ESTRATÉGIAS DE (DES) CONSTRUÇÃO DE FACE
EM ENTREVISTA POLÍTICA

Marcela Langa Lacerda Bragança (UFES)

 

Este texto é uma aplicação de noções teóricas concebidas pela Pragmática que tem como objeto de estudo a relação entre o sistema lingüístico e o usuário desse sistema, situado em um determinado tempo histórico, em um determinado lugar, em contexto específico.  

Nosso objetivo será a verificação da aplicabilidade teórica dos preceitos pragmáticos no gênero entrevista política veiculada ao suporte jornal. A escolha desse gênero se fez pela presença de interação que há entre os participantes nesse texto, que vão construindo seus enunciados a partir das intenções comunicativas que estão em jogo no contexto em que a entrevista se dá.

Como a Pragmática é a disciplina Lingüística que permite uma análise a partir do contexto enunciativo, levando em conta o dito e o não-dito, como as inferências, as intenções, observaremos o cenário em que se desenrolou a entrevista que será alvo de nossa análise, feita ao longo da fundamentação teórica.   

Como corpus de análise, utilizaremos a entrevista publicada pelo jornal A Tribuna, do Estado do Espírito Santo, em 23/03/2006. A entrevista, publicada na seção Política, na verdade, não se trata de uma entrevista política no sentido estrito do termo. Ela foi concedida por Teresa Cristina Santos de Barros, dona da empresa Valtac Comércio de Aparelhos Terapêuticos, após um escândalo político que repercutiu nacionalmente: a compra de 17 poltronas massageadoras, de couro, com controle remoto para vereadores do município da Serra, representando um gasto de R$ 63,7 mil. Se isso não bastasse, na compra houve um superfaturamento de R$ 8,7 mil. A notícia ganhou destaque por ter causado revolta popular, levando estudantes e Ongs às ruas, visto que não é a primeira vez que os administradores desse município desperdiçam o dinheiro público. Com a notícia publicada no Jornal Nacional, alguns vereadores decidiram devolver as cadeiras, outros disseram não abrir mão delas e a polêmica prolongou-se na mídia estadual por quase todo mês de março e início de abril deste ano.

A entrevista, portanto, constitui uma tentativa de amenizar os efeitos do fato político, e de acalmar os “ânimos” da população, tentando convencê-la de que foi um ato legal, sem fraudes.  

A análise, devemos ressaltar, não pretende ser sistemática nem estanque, sobretudo porque outras interpretações são possíveis a partir do arcabouço teórico pragmático. Trata-se de indicar um percurso de análise possível para o gênero entrevista, a partir de noções da Pragmática.  

Utilizaremos as abreviações AT para indicar o turno do jornal A Tribuna e TCSB para o turno da entrevistada Teresa Cristina Santos Barros quando procedermos à análise.  

 

Rumo da Lingüística: em direção à Pragmática

Quando a Lingüística ganhou autonomia científica, estabeleceu dicotomias, recortou parte da linguagem para ser seu objeto de estudo, inaugurou um método de análise rigoroso para dar conta das exigências do programa e, assim, empreendeu um novo rumo para o estudo da língua(gem). Sem dúvida esse período constituiu um marco na história da lingüística não só porque a fez ganhar força de ciência, mas também porque representou um grande avanço nos estudos de línguas, libertando-as, no sentido de que fez com que qualquer língua passasse a ter valor, ou seja, fez com que qualquer língua fosse passível de ser descrita. Falamos do Estruturalismo. As perguntas desse olhar científico eram: “Como o todo de uma língua, em particular, é constituído? Quais são as partes que o integram? Como os elementos de cada língua se combinam? E como eles se opõem?” Respondendo a esses questionamentos com o recorte metodológico feito, esse período delimitou seus alcances e seus limites.  

