Operadores argumentativos
uma proposta produtiva de ensino

Hayla Thami da Silva (UFRJ)
Michelli Bastos Ferreira (UFRJ)
Maria Aparecida Lino Pauliukonis (UFRJ)

 

Considerações iniciais

Sabe-se que, tradicionalmente, o ensino de língua portuguesa apresenta uma metodologia calcada em simples metalinguagem de classificação e regras gramaticais. Muito pouco se faz em prol de um ensino mais produtivo dos conteúdos trabalhados em sala de aula, baseado em critérios discursivos e pragmáticos.  

Em decorrência disso, há grande dificuldade por parte do aluno em conceber a língua como algo dinâmico e suscetível a diversas formas de organização, a depender da intenção que o emissor manifesta ao comunicar.  

O aluno, muitas vezes, não consegue ampliar sua análise gramatical para um âmbito mais discursivo, mais pragmático, e chega a se sentir desmotivado, já que não vê aplicabilidade para o conteúdo aprendido.  

Com base nisso, propõe-se, neste trabalho, apontar reflexões sobre o ensino da língua portuguesa, com enfoque particular nas construções de causa e de explicação, sobretudo as introduzidas pelo conector ‘porque’, objetivando, a partir dessas reflexões, apontar estratégias de prática pedagógica desses enunciados. Pretende-se, assim, discutir e propor alternativas de abordagem mais discursiva dessas construções, descrevendo os efeitos de sentido de seu emprego em textos nas diversas situações de uso.  

Para tanto, abordam-se, primeiramente, o conceito de argumentação e, mais especificamente, o de persuasão e o de convencimento, com base em Koch (2004), que servirão de suporte aos comentários levantados no decorrer do trabalho. Além disso, cumpre aclarar as semelhanças e distinções entre as construções de explicação e de causa, pautando-se nos pressupostos de Charaudeau (1992), Val (1999) e de gramáticos tradicionais como Rocha Lima (2003) e Celso Pedro Luft (1996).


 

Argumentação

Como já afirma Koch (2004), a argumentatividade é característica fundamental da interação social pela linguagem. Em todas as situações do cotidiano, o homem critica, julga, opina, manifesta-se de alguma forma e, com isso, forma juízos de valor. O homem, quando organiza seu discurso, visa a determinadas conclusões. Todo discurso – ação verbal dotada de intencionalidade – é produto de uma ideologia, de uma intenção com vista a um objetivo. Inexiste, portanto, a objetividade absoluta, mesmo se tratando da função informativa, já que esta, em seu princípio, revela a subjetividade do emissor. O homem sempre busca influenciar sobre o comportamento do outro ou fazer com que compartilhe determinadas opiniões, por meio do discurso.  

A origem etimológica do termo argumentação ratifica tal postura. O termo provém do grego “arg”, que significa brilho, luz. Assim, é papel da argumentação clarear o raciocínio do outro, conduzindo-o a uma determinada conclusão. Isto posto, torna-se claro que o ato de argumentar consiste no ato de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões. Para tanto, pode-se realizar de duas maneiras: através da persuasão e/ou através do convencimento.  

O ato de persuadir diferencia-se do ato de convencer. Segundo Koch (2004), o ato de convencer dirige-se unicamente à razão, através de um raciocínio lógico e por meio de provas objetivas, sendo, assim, capaz de atingir um “auditório universal”, possuindo caráter demonstrativo e atemporal. As conclusões, quando se utilizam estratégias de convencimento, decorrem naturalmente das premissas, conforme acontece no raciocínio matemático, por exemplo. Por outro lado, o ato de persuadir, procura atingir a vontade e o sentimento do interlocutor, seduzi-lo, por meio de argumentos verossímeis. Seu caráter é ideológico, subjetivo, temporal, dirigindo-se, pois, a um “auditório particular”. Em suma, o ato de convencer conduz a certezas ao passo que o ato de persuadir conduz a inferências que podem levar o interlocutor à adesão aos argumentos apresentados.  


 

As relações de CAUSA e EXPLICAÇÃO

Em primeiro lugar, vale expor algumas diferenças estabelecidas entre as construções de causa e de explicação do ponto de vista da Gramática Tradicional (GT). Com tal fim, usa-se a Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Rocha Lima (2003) e a Gramática Resumida, de Celso Pedro Luft (1996).  

Para Rocha Lima, as orações causais diferem-se das explicativas, visto que as primeiras estabelecem uma relação de causa-conseqüência entre uma oração principal e outra dependente. Além disso, o gramático ratifica que as causais admitem uma maior mobilidade, devido, sobretudo, ao fato de serem antecedidas de uma pausa curta (comparando-a a das explicativas), ou até mesmo de não necessitarem de pausa.  

Já no que concerne às explicativas, Lima afirma que essas orações “encerram a justificação do que se disse na oração anterior” (2003: 275) e, portanto, a ordem torna-se mais rígida. Acrescenta-se, ainda, o fato de as explicativas serem separadas da oração antecedente por uma pausa mais longa, geralmente usa-se o ponto-e-vírgula, ou mesmo o ponto simples. Outra característica atribuída às explicativas, segundo o autor citado anteriormente, é o fato de estas poderem ser substituídas, por exemplo, por conjunções como: ‘portanto’.

