DOS EFEITOS NASCEM OS AFETOS
A RETÓRICA DE GRACIÁN

Ana Lúcia M. de Oliveira (UERJ)

 

O objetivo central desta comunicação, inserida em um investigação mais ampla acerca da retórica seiscentista e, mais especificamente, sua realização no âmbito dos teóricos eclesiásticos, é enfocar a relevante teorização retórico-poética do inaciano Baltasar Gracián.  

Sabe-se que os estudos retóricos ocupavam um lugar de destaque na formação dos jesuítas. Como professor de tal disciplina, Gracián aprofundou suas investigações nessa área. Observando a inexistência de uma arte, de um estudo da faculdade do engenho e de suas manifestações, dedicou-se a tal tarefa na obra Agudeza y arte de ingenio (1648), “en que se explican todos los modos y diferencias de conceptos”, segundo prega sua página de rosto. Reconhecendo que, na retórica antiga, só se encontravam “vagas indicações” (Gracián, 1974: 9)[1] acerca da agudeza, o jesuíta pretende ampliar esse campo do saber e abarcar um novo território, inscrevendo-se a contrapelo do movimento de retração do espaço retórico, que fora circunscrito apenas à ars bene dicendi. No âmbito da teorização eclesiástica ibérica, ao longo do século XVI, o escopo da referida disciplina ainda foi mais reduzido, com a denúncia dos perigos da retórica não submissa à verdade cristã e a legitimação exclusiva da eloqüência sagrada; como corolário desse fato, apenas uma elocutio que privilegiasse o ornamento conveniente e subordinado ao bom senso e à boa direção decretada pela ortodoxia poderia ser tolerada pela ética e pela estética oficiais.  

Para Gracián, a agudeza não constitui um detalhe, mas a própria alma do discurso – “son los conceptos vida del estilo, espíritu del decir” (p. 11) –, uma alta manifestação do engenho, faculdade do entendimento imprescindível para a constituição de um herói, de um discreto, ou de um cortesão prudente. No texto em foco, ele constrói uma teoria do estilo engenhoso que informa toda sua obra. Se a retórica consiste em uma arte de convencer, de seduzir, ela necessita do estudo prévio dos mecanismos que regem o objeto sobre o qual se exercerá a sedução. Assim, a retórica do concepto que é a agudeza se explica por meio das observações acerca da conduta social, realizadas nos primeiros tratados gracianescos, de tal forma que máximas morais e preceitos retóricos são, na maioria dos casos, reversíveis, como nos indica o inaciano: “Esta conexión es constante, que ha de ser moral y artificiosa, así como todo el compuesto lo es” (p. 284).  

Em sua análise do discurso, a retórica antiga distinguira a dispositio, o plano, a técnica de agenciar as partes, e a elocutio, a expressão lingüística, os ornamentos verbais. Gracián procede do mesmo modo em seu tratado, dividindo-o em duas partes: na primeira, a mais extensa, enfoca as figuras de engenho, identificadas à agudeza simples ou incompleja, que se reduz a um só ato de correlação entre termos; na segunda, examina a agudeza compuesta, isto é, a arte de agenciar as agudezas simples para construir uma estrutura mais elaborada. Em suas palavras, esta última é “una composición artificiosa del ingenio en que se erige máquina sublime, no de columnas, ni arquitrabes, sino de asuntos y de conceptos” (p. 19). Para ele, a arte da agudeza, distinta do mero ornato, não se limita à construção de simples ditos para rematar uma frase, ocupando-se primacialmente dos conjuntos, dos arcabouços, para “componer un todo artificioso mental” (p. 273). Significa dizer que o discurso é considerado um tecido de formulações agudas, sucedam-se elas em cascata, em um encadeamento de figuras engenhosas, ou se ordenem numa composição geométrica de conjunto.  