Seus limites: Quando atingiram essa etapa, em meados do século XX, um novo método científico avança nos estudos Lingüísticos: o Gerativismo. Nesse modelo, o que se propõe é, muito longe de uma gramática pedagógica, uma gramática científica da língua, cujo objetivo era explicar como os enunciados são construídos na mente do falante. A grande pergunta que se faz nesse momento é: “O que há em comum entre os falantes, de todas as línguas, para todos terem essa capacidade?” Na revisão histórica da Lingüística, muitos autores levantam a seguinte questão: O Gerativismo foi um modelo que rompeu com o modelo anterior? As respostas são diversas. O que se coloca, porém, como central nesse debate é que o recorte teórico de cada modelo é diferente: as concepções metodológicas, as perguntas, os objetivos são diferentes. Essa diferença na construção dos objetos de estudo pressupõe contradições que se manifestarão no interior do discurso científico e que, em contrapartida, legitimarão os processos de sua constituição histórica.  

Portanto, aqui não falaremos em ruptura de um período para outro, mas falaremos em um passo à frente dado pela Lingüística.  

Nos períodos posteriores, diversos modelos surgiram com o objetivo de explicar fatos que não eram explicados pelos modelos anteriores, como o funcionamento discursivo da língua, a relação entre linguagem e o sujeito, a cognição, a sociedade e sua relação com a língua e a história, a língua em uso, etc. É assim que na década de 60 inaugura-se o novo modelo de análise lingüística de que trataremos: a Pragmática.  

O que caracteriza uma abordagem Pragmática é o fato de ela trazer para a análise lingüística a relação interpretante/signo/objeto, formulada por Peirce (1878), filósofo americano que primeiro usou a palavra pragmatics. Essa relação, conhecida como tríade pragmática (Pinto, 2004: 51), provocou uma mudança de olhar teórico sobre os fatos lingüísticos, porque em vez de tentar descrever o sistema de uma estrutura abstrata, idealizada, os estudiosos trazem para a pesquisa os fenômenos reais da língua, observáveis na fala. Daí dizer-se que a Pragmática é a ciência do uso lingüístico.  

Outra característica da Pragmática é extrapolar os limites da lingüística formal na medida em que não descarta nenhum elemento não convencional: ela estuda os mais diversos fatores que regem nossas escolhas lingüísticas na interação social, como o não-dito, e os efeitos dessas escolhas sobre nossos ouvintes, como as inferências.   

Enquanto os modelos anteriores eram centrados na língua-abstrata, a Pragmática volta sua atenção para conjunto da enunciação, uma vez que só o conhecimento do sistema da língua (suas combinações e oposições) é, comprovadamente pela Pragmática, insuficiente para entender certos fatos lingüísticos. A linguagem, numa abordagem orientada pragmaticamente, é indissociável de suas conseqüências éticas, sociais, econômicas e culturais. Vista dessa maneira, a linguagem faz parte do lugar social de quem a usa.  

Yule (1996), segundo Lins (2000), definiu a Pragmática como “o estudo do significado do falante”, o que implica considerar as intenções comunicativas do falante e do ouvinte, uma vez que os turnos de fala vão se alternando. Por essa análise considerar tanto aspectos da estrutura da língua quanto aspectos relacionados ao usuário, a Pragmática tem sido considerada como algo separado da “estrutura da língua” ou microlingüística.  

A Pragmática inda não é um campo de estudo rígido, com fronteiras bem delimitadas em relação às outras áreas. Ao contrário, o que se percebe é uma sobreposição de áreas que integram seu escopo.  

Embora haja uma heterogeneidade de trabalhos com temas e objetivos diversos denominando-se inscritos no âmbito pragmático, há pressupostos básicos que caracterizam a abordagem pragmática, tais como: análise do uso concreto da linguagem, atenção centrada nas intenções dos falantes ao proferirem determinados enunciados, análise de fatores que interferem na escolha lingüística e quais são os efeitos dessas escolhas.  

