O gênero notícia como ponto de convergência
de posições discursivas
entre diferentes jornais

Zilda Andrade Lourenço dos Santos

 

Este trabalho é um recorte da dissertação de mestrado que procurou observar como a mídia impressa construiu discursivamente o evento de 11 de setembro de 2001, relacionado ao ataque às torres gêmeas no World Trade Center e ao Pentágono, nos Estados Unidos, e o ataque norte-americano ao Afeganistão em 7 de outubro de 2001.  

O critério de escolha dos jornais O Dia e O Globo se justificou pela representatividade como jornal impresso, e também, pelos interesses mercadológicos diferenciados.  

Ao selecionar o jornal impresso como fonte de material para a pesquisa, delimitamos o gênero notícia como foco de atenção e análise. As formas convencionais do gênero notícia definem seu papel social e informativo, observando certas regras e normas que o próprio gênero impõe, como o recurso da citação. A estratégia do discurso relatado (DR), no sentido de fazer captar a voz do outro, é uma forma que o jornal usa como efeito de autenticidade e de verdade do seu discurso.  

O enunciador-jornalista procura respeitar as normas e regras do gênero notícia para garantir a comunicação com seu leitor. No dizer de Maingueneau, “um jornalista assume o contrato implicado pelo gênero de discurso do qual participa” (2001: 69). Nesta perspectiva, Daher (2000) comenta que o gênero está relacionado aos tipos de interação que se inscrevem nos costumes de uma sociedade e funcionam como referência de sentido. Bakhtin (1992) considera que na interação entre falantes, os parceiros na comunicação aprendem a moldar a fala de acordo com o gênero e, são capazes de identificá-lo na comunicação.  

Entendemos que se torna relevante apontar o dialogismo bakhtiniano como fator importante na compreensão dos aspectos interligados ao ato enunciativo. Estamos nos referindo aos estudos sobre gênero de discurso, pois este se faz presente no ato de linguagem. Enfatizamos que a opção do recorte teórico aqui proposto nos permite um enfoque que nos aproxima da noção de discursividade no gênero notícia, ao invés de nos fixarmos na cena meramente empírica da função informativa do jornal.  

O dialogismo bakhtiniano (Bakthin e seu círculo, 1992) nos serve como referência para o entendimento do conceito de heterogeneidade enunciativa que também nos remete ao conceito de discurso relatado (DR) como uma das formas de heterogeneidade marcada e o de interdiscurso como modo de compreender a heterogeneidade constitutiva no discurso.  

A concepção de dialogismo e a noção de polifonia, nos estudos de Bakhtin e seu círculo, abrem novas discussões sobre a noção de subjetividade no discurso, desenvolvida por Benveniste. Segundo as colocações de Brandão (1995), uma nova abordagem surge para a concepção de subjetividade que não está mais centrada na transcendência do EGO, mas relativizada no par eu / tu, incorporando o outro como constitutivo do sujeito. A autora ainda argumenta que para Bakhtin, a dialogização do discurso tem uma dupla orientação: uma voltada para os outros discursos como processos constitutivos do discurso, outra voltada para o outro da interlocução, o destinatário. Nesse sentido, a noção de interdiscursividade contribui para a fundamentação das concepções dialógicas da linguagem.  

Para uma melhor compreensão da noção de interdiscurso, outras noções precisam ser introduzidas para que sejam estabelecidas as relações que as interligam. A formação discursiva (FD) se relaciona com o interdiscurso no nível da constitutividade do discurso. A noção de FD está relacionada à formação ideológica e nessa perspectiva, Brandão (1995) argumenta que a FD estabelece-se no contexto de um discurso pela sua relação com a formação ideológica, isto é, os textos que fazem parte de uma FD remetem a uma mesma formação ideológica. "São as formações discursivas que, em uma formação ideológica, determinam ‘o que pode e deve ser dito’ a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada" (Brandão, 1995: 38).  

Numa visão dialógica da linguagem o discurso é concebido como produto do interdiscurso. A produção do discurso se realiza no bojo do interdiscurso e em linhas gerais, podemos dizer que o interdiscurso é constituído pela relação existente entre os discursos. Entendemos que essa relação particulariza um determinado discurso, como também sustenta historicamente os sentidos nele inscritos.

Segundo Maingueneau (1997), uma formação discursiva se legitima ao esforçar-se por construir a cena que sua enunciação produz. Na perspectiva do referido autor (2001) a cena de enunciação pode ser apreendida sob três diferentes formas: cena englobante, cena genérica e cenografia. As duas cenas, num conjunto, podem ser denominadas de quadro cênico o qual está intimamente ligado à noção de gênero do discurso. A cenografia é definida como a situação de enunciação que se constrói como elemento de legitimação dos discursos.  

A cena englobante está relacionada ao tipo de discurso que pelas suas características pode ser identificado e ainda, pela forma como se pode captar a enunciação que ele próprio estabelece. [1] Podemos definir a que tipo de discurso pertence determinado texto observando "em função de qual finalidade ele foi organizado" (Maingueneau, 2001: 86). Nesse sentido, ao lermos um folheto, revista, etc. somos capazes de identificar se o discurso é religioso, político, jornalístico, pelas marcas que caracterizam os discursos. De acordo com essa abordagem, consideramos o jornal impresso possuidor de certas propriedades que o identificam como um tipo de discurso jornalístico, de uma forma mais abrangente.  