Não cabe aqui analisar o multiforme mecanismo da agudeza, em suas mais sutis realizações, esclarecido por Gracián ao longo de 63 discursos, que distinguem uma grande quantidade de figuras do engenho, assegurando que o seu número é infinito assim como o das estrelas (cf. p. 15-16). Embora retire os ditos agudos dos lugares da retórica greco-romana[2] e pretenda ampliar o campo dessa disciplina, incorporando-lhe a investigação acerca do engenho, o jesuíta paradoxalmente começa por distinguir arte de ingenio de retórica, ou melhor, de uma certa concepção da retórica. Um rápido exame dos capítulos evidencia que ele, de fato, só recusa uma pequena parte da retórica, a elocutio, essa tropologia, arte do ornamento a que se reduzira lentamente o imenso território da ars bene dicendi. Ou antes: só a aceita com a condição de que tal campo seja fertilizado com a reconquista da argumentação, coluna vertebral da retórica antiga, palavra funcional cujo objetivo, freqüentemente esquecido, é a persuasão. Desse modo se explicita que a passagem da retórica fria, morta, como ele a chama, à agudeza se faz quer pela contingência que legitima o dito agudo, quer pela explicação que o esclarece, que o reforça e o justifica. É, portanto, uma argumentação que funda a adequação da figura: após a perturbação provocada de início, toda figura é justificada, esclarecida, trazendo o apaziguamento da remissão. Retomarei esse ponto posteriormente.  

Em linhas gerais, a proposta gracianesca consiste em ultrapassar os tropos da retórica por meio do conceito e da agudeza – cuja causa eficiente é o engenho –, que asseguram a solidez da figura, restituindo-lhe “sua dignidade perdida” (Pelegrín, 1985: 156). Assim as figuras não concernem mais a uma elocutio gratuitamente ornamental, mas, transpondo os limites nos quais a tropologia reduzida as circunscrevia, elas reencontram seu antigo papel de ferramentas estratégicas da persuasão, voltando a ser funcionais no âmbito do discurso persuasivo da agudeza, pois esta “tiene también sus argumentos” (p. 215), como veremos.   

A obra de Gracián difere totalmente das retóricas que floresciam em seu tempo, pelo menos em dois aspectos. De um lado, não oferece uma nova organização ou um subconjunto das figuras de retórica tradicionais, classificadas pessoalmente, para estudar ou sofisticar o mecanismo de uma figura precisa; tampouco é uma taxionomia, como se tornaram as retóricas clássicas, separadas de sua razão de ser: a arte de persuadir. Em vez de seguirem a nomenclatura consagrada, as classificações do jesuíta agrupam os tropos segundo o critério de seu funcionamento em vista de um discurso eficiente, que ilustra o mecanismo do engenho. Assim, as figuras por proporção e improporção podem reagrupar tropos tais como a metáfora, a comparação, a antítese e a inversão, mas essa classificação só se justifica em função do caso estudado da agudeza e não o inverso. Aliás, a relativa indiferença de Gracián pela etiqueta precisa na denominação dos procedimentos verbais examinados – por exemplo: harmonia, correlação, proporção, paridade, correspondência e acordo são termos equivalentes em seu tratado – indica que ele não se situa no nível da simples rotulação. Em síntese, é a apreensão dinâmica do mecanismo do engenho que lhe interessa e não sua definição petrificada. Benito Pelegrín o confirma: “a Agudeza, uma retórica do movimento. Barroca, também, por isso” (1985: 166). Outra coordenada a levar em conta reside no fato de a fragmentação e a expansão básicas da obra negarem a possibilidade de um ponto de vista analítico, a partir do qual a descrição e a prescrição retóricas possam ser formuladas; em outras palavras, negarem “as funções regulatórias explícitas da retórica clássica” (Mihailescu: 1996: 53).  

O propósito geral de Gracián, como vimos, não é o de estudar a agudeza como um mero ornato, mas defini-la, analisá-la, mostrar suas possibilidades, a partir do exame de fragmentos textuais de diversos autores. Seu ponto de partida centra-se na definição da agudeza como fruto excepcional do engenho, considerado uma faculdade diferente do juízo, que “no se contenta con sola la verdad”, assim como este, mas “aspira a la hermosura” (p. 13). Tal formosura apresenta um matiz intelectual, não meramente material, e acorde com a natureza do concepto ou artifício conceptuoso.  