Assim, as perguntas que são feitas pela Pragmática são: “Como os falantes são capazes de entender não literalmente uma dada expressão? Como podem entender mais do que as expressões significam? E por que o falante prefere dizer de uma maneira e não de outra?” Em linhas gerais, a Pragmática se propõe a demonstrar como os participantes de uma situação comunicativa fazem inferências necessárias para chegar ao sentido dos enunciados.

Também é comum a definição de Pragmática como o estudo do “aqui” e do “agora”, ou seja, o estudo de uma dada situação comunicativa situada no espaço e no tempo. À primeira vista, por essa definição, pode parecer que neste modelo de análise lingüística não há uma sistematicidade, um método que dê conta de explicar o maior número de fatos possíveis, por conta desse recorte em cada situação. A pragmática, no entanto, ao estudar os princípios que regem o ato comunicativo, não está em busca dos princípios dos usos singulares, mas procura descobrir os princípios que regem os diferentes sentidos dados pelo uso. Um exemplo da sistematicidade pragmática está nos resultados dos estudos das palavras do discurso (conectores, conjunções, preposições, advérbios) que apesar de terem uma função diversificada de acordo com o contexto em que aparecem, demonstraram que significam porque há uma instrução sobre a maneira de interpretá-las.  

A pragmática não foi firmada como modelo teórico lingüístico abruptamente. Ela tem sua base na filosofia, quando, desde Kant (1724-1804), filósofos passaram a estudar como a mente é capaz de construir representações, o que culminou, posteriormente, no século XIX, com o pensamento de que a “representação é antes lingüística do que mental”. O próximo passo da filosofia foi, então, refletir sobre filosofia da linguagem e, assim, gradualmente, foi encaminhando suas discussões para os usuários da língua, aproximando-se dos interesses da Lingüística.  

É por causa dessa contigüidade com a Filosofia que a Pragmática tem como seus maiores cânones o nome de dois filósofos: John Austin e Paul Grice.  

 

Um pouco de Teoria, um pouco de análise

Os estudos do filósofo Austin (1965 e 1962), que fazia uma análise do uso da língua corrente, culminaram na Teoria dos Atos de fala. A idéia central dessa teoria é a de que a língua não “serve” apenas para dizer o mundo, mas “serve” também para fazer coisas. Austin, após chegar e esse entendimento da língua, propõe uma nova classificação para os enunciados: além de assertivos ou constatativos, já considerados pela filosofia como aqueles que carregam afirmações de verdade ou falsidade, passou também a classificá-los como performativos, quando em um enunciado se faz exatamente o que se diz. Explicitamente, teríamos verbos em português, como jurar, negar, declarar, batizar, etc., que quando pronunciados fazem a ação que declaram. Mais tarde, Austin chegou à conclusão de que todos os enunciados são performativos, o que acontece é que alguns são explicitamente performativos e outros são implicitamente performativos. Com esse entendimento, todos os enunciados são performativos, daí o slogan falar é fazer.  

Após essa consideração, os enunciados são classificados de três maneiras: Ato locucionário, que corresponde às formas lingüísticas e seus significados convencionais, Ato ilocucionário, que diz respeito aos sentidos produzidos pelo ato locucionário, e, por último, Ato perlocucionário, que se refere aos efeitos produzidos no interlocutor pelo sentido do enunciado, como surpresa, susto, convencimento, etc. Os diferentes tipos de atos de fala relacionam-se às intenções comunicativas produzidas pelos falantes em seus enunciados. Daí dizer-se que a perspectiva conversacional da Pragmática atua na área da competência do falante, pois estuda o significado intencional dos enunciados que são elaborados para causar algum efeito no interlocutor e o que se espera é que esse efeito seja percebido. Para exemplificar, citemos a primeira pergunta da entrevista:  

AT: Como foi feito o contrato com a Câmara da Serra?

TCSB: Quem fez o contrato foi o monitor que trabalha comigo. Não conheço o presidente da Câmara da Serra. (...). Acredito que o presidente da Câmara adquiriu as poltronas para ajudar na prevenção à saúde, porque elas são medicinais e terapêuticas. Elas têm infravermelho longo, que é um poderoso antiinflamatório.