Para Luft, além das proposições já expostas em Lima (2003), as construções causais não admitem a retirada do conector, enquanto as explicativas a possibilitam. Inclusive, exemplos como ‘Não veio está doente’ (1996: 175) são considerados agramaticais para o autor. Além disso, o gramático ainda menciona que os conectores causais podem ser substituídos por ‘como’, caso a oração seja deslocada para o início da sentença.

Visto que os critérios propostos por Rocha Lima e Celso Pedro Luft (e, de um modo geral pela GT) não são suficientemente esclarecedores (apesar de, muitas vezes, darem conta das orações em questão), no que diz respeito às diferenças entre causais e explicativas, faz-se necessário, pois, explorar perspectivas pautadas, sobretudo, em aspectos discursivos e pragmáticos, dado que, nessas abordagens, leva-se em conta a intenção do locutor e, também, o contexto em que uma determinada estrutura está calcada.  

Em cada texto, de acordo com a intencionalidade do locutor, estabelece-se um novo tipo de relações: relações argumentativas, que implicam, por exemplo, a apresentação de justificativas, explicações, motivos. Essas relações são estabelecidas, lingüisticamente, com base no uso de operadores argumentativos, responsáveis pelo encadeamento dos enunciados, estruturando-os em textos e determinando sua orientação discursiva.  

Para Charaudeau (1992: 495), uma relação lógica é aquela em que se ligam proposições sobre o mundo, de modo que a existência de uma dependa da existência de outra(s). Nesse tipo de relação, inclui-se a relação de causa, especialmente aqui tratada, dentre outras, como a de oposição, a de conseqüência e a de conclusão.  

É muito comum, também, atribuírem-se a certos fatos, causas ou conseqüências que não são totalmente lógicas ou que resultam de julgamentos de valor sobre os fatos. Além disso, ocorre com freqüência apresentar-se como causa algo que simplesmente antecedeu o fato no tempo.

Outras vezes, ainda, o que parece ser uma causa constitui simplesmente uma explicação ou justificativa. Estas não são relações lógicas; o que ocorre é uma nova enunciação que se encadeia sobre a primeira.  

Observe os exemplos que se seguem:

(1)     O ventilador parou de funcionar porque faltou energia elétrica.

(2)     Choveu muito porque o chão está molhado.

O exemplo (1) caracteriza uma relação do tipo lógico, já que a oração encabeçada pelo conector porque funciona como um argumento baseado em fatos empíricos, capazes de serem provados cientificamente. É de conhecimento comum o fato de que, com a falta de energia elétrica, é impossível que um ventilador se mantenha ligado. Utiliza-se, nesse caso, a estratégia de convencimento por meio de uma relação causal entre dois enunciados.  

O exemplo (2), diferentemente do exemplo (1), configura uma relação de explicação. Pode-se verificar que choveu pelo fato de o chão estar molhado. É uma interpretação pessoal, sem comprovação matemática ou científica. Há subjetividade quando se explica, quando se selecionam argumentos, o que contribuiu para a persuasão, que se apóia em estratégias de sedução por parte do interlocutor. Val (1999) afirma que a relação de explicação, como a que se percebe no exemplo (2), decorre de uma “interpretação diagnóstica”, ao passo que o exemplo (1) corresponderia a uma “textualização por conexão causal”.  

Ainda sobre as construções de causa e explicações marcadas pelo conector se, podemos afirmar que, nas primeiras, o sujeito- enunciador é menos presente que nas segundas. Dessa maneira, a oração que precede a explicação consiste, na maioria das vezes, em uma ordem ou tese a respeito de determinado assunto, o que não acontece nas orações causais, que sempre aparecem vinculadas a uma conseqüência, configurando uma relação mais lógica. Vejam-se os exemplos a seguir:  

(3)     Vá ao colégio, porque o diretor precisa falar com você.

(4)     O Rio de Janeiro é uma cidade violenta, porque ocorrem muitos assaltos e seqüestros todos os anos.

Como se pode observar, numa relação de explicação há presença marcante de um sujeito-enunciador, que, por sua vez, revela certo posicionamento a respeito de determinado assunto, como se vê em (4), ou se mostra presença por meio da instituição de uma ordem. Tal característica não se pode atribuir à relação causal.  

Outro fator importante na distinção desses dois modos de articulação de orações é o que concerne à noção de argumento. Quando tratamos de relação de explicação, somente o segundo segmento do período é considerado argumento. Já no caso das orações de causa, ambas orações (principal + dependente) são consideradas, conjuntamente, um argumento. Conferem-se os exemplos a seguir:  

(5)     [Preciso sair mais cedo da aula], [porque vou ao médico com minha mãe].

O primeiro segmento da oração, destacado acima, configura uma tese, uma afirmação, um posicionamento diante de uma situação. Dessa maneira, a construção explicativa objetiva fundamentar tal tomada de posição, sendo, portanto, um argumento para tese apresentada no primeiro segmento.  