Em certa medida, pode-se afirmar que o concepto gracianesco – “un acto del entendimiento, que exprime la correspondencia que se halla entre los objetos” (p. 14) – se situa entre o pensamento e a linguagem, operando a mediação entre os dois. Além disso, o artificio conceptuoso é o ato de entendimento que expressa uma nova e harmônica correlação entre dois ou três “conoscibles extremos” (idem). Convém lembrar que Gracián se afasta deliberadamente da noção lógica de conceito, como imagem da coisa que o entendimento forma dentro de si, e a amplia para “relación o correspondencia” entre extremos ou objetos, que, ao ser expressa, passa a ser um “artificio conceptuoso”, uma agudeza, “uma correlación artificiosa exprimida” (p. 14). Postula o jesuíta que, para ser perfeito um estilo, é preciso atender simultaneamente ao aspecto material das palavras e ao caráter formal dos pensamentos; desse modo, não basta a alma da agudeza, é preciso saber expressá-la bizarramente, a partir de um constante jogo de luzes e sombras, como se infere do exemplo: “Puédese decir de los conceptos lo que de las figuras retóricas: ni todo el cielo es estrellas, ni todo el cielo es vacío [...] y altérnanse las sombras para que brillen más las luces” (p. 220).  

A partir do exposto, conclui-se que o concepto aparece apenas quando expresso em uma forma artística (o artifício), visto que a correspondência que estabelece constitui, ao mesmo tempo, sua própria condição de existência; conforme parece evidente, essa figuração conceptuosa interessa especialmente a Gracián em seu tratado.  

O mecanismo do engenho se concentra em duas operações distintas e complementares: a comparação de dois objetos ou de dois termos (os dois “extremos do conceito”, p. 17) os mais distantes possíveis, para declarar, de modo inesperado, sua paradoxal unidade, mas essa aproximação enfatiza obrigatoriamente a distância essencial que os separa; ou, inversamente, a confrontação de dois objetos que parecem idênticos à primeira vista, para revelar o que os opõe, provocando, com isso, uma perturbação dos hábitos mentais. Em outras palavras, na terminologia musical de Gracián, exprimir de modo agudo as relações inesperadas entre dois termos consiste em revelar suas surpreendentes semelhanças, sua harmonia, sua consonância, até então mudas; em contrapartida, se dois termos, ou dois objetos, são aparentemente semelhantes, a sutileza surpreendente será a de fazer ressoar sua dissonância ou uma inusitada concordância, até então secreta (p. 16-17).  

A via assim aberta nos permite destacar que Gracián privilegia não as figuras equilibradas, ou mais familiares, tais como a simetria, o símile, a harmonia, mas tenta ultrapassá-las pelas do contraste, da dissonância, da assimetria, em suma, do equilíbrio precário ou do desequilíbrio manifesto: “Todo gran ingenio es ambidextro, discurre a dos virtudes; y donde la ingeniosa comparación no tuvo lugar, da por lo contrario, y levanta la disparidad conceptuosa” (p. 93). Acrescente-se ainda que a racionalidade do ingenio apresenta-se como “dúbia, definitivamente não-cartesiana” (Mihailescu: 1996: 50), incluindo, além da beleza, a loucura ou delírio, conforme nos indica o próprio jesuíta: “Dicen que la naturaleza hurtó al juicio todo lo que aventajó al ingenio, en que se funda aquella paradoja de Séneca, que todo ingenio grande tiene un grado de demencia” (p. 331-332). A esse respeito, Mihailescu já registrava que “considerado retrospectivamente, o ingenio gracianesco resiste à compreensão da razão instrumental como apenas a razão não-instrumental o pode fazer” (1996: 53). Tal binariedade – ou seja, a simetria harmônica ou antitética e discordante –, que configura a estrutura das figuras retóricas múltiplas analisadas pelo jesuíta, também está presente em outros artifícios engenhosos caros ao autor, tais como o emprego persuasivo do mistério, do enigma (aparência e explicação), da alusão e da referência erudita a outros escritores. Focalizemos nossas lentes no primeiro desses recursos.  