As formas lingüísticas escolhidas pelo jornal e o significado convencional dessas formas pouco revelam da verdadeira intenção da pergunta, pois é esperado que um repórter saiba como contratos sejam feitos. A intenção comunicativa dessa pergunta parece estar muito mais próxima de fazer com que a entrevistada esclareça possíveis irregularidades do contrato – ou que pelo menos deixe escapar essas irregularidades - do que saber como o contrato foi firmado. A entrevistada, por sua vez, parece captar essa intenção, o que ocasiona um efeito em sua resposta: tirar de si qualquer responsabilidade – ao dizer que “quem fez o contrato foi o monitor que trabalha comigo” – e sair em defesa do Presidente da Câmara, o que provoca um estranhamento, já que a entrevistada afirma nem conhecê-lo.  

As intenções do enunciado e os efeitos produzidos pelo reconhecimento dessas intenções só puderem ser assegurados nesta situação devido às circunstâncias desse ato comunicativo, em que, previamente, a entrevistada assume uma posição defensiva enquanto o entrevistador, uma posição ofensiva, levando-nos à crença de que “é a natureza do evento de fala que vai determinar a interpretação dos enunciados proferidos em determinado ato de fala”. (Lins, 2002).  

Mas como o os indivíduos envolvidos em uma situação comunicativa são capazes de captar o sentido intencional dos enunciados sem analisá-los previamente? Grice (1975) responde essa questão postulando que nossos diálogos são esforços cooperativos, isto é, há um contrato que se cumpre em todos os intercâmbios comunicativos. Cada participante, segundo Grice, obedece a uma lógica segundo a qual produzimos e interpretamos os enunciados de modo eficiente. A partir dessas observações, Grice (1975) formula o Princípio da Cooperação: Faça sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está engajado.” (Grice, 1975: 86).  

Seguindo esse princípio, o autor estabeleceu quatro máximas e as submáximas que governam esse princípio:

Quantidade

1 Faça sua contribuição tão informativa quanto for requerido.

2 Não faça sua contribuição mais informativa do é requerido.

Qualidade

1 Não diga o que você acredita ser falso.

2 Não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência.

Relação

1 Seja relevante

Modo

1 Evite obscuridade de expressão

2 Evite ambigüidade

3 Seja breve

4 Seja ordenado

Seguindo esse princípio, os falantes fazem um esforço a todo momento para apreender o sentido dos enunciados, o que torna a língua natural passível de ser analisada, já que exige um esforço automático, inerente ao ato comunicativo. Foi o que parece ter acontecido na entrevista, no trecho que citamos anteriormente.  

Após a postulação desse princípio que governa a comunicação, Grice (1975) observa que o falante pode violar uma das máximas para produzir sentidos que vão além do sentido literal das sentenças. Todas as vezes que houver a violação de máximas, implicaturas estarão sendo geradas: “Ele pode abandonar uma máxima (...). Esta é uma situação que caracteristicamente gera uma implicatura conversacional.” (Grice, 1982)  

AT: Onde fica sua empresa?

TCSB: Moro em Guarapari. A empresa age no marketing da amizade. Você nunca vai comprar uma cadeira desta no mercado. A gente trabalha com franquiados e revendedores. Não há propaganda em revistas ou TV, quem faz a propaganda somos nós. Tenho uma empresa regularizada, pago meu impostos (...) Dois empresários me procuraram querendo adquirir a poltrona. Qual é o homem que não quer se prevenir de um câncer de próstata? A poltrona tem a finalidade de prevenir o câncer com o infravermelho. Isso é provado. Ela combate os radicais livres.

