rio de Janeiro.