Barrocamente, Gracián apresenta uma “concepção persuasiva do mistério”, já apontada por Alcir Pécora (1996: 160) na obra de Antônio Vieira. Em seu tratado, após diferenciar os tipos mais gerais de agudezas, prevê aquela que se daria por “ponderação misteriosa” e que consiste em “levantar misterio entre la conexión de los extremos, o términos correlatos del sujeto, repito, causas, efectos, adjuntos, circunstancias, contingencias; y después de ponderada aquella coincidencia y unión, dase una razón sutil, adecuada, que la satisfaga” (p. 37). Trata-se de um artifício engenhoso, que se justifica pela exigência de dificuldade que freqüentemente se associa ao prazer intelectual: “quien dice misterio, dice preñez, verdad escondida y recóndita, y toda noticia que cuesta, es más estimada y gustosa” (p. 37; grifos nossos) e ”la verdad, cuanto más dificultosa, es más agradable” (p. 44). José Maravall destacou a eficácia persuasiva desse jogo de decifração e do efeito de suspensão por ele provocado, tão caros às produções textuais seiscentistas, ressaltando que “o método pedagógico do difícil tem em Gracián seu mais firme partidário” (1986: 448). No entanto, o desafio instaurado pela dificuldade não entabula um jogo arbitrário; útil recurso para fincar mais solidamente um saber, pressupõe, antes, o desempenho do papel de intérprete, na tarefa de recuperar a razão que presidiu à formulação inicialmente obscura. As considerações precedentes deixam entrever que, ao jogo desencadeado pela ponderação misteriosa, a verdade não é excêntrica, tampouco a fundamentação teológica. É o que se infere da seguinte observação de Costa Lima:   

[...] a poética de Gracián é uma retórica, que, dando por implícita a doutrina estabelecida, se empenha em explicitar a maneira de convertê-la em verbalmente eficaz. A admiratio consiste no engenho que respeita e ofusca a verdade; melhor dito, que aparenta ofuscá-la para que melhor a respalde. Daí o destaque, entre os procedimentos codificados, do mistério (1995: 122).

Tendo em vista o que se examinou anteriormente, pode-se considerar que a elocução aguda, com sua freqüente utilização de recursos alusivos e elípticos, espelha o mesmo processo alegórico-misterioso tão estimado pela hermenêutica cristã, cuja tarefa principal consiste em descobrir os sinais da divindade nas coisas criadas. Está bem nítida, portanto, a fundamentação teológica do mistério, que se postula “em oposição ao casual, isto é, ao que não encontra razão para as correspondências, ou ao imaginário, quer dizer, ao que fantasia razões sem fundamento de ser” (Pécora, 1996: 161).  

“Tiene la agudeza también sus argumentos, que si en los dialécticos reina la eficacia, en los retóricos la elocuencia, en éstos la belleza” (p. 215) – afirma Gracián, com isso reconhecendo, como característica essencial da agudeza, a peculiaridade do prazer estético suscitado. Dedica-se, então, à análise da beleza, fazendo a anatomia da forma bela e agradável, para compreender seus mecanismos próprios e, assim, arrancá-la à contingência do acaso, a fim de poder reproduzi-la à vontade. Em uma primeira instância, portanto, o engenho e o prazer são convocados como juízes do sucesso ou do malogro da formulação engenhosa. Todavia, discordando de Pelegrín (1985: 147), não considero que tal atitude configure um “formalismo” avant la lettre, uma vez que mesmo o prazer suscitado pela beleza das formas ou pela solução dos enigmas apresenta questões que solicitam a intervenção do juicio e do recurso ao critério de verdade, colocados inicialmente entre parênteses. Tentarei esclarecer tal argumento.  