Esse trecho viola quase todas as máximas do Princípio da Cooperação de Grice. A primeira é a da Relação, quando a pergunta é “onde fica sua empresa” e a entrevistada responde “moro em Guarapari”. A segunda máxima violada é a do Modo, nas submáximas Seja Breve e Seja Ordenado. Além da entrevistada se delongar na resposta, não faz conexões entre assuntos diferentes, entre as mudanças de foco do assunto: começa falando onde mora, depois fala das estratégias de venda da empresa, passa por uma série de focos e finaliza, enfaticamente, demonstrando os efeitos medicinais das cadeiras.  

Outra máxima violada é a da quantidade, visto que a resposta é muito mais informativa do que foi requerido. As informações, no entanto, aparentemente desconectadas ao violarem quase todas as máximas do Princípio da Cooperação, caminham no sentido de produzir implicaturas e, a partir delas, tentar salvar a imagem da empresa, sua própria imagem, bem como a qualidade e a importância do produto.  

A noção de implicatura é ponto central da teoria de Grice, uma vez que é pela observação das implicaturas que os sentidos intencionais do ato comunicativo são apreendidos: enquanto a explicatura é dada pelo significado convencional, pelo que é posto, a implicatura está centrada no falante e seu significado é contextual. É pela noção de implicatura que a pragmática trata o sentido com certa precisão. O sentido, portanto, da resposta da entrevistada, não está no que é dito, mas está no não-dito, nas implicaturas geradas com o objetivo de preservar sua imagem e a de seu produto.

É por esse funcionamento da língua que a pragmática sai de uma análise estritamente lingüística: ela analisa o dito, buscando entender o não-dito, uma vez que a estrutura é capaz de dizer mais do que está nela.  

Uma postura que aparentemente viola o princípio da cooperação é a polidez. Enquanto o Princípio da Cooperação prima pela objetividade da comunicação e seu objetivo é “fazer a conversa andar”, a polidez, quase sempre obtida com atos indiretos (off record), é uma atitude cujo objetivo é manter uma imagem social. As estratégias de atenuação, como por favor, será que, você poderia, que caracterizam o ato comunicativo polido, parecem violar a máxima do Modo de Grice, na submáxima Seja breve, apesar de ser um comportamento lingüístico bem aceito – e até requerido – em nossa sociedade.  

Ao contrário do Princípio da Cooperação, a polidez não é um recurso automático da comunicação: pode-se afirmar que sempre somos cooperativos – até quando violamos algumas máximas, geramos implicaturas – mas nem sempre somos polidos, o que demonstra que Princípio da Cooperação e polidez são de categorias diferentes.  

A polidez está relacionada à preservação de face do falante. Brow e Levinson (1987) definem face como sendo a imagem pública que cada indivíduo reivindica para si. Assim, age lingüisticamente de acordo a preservar a própria imagem ou a imagem de outros, de acordo com as convenções sociais, seguindo uma orientação defensiva e protetora, respectivamente. Quando a polidez é usada para esses propósitos, Brow e Levinson (1987) classificam essa atitude como preservação de face positiva.  

Durante toda entrevista, as perguntas são feitas de modo indireto, o que demonstra o comportamento polido do entrevistador que, apesar de estar em uma posição ofensiva, cujo propósito é desconstruir a face não da entrevistada, mas, de maneira mais geral, do que ela representa, mantém um comportamento esperado pela sociedade.  

AT: Qual foi o valor pago pela Câmara?

TCSB: Prefiro não falar sem autorização da assessoria jurídica. O preço é mais ou menos o que vocês divulgaram. Não quero esconder, mas a orientação que recebi é de não falar ou dar entrevista.

AT: Não estamos criticando a qualidade do produto ou culpando a senhora. Estamos questionando a aquisição pela Câmara ...

Observe-se que, exclusivamente nesse trecho da entrevista, o jornal faz uma pergunta direta e recebe também uma resposta, desta vez, direta. Porém, como a entrevistada não pôde fornecer o valor real das cadeiras, age no sentido de preservar sua face: ela não revela o valor porque não quer, não revela porque foi proibida de falar, retirando, assim, a responsabilidade de si, mas, ao mesmo tempo, protegendo quem a orientou a não falar. Como para a Pragmática o não-dito também gera significação, podemos, talvez, inferir que o fato de a entrevistada ter sido orientada a não informar o valor das cadeiras demonstra que esse é um dado importante para a formação da opinião pública acerca da polêmica.  