A respeito de cena genérica, Maingueneau (2001) argumenta que não é suficiente para o co-enunciador a identificação do tipo do discurso. Faz-se necessário uma especificidade do gênero do discurso “que define seus próprios papéis: num panfleto de campanha eleitoral, trata-se de um ‘candidato’ dirigindo-se a ‘eleitores’ ” (2001: 86). Verificamos que ao estabelecer diferença entre tipo de discurso e gênero de discurso, estamos também definindo que discurso jornalístico, no seu todo, difere do gênero notícia, que no caso é identificado como uma especificidade integrante de um todo que é o jornal. Observamos que cada jornal lida com diferentes gêneros como: editoriais, opinião, carta dos leitores, etc. Nossa pesquisa focaliza especificamente o gênero notícia e o modo como cada jornal, delimitado como material para fonte de análise, constrói a cenografia discursiva.  

Numa perspectiva do dialogismo, estaremos considerando a heterogeneidade sob dois planos: o da heterogeneidade constitutiva que não é marcada na superfície, mas pode ser definida pela formulação de hipóteses através do interdiscurso e o da heterogeneidade mostrada que possibilita a identificação da fonte de enunciação (Mangueneau, 1997). Nessa perspectiva, Maingueneau (1997) destaca que a heterogeneidade mostrada vai além da visão tradicional de citação e mesmo das marcas lingüísticas do discurso relatado.[2]  

Acrescentamos também às considerações de Maingueneau, os estudos de Sant'Anna (2000) sobre o discurso narrativizado como uma forma de DR, para dar conta da análise de algumas formas que o enunciador usa para introduzir a voz do outro, bastante recorrente no gênero notícia, mas que não são consideradas pelos autores mais clássicos no campo de estudos do discurso relatado.  

Ao observamos a forma como a notícia relata um acontecimento e o constrói discursivamente, identificamos que o discurso relatado é um fenômeno de citação em que um discurso inclui outro discurso, ou seja, uma enunciação passada, anterior e exterior, é novamente colocada em cena através da enunciação atual.  

Colocações sobre polifonia das vozes no discurso apontam para a idéia de que "há polifonia quando é possível distinguir em uma enunciação dois tipos de personagens, os enunciadores e os locutores" (Maingueneau, 1997: 76). É nessa perspectiva que esse autor considera o discurso relatado como manifestações mais clássicas da heterogeneidade enunciativa e que ainda continuam sendo objeto de pesquisa na busca de "inscrevê-lo no campo dos problemas da enunciação". (1997: 85).  

De acordo com essa perspectiva do avanço nos estudos e pesquisas sobre o discurso relatado, Maingueneau (2001) sustenta que o discurso direto deveria ser percebido como uma teatralização de enunciação e não simplesmente como o relato fiel de um dito, como ingenuamente costuma-se definir.  

No gênero notícia, que fundamentalmente se organiza com base no discurso relatado, é comum o enunciador-jornalista trazer para a enunciação a voz que tenha valor de autoridade, ou seja, alguém autorizado a falar de uma determinada posição. Portanto, o que orienta a escolha do enunciador numa citação é a formação discursiva. Essa noção de citação remete-nos à questão do intertexto e intertextualidade.  

O intertexto é visível na linearidade do discurso, através dos fragmentos citados, enquanto a intertextualidade abrange relações entre formações discursivas às quais o intertexto remete. A interdiscursividade está nas relações entre os discursos, a partir, também, da relação entre as formações discursivas.  

Além da importância da citação no DR, colocamos também algumas questões relacionadas ao verbo dicendi. Maingueneau (1997) coloca que alguns verbos dicendi incidem sobre o valor de verdade (revelar, declarar), posição de hierarquia (ordenar, pedir), posição cronológica (concluir, repetir). Colocamos estes exemplos aqui para mostrar que, assim como no ato de fala, nenhuma listagem de verbos daria conta dos sentidos que eles tomam em cada ato enunciativo. Portanto, no procedimento de análise há de se identificar o sentido do verbo dicendi dentro de uma determinada conjuntura que não é pré-estabelecida.  

De acordo com as formulações teóricas que fundamentam nossa pesquisa, a imprensa escrita se insere numa cena globalizante que identifica o tipo de discurso que a compõe. As especificidades compreendidas na mídia impressa como jornais, revistas, etc. contemplam gêneros diferentes como: notícia, opinião, editorial, etc. Em nosso trabalho, abordamos alguns aspectos que tratam do discurso jornalístico e mais especificamente o gênero notícia.  