Reatando alguns fios da trama construída, destaque-se que, desde as primeiras páginas de seu tratado, Gracián postula que o engenho não se preocupa apenas com a verdade, que ele concerne à beleza e, além disso, ao prazer (p. 13-16). E mais: o encontro do ingenio e do juicio é celebrado como uma conjunção ideal e feliz, mas não necessária para a produção do artificio conceptuoso. Entretanto, sua teoria do fundamento indispensável à formulação aguda volta a focalizar esse juicio anteriormente excluído das preocupações do engenho. De modo que, embora dedicada ao ingenio e não ao juicio, como é enunciado no prefácio, a Agudeza, nas palavras de Pelegrín, “não abdica, no fundo, da categoria intelectual da faculdade crítica do juízo que pode ser moralmente investida” (1985: 106). Ainda segundo esse analista, Gracián incorreria em contradição, ao reintroduzir o juicio, inicialmente considerado não necessário, no campo das operações agudas. Todavia não se trata de uma contradição do autor e, sim, de uma interpretação equivocada das suas palavras: o caráter inclusivo do vocábulo “apenas”, empregado pelo jesuíta, escapou ao referido crítico, que preferiu ressaltar como aspecto central da formulação gracianesca a operação excludente, em que “a tirania do juízo é recusada [...], o engenho é liberado da hipoteca da verdade” (idem, 153). A partir desse recorte, inteiramente parcial, segue-se a configuração de um inusitado teórico seiscentista “formalista”, em cuja obra se detecta um “transe do nominal, uma verdadeira religião da palavra” (idem, p. 52). Discordando do intérprete em questão quanto a esse ponto preciso, avalio que o inaciano espanhol não recusa tal faculdade crítica, apenas a deixa temporariamente em segundo plano, quando se trata de enfocar especificamente as figuras retóricas, a partir dos numerosos exemplos citados; no entanto, o juicio, inscrito em linha d’água ao longo de sua teorização, é freqüentemente convocado, quando se trata de estimar o caráter bem-fundado das formulações engenhosas. Selecionemos alguns exemplos:  

Cuanto más especial el fundamento de la comparación y más sustancial, hace el concepto más realzado y más perfecto (p. 93; grifos nossos).  

Requiérese, pues, que alguna circunstancia especial dé motivo y ocasión al encarecimiento, para que no sea libremente dicho sino con fundamento, que es darle alma al concebir (p. 117; grifos nossos).

Cuanto más disonante es la propuesta, si después, la razón la desempeña, es más agradable el concepto (p. 146; grifos nossos).  

Es ésta la operación máxima del entendimiento, porque concurren en ella la viveza del ingenio y el acierto del juicio (p. 175; grifos nossos).

Essa breve amostra já indica que o texto em foco opera o desdobramento das duas forças opostas do deleite e da rentabilidade moral, ou seja, do prazer lúdico da escrita em contraponto à construção intelectual do álibi moral que exige, segundo sua própria conceituação, um fundamento concreto para o jogo abstrato do texto. Torna-se patente, então, que Gracián partilha a teoria do utili dulci horaciano, tão cara aos teóricos da Companhia de Jesus: a obrigação de só tolerar o doce da invenção verbal, do prazer estético em suma, com a condição de que seja apenas o invólucro estimulante do útil. Em suas próprias palavras,: “siempre ha de atender el arte al fruto de la moralidad, que es el fin de lo dulce y entretenido” (p. 296) e “el [estilo] artificioso es más perfecto [...] y más agradable, porque junta lo dulce con lo útil, como lo han practicado todos los varones ingeniosos y elocuentes” (p. 324; grifos nossos).  

Desse modo, a agudeza e o próprio processo de criação só são justificados na medida em que apresentem um fundamento concreto, um pretexto real para fundá-los em verdade; para Gracián, em suma, não há jogo verbal, não há invenção poética, fora do que ele denomina de “o fundamento”, isto é, o substrato material, concreto, sem o qual toda obra desmorona sob sua própria vacuidade. Como corolário desse fato, qualquer figura, da mais simples à mais complexa, da agudeza simples à composta, deve ser argumentada. Nessa substância, explícita ou não, reside a obra digna desse nome; sem ela, tudo é apenas “vã flor sem fruto” (p. 296). Em uníssono com Antônio Vieira, que, no “Sermão da Sexagésima” condena as produções verbais que se afirmam como livre espaço de jogo, Gracián postula:  

Esto es discurrir con fundamento, asuntos plausibles, llenos, sustanciales y cuerdos; bien diferentes de aquellos de que muchos caprichos se pagan, metafísicas de viento, alucinamientos, predicar en abstracto [...] sin provecho ni agrado del auditorio (p. 287).