Embora o entrevistador não tenha ameaçado diretamente a face da entrevistada, compreendeu que a resposta dada por ela representou uma ameaça à face dela perante a sociedade. O próximo turno do repórter, em conseqüência, não foi cooperativo porque não se constituiu uma pergunta – o que é esperado em uma entrevista – não fazendo, portanto, com que a conversa andasse numa direção, o que seria seu dever determinar. O entrevistador, diante da situação instaurada, agiu de forma polida, com o objetivo de preservar sua própria face e, ao mesmo tempo, de reestruturar a face da entrevistada, que, momentaneamente, comprometera o esclarecimento dos fatos: “Não estamos criticando a qualidade do produto ou culpando a senhora. Estamos questionando a aquisição pela Câmara...”.  

Na verdade, a atitude do entrevistador parece revelar sua verdadeira intenção com a entrevista neste ponto da conversa: o objetivo não seria desconstruir a face positiva da entrevistada, mas dos responsáveis pela aquisição das cadeiras. Uma pista disso seria a forma polida com que o repórter se refere à entrevistada e a explicação que faz logo em seguida.  

Quando, porém, os falantes agem de modo a evitar alguma imposição pelos outros, ou quando estão em situações conflitantes, rejeitam o uso de formas polidas e servem-se de formas mais hostis, como ordens, críticas, ironias. Nesse caso, haveria, segundo Brow e Levinson (1987), exposição de face negativa. Atuamos desse modo constantemente com a intenção de preservar nossa face ou ameaçar, quase sempre, a face de nosso interlocutor a fim de nos enquadrarmos em convenções sociais.  

Após a fala do entrevistador, que podemos considerar polida, a entrevistada diz:  

TCSB: Do jeito que está sendo falado, parece que estamos vendendo um produto do além. (...) Mas na mídia, a cadeira apareceu como um disco voador, uma nave espacial que aterrissou.

Mesmo com a forma polida com que conduziu o repórter, o comentário hostil da entrevistada atua no sentido de também preservar sua face e de, em contrapartida, quebrar a face positiva do entrevistador: naquele momento, ele representa a mídia e quando ela diz que “na mídia, a cadeira apareceu como um disco voador, uma nave espacial que aterrissou”, parece tentar inibir a ação do repórter – ou do jornal – em continuar publicando o assunto.  

Outra teoria que constitui a fundamentação teórica da Pragmática é a Teoria da Relevância, publicada por Sperber e Wilson, em 1986, que, apesar de inicialmente não ter sido bem recebida pelos estudiosos de Pragmática, é atualmente, junto com o Princípio da Cooperação, de Grice, uma das teorias mais importantes desse modelo.  

Embora Sperber e Wilson tenham buscado inspiração no modelo de Grice, alguns autores consideram que essa teoria é mais abrangente porque explica todos os atos comunicativos, sem exceção. Segundo esse princípio, somos sempre relevantes em nossa comunicação.  

Enquanto Grice focaliza o falante ao destacar a noção de cooperação, Sperber e Wilson trazem para a cena do ato comunicativo o ouvinte: para esses autores, somos cooperativos porque acreditamos que o falante tem sempre a intenção de ser relevante, ou seja, de dizer algo que contribua de algum modo para enriquecer nosso conhecimento de mundo, sem exigir esforço desmedido de interpretação. Assim, quanto menos esforço tivermos que fazer para interpretar um enunciado, mais relevante ele será.  