Osakabe (1999) argumenta que o ato de informar serve mais ao ato de convencer ou persuadir do que como ato definível em si mesmo. "Discurso informativos, tais como o jornalístico ou o científico, nem sempre se definem como puramente informativos e quase sempre existem em função de determinada finalidade prática a ser atingida" (1999: 61). Nessa perspectiva, apontamos algumas questões que envolvem o ato de informar e o de opinar, pois esses elementos, constitutivos do discurso jornalístico, orientam produção de sentidos que se constrói na notícia. Em nossa pesquisa, procuramos observar o gênero notícia como uma tessitura discursiva, não voltada exatamente para a produção de informação sobre o acontecimento, mas voltada para a produção de sentidos.  

É possível sinalizar que cada jornal procura investir no seu público leitor, de maneiras variadas. Percebemos que o objetivo de informar está atrelado a fatores de ordem social, na busca da interação entre jornal e leitor. Nesse sentido, os manuais de redação exercem um papel controlador para garantir a qualidade do jornal e a aprovação do leitor.  

Consideramos que o entendimento dessa relação dos parceiros da comunicação, através da mídia impressa, é fundamental para o nosso trabalho na observação como cada jornal constrói a cenografia discursiva de uma notícia, tendo em mente seu leitor-modelo. Segundo Maingueneau (2001), a idéia de leitor-modelo se fundamenta no princípio da cooperação, pois o autor de um texto precisa ter em vista o tipo de competência de um leitor previsto. "Quando se trata de um texto impresso para um grande número de leitores, o destinatário, antes de ser um público empírico, é apenas uma espécie de imagem à qual o sujeito que escreve deve atribuir algumas aptidões" (2001: 47).  

O propósito de se fazer circular uma informação pode ser observado numa perspectiva social e também numa perspectiva discursiva em que a busca de verdade e autenticidade na informação é uma das características do discurso jornalístico. Para produzir o efeito de autenticidade, o jornalista procura fundamentar a informação em fatos que dão caráter de veracidade. Entre as estratégias observadas na construção de uma notícia, Sant'Anna (2000) cita: a verificação dos seres e fatos com comprovação de data, lugar, foto, etc. ; a personificação dos envolvidos com designação de nomes, cargos, posição, etc. como também o testemunho de pessoa chamada a relatar ou sustentar um determinado fato como especialista. Nesse sentido, o discurso relatado pode ser verificado como essa forma estratégica que tão bem fundamenta o gênero notícia, na sua busca de credibilidade.  

O modo como o gênero notícia se atualiza em diferentes jornais pode ser considerado um ponto de contato entre suas posições discursivas. De acordo com as convenções tácitas do gênero notícia, destacamos o DR, e, mais especificamente, o verbo dicendi, que tem uma expressividade típica no gênero. Como observado em nossa pesquisa, as vozes introduzidas têm semelhanças entre os dois jornais observados e fazem aproximar as posições discursivas em que cada um se inscreveu como posicionamento. A forma como se constrói a estratégia do uso do verbo introdutório como marca da subjetividade do enunciador-jornalista, a partir de uma formação discursiva que interage com outras formações discursivas, sendo o interdiscurso o objeto que permite apreender essas interações. O enunciador-jornalista, de cada jornal, escolheu verbos introdutórios da citação, entre um conjunto das mais diversas ações que são realizadas no convívio social, tais como: condenar, declarar, jurar e prometer, e que, ao mesmo tempo, estão ligadas a determinados tipos de discursos.  

Verificamos que os discursos religioso, jurídico e político foram os mais evidentes na interdiscursividade que permitiu interligar posições discursivas. O modo como o enunciador-jornalista lançou mão do uso de determinados verbos dicendi fez captar o entrecruzamento entre esses três discursos.  

A observação do interdiscurso tornou viável a possibilidade de remeter os verbos dicendi, comuns aos jornais analisados, a uma filiação de dizeres, a uma memória, e identificá-los em sua historicidade e significância. O já-dito, que permite a possibilidade de todo dizer, é fundamental para a compreensão do discurso.  

Procuramos enfatizar que o papel que a imprensa escrita, através do jornal diário, exerce sobre seus leitores é de fundamental relevância para os estudos lingüísticos. A importância de se observar o modo como a notícia constrói discursivamente um acontecimento empírico, reside no valor de desenvolver-se uma compreensão crítica da forma como cada jornal se posiciona diante dos fenômenos histórico-sociais.  

Essas considerações contribuem para a nossa pesquisa, no sentido de apontar para as diferenças que podem ser observadas nos jornais que elegemos como material de análise e, também, para mostrar que o estatuto de sujeitos enunciadores e de seus presumíveis destinatários é inseparável do gênero discursivo que os constitui. No âmbito da compreensão de leitura, consideramos que esses pressupostos teóricos aqui apresentados podem contribuir para o enriquecimento de experiências e competência para se assumir a posição de leitor crítico.  

 

referências bibliográficas

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[1] Os tipos de discurso resultam eles mesmos de funcionamentos cristalizados que adquiriram uma visibilidade sob uma rubrica, uma etiqueta que resulta de fatores extras discursivos, lógicos. psicológicos, sociológicos etc." (Orlandi, 2000: 86)

[2] Apontamos alguns aspectos desses conceitos, na perspectiva dos estudos de Maingueneau, baseando-nos fundamentalmente nas duas obras: Novas Tendências em Análise do Discurso (1997) e Análise de Textos de Comunicação (2001).