As observações anteriores nos levam a concluir que, na teorização gracianesca, a gratuidade do jogo, a estranheza da figura, a incongruência da metáfora enigmática são apenas aparentes. Para a formulação engenhosa aparentemente mais confusa, serão encontrados – e desemaranhados – os fios perdidos, restituindo-se a rede de sua argumentação. Convém reiterar: a evidência do papel do juicio e do fundamento na configuração da produção verbal é tão acentuada que, mesmo Benito Pelegrín, que, de modo geral, tende a privilegiar o caráter formalista e literário da obra do jesuíta – sua “indiferença face à verdade e ao juízo” (1985: 147) –, conforme apontamos, é forçado a reconhecer tal evidência, ao afirmar, na parte conclusiva de seu texto, que “se há jogo, é um jogo sagrado, pois se refere ao Verbo, aos mistérios da religião” (idem, p. 179).  

Em síntese, a teorização retórica gracianesca, destacando a sinuosidade do artifício poético – em outras palavras, a maneira que encarece a matéria (cf. Gracián: Oráculo manual, # 155) –, explora ao máximo a grande eficácia do efeito de suspensão, tão caro à estética da admiratio seiscentista bem como à sua apropriação no âmbito da Contra-Reforma. Sutil estratégia para obter a persuasão do público e para “fincar mais solidamente um saber”, a doutrina da suspensão, aliada ao culto do mistério e ao elogio da dificuldade, sujeita a atenção do leitor, “fazendo-o partícipe da obra, fazendo-o esforçar-se em seu deciframento” (Maravall, 1986: 447).  

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATLLORI, Miguel. Gracián y la retórica barroca en España. Retorica e barocco. Atti del III Congresso Internazionale di Studi Umanistici. Roma: Fratelli Bocca, 1955. p. 27-32.  

COSTA LIMA, Luiz. Imitatio e barroco. In: Vida e mimesis. São Paulo: Editora 34, 1995.  

GRACIÁN, Baltasar. Agudeza y arte de ingenio. 5ª ed. Madri: Espasa-Calpe, 1974.  

––––––. El héroe. El político. El discreto. Oráculo manual y arte de prudencia. Barcelona: Plaza & Janés, 1986.  

MARAVALL, José A. La cultura del Barroco. 4ª ed. Barcelona: Ariel, 1986.  

MIHAILESCU, Calin-Andrei. A taste for conceptos: Gracián’s rhetoric. Ars Rhetorica. The Canadian Journal for Rhetorical Studies, vol. 6. Carleton University: Centre for Rhetorical Studies, may 1996.  

PÉCORA, A. Alcir. Razões do mistério. In: NOVAES, A. (org.) A crise da razão. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.  

PELEGRÍN, Benito. Introduction. In: GRACIÁN, B. Art et figures de l’esprit. Trad., glossário e notas de B. Pelegrín. Paris: Seuil, 1983.

––––––. Éthique et esthétique du baroque. L’espace jésuitique de Baltasar Gracián. Arles: Actes Sud, 1985.  

TESAURO, Emanuel. Il cannocchiale aristotélico. Berlim/Zurique: Verlag Gehlen, 1968.  


 


 

[1]. Ao longo deste trabalho, todas as referências de página serão relativas a essa edição.

[2]Para um desdobramento dessa filiação retórica, consultar a introdução de Benito Pelegrín à sua tradução francesa da obra de Gracián: Art et figures de l’esprit (1983). Miguel Battlori (1955, 27-32) igualmente assinala a vinculação aristotélica do tratado gracianesco, atribuindo sua origem ao plano de estudos dos jesuítas: a Ratio studiorum.