O que Sperber e Wilson fazem é, embora reconhecendo que a teoria de Grice é essencial para descrever a natureza da inferência ou da implicatura pragmática na comunicação verbal, reinterpretar esse modelo, ampliando sua capacidade descritiva e explanatória. Enquanto Grice trabalha com a noção de implicatura, entendendo que ela parte do que é dito no enunciado e vai além dele, obedecendo às máximas conversacionais ou violando-as, Sperber e Wilson postulam que a noção de implicatura é desdobrada em premissas e conclusões que não partem necessariamente do que foi dito. Sperber e Wilson se distanciam de Grice em outros pontos também:  

Alem de discordarem da idéia de que os falantes devem obedecer às máximas postuladas para o sucesso da comunicação, rejeitam a violação das mesmas como originado a noção de implicatura griceana. Para esses autores, não há violação de qualquer norma comunicativa, uma vez que a compreensão verbal se dá através da busca da Relevância, uma propriedade natural da cognição humana que, como tal não deve ser ‘obedecida’. (Silveira e Feltes, 2002: 23).

Num trecho como:

AT: Existe a possibilidade de o contrato ser desfeito?

TCSB: Veja bem. A mercadoria está lá.

analisaríamos como sendo uma violação à máxima da Relação, na submáxima seja relevante, de acordo com Grice, uma vez que a pergunta está em uma direção e a resposta em outra. Porém, segundo Sperber e Wilson, a relação pretendida é revelada em referência ao contexto, entendendo-o como um quadro de suposições que vem à mente da entrevistada, para que, assim, a relevância seja notada. Quando ela diz que “a mercadoria está lá”, infere que, como seu interlocutor compartilha com ela o conhecimento do contexto enunciativo, ele vá entender que não há motivos para desfazer o contrato, uma vez que a mercadoria foi devidamente entregue, não apresenta nenhum defeito, etc.  

A busca da relevância implicará sempre em um contexto determinado, o que o torna imprescindível à análise. Sendo assim, o contexto é definido como o subconjunto formado por conhecimentos científicos, culturais, sociais, religiosos, políticos, econômicos, lingüísticos e conhecimentos que surgem da situação. O importante é que os interlocutores compartilhem ou creiam compartilhar uma versão parecida do contexto. A comunicação bem-sucedida dependerá do que cada interlocutor conhece e infere ser conhecido do outro. Por isso a Teoria da Relevância caracteriza a comunicação humana como sendo ostensiva, da parte do comunicador, e inferencial, da parte do ouvinte.  

Pela rápida análise, podemos definir a entrevista como uma tentativa de construir uma face publicamente positiva, por parte da entrevistada, e, por outro lado, a tentativa do jornal em quebrar a face, não da entrevistada, mas dos responsáveis pela compra das cadeiras. O contexto em que se dá esse ato comunicativo não é, necessariamente, o momento da entrevista, mas ele foi estabelecido previamente em torno de uma discussão que ganhou forças ao sair na imprensa nacional. Esse conhecimento prévio é que possibilitou as intercorrências entre entrevistador/repórter e a entrevistada, pois algumas das perguntas e das repostas só fazem sentido quando se tem conhecimento do contexto.  

O valor comunicativo desta entrevista está no fato de que, quase sempre temos uma pergunta que se constrói lingüisticamente de uma maneira dada, mas que quer saber outras coisas, e uma reposta aparentemente caótica, mas que, na realidade, é dada a partir das inferências abstraídas das perguntas. Como a tarefa da pragmática é explicar o mapeamento que o ouvinte faz entre o que é dito e o que se quer dizer, podemos concluir que o conhecimento partilhado do contexto em que se deu a polêmica da compra das cadeiras é o que deliberadamente norteia as atitudes dos participantes na entrevista.  

A partir desse conhecimento contextual partilhado, cada participante atua na entrevista organizando seu discurso não de forma fortuita, mas com o objetivo de salvar, cada um, sua face frente aos leitores capixabas. Por isso dizermos que essa entrevista é uma estratégia de construção/desconstrução de faces, em que cada participante tenta manter uma imagem social positiva.  

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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––––––. Mas, afinal, o que é mesmo Pragmática? Revista Fala Palavra, nº 2, Aracruz: Facha, 2002.  

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