Por outro lado, os dois segmentos do período funcionam como único argumento, já que não podem ser separados, por exemplo, como dois enunciados independentes. Juntos, buscam fundamentar, por exemplo, num contexto discursivo maior, uma tese anteriormente assentada no discurso.  

(6)     [Parou de fumar] [porque ficou doente].

Nesse caso, uma oração funciona como termo de outra, de modo que não podem ser separadas.

Por fim, ainda se deve dizer que, sempre para uma mesma tese, ou ordem, podemos atribuir várias explicações, o que não se observa quando há relação de causa-conseqüência entre dois enunciados. Observem-se os exemplos a seguir:  

(7)     Quero ficar em casa, porque me canso de andar na rua.

(8)     Quero ficar em casa, porque preciso estudar.

(9)     Quero ficar em casa, porque necessito ficar só.

Os exemplos 7-9 comprovam o que se disse acima: para uma tomada de posição, podem ser dadas várias explicações.

Numa relação de causa-conseqüência não é possível listar várias causas para uma mesma conseqüência, a menos que estejam em contextos diferentes, como é o caso de

(10)  Parou de beber porque ficou doente.

(11)  Parou de beber porque morreu.

(12)  Parou de beber porque acabou a bebida.

Dificilmente, poderíamos coordenar essas causais num mesmo contexto situacional ou discursivo.

 

Ensino produtivo
das construções de CAUSA e de EXPLICAÇÃO

A fim de aplicar os conceitos e as discussões propostos na seção anterior, busca-se apresentar a seguir sugestões de atividades pedagógicas capazes de levar o aluno a entender, de maneira mais clara, as principais diferenças entre as construções de causa e de explicação.  

 

Proposta de atividade 01

Verificar quais sentenças apresentam estruturas causais e quais apresentam estruturas explicativas.

- Objetivos: essa atividade é meramente introdutória e servirá para que o aluno comece a reconhecer, de maneira formal, ambas as estruturas discutidas neste trabalho. É interessante que o professor, já nesse primeiro momento, comente as perspectivas discursivas e pragmáticas que foram sugeridas em seções anteriores, a fim de, sobretudo, minimizar possíveis equívocos de identificação das estruturas apresentadas abaixo, visto que os critérios formais adotados pela gramática tradicional são, alguma vezes, insuficientes para esclarecer as dúvidas dos alunos.  

 

Dados apresentados

a)       Estava cansado [porque trabalhou muito].

b)       Espere-me um momento, [porque não vou me atrasar].

c)       Resolveu estudar [porque não tirou boas notas].

d)       Fique tranqüilo, [porque tudo na vida passa].

- Sugestão de resposta: as letras (a) e (c) correspondem a orações subordinadas causais, já que estabelecem relação de causa- conseqüência e, portanto, relação do tipo lógica. Quanto às letras (b) e (d), equivalem a orações coordenadas explicativas, posto que exprimem uma relação de razão-justificativa, ou seja, explicativa.

 

Proposta de atividade 02

Relacionar textos de tipos variados extraídos, preferencialmente, de jornais, de modo a reconhecer as estratégias argumentativas utilizadas, por exemplo, em notícias e em editoriais, já que as notícias apresentam um caráter mais lógico, ligadas ao ato de convencer, do que o editorial, cuja função, ao contrário, é a de persuadir.  

Objetivos: nessa atividade, o aluno desenvolverá uma visão crítica mais aguçada sobre as causais e explicativas e, para isso, fará uso das propostas básicas da GT de diferenciação das orações discutidas neste trabalho, mas, ao mesmo tempo, será capaz de correlacioná-las as estratégias propostas por Charaudeau (1992) e Koch (2004), conforme descrito em seções anteriores.

 

Exemplo de notícia

Exército e Força Nacional, ainda não

Lembo não descartou o uso de tropas do Exército para conter a onde de violência. E, depois de seguidas recusas ao apoio da Força Nacional de segurança, propôs que a Força seja integrada à Polícia Federal para auxiliar na escolta de presos federais.

– Essa integração (com o Exército) poderá levar, se necessário, quando necessário, à utilização da tropa federal. Mas não é o momento – disse.  

(...) Bastos ofereceu vagas em presídios federais como o de Catanduvas (PR), com capacidade para 208 detentos em celas individuais. Lembo reafirmou que seria necessário transferir os presos federais que estão no estado, mas que a questão não poderia ser debatida porque o governo federal não tem condições de fazer a transferência. Segundo Lembo, são mais de 1.000 presos federais. Para Bastos, são 600.

– Gostaria que essa transferência acontecesse. Tiramos da pauta porque a solução é quase impossível para o governo federaldisse Lembo.

O ministro afirmou que a “única maneira” de conter o crime organizado é combater a lavagem de dinheiro de forma coordenada. A sugestão de bastos é criar o Gabinete de Gestão Integrada de Segurança Pública, com forças de segurança federais e estaduais, além do Judiciário.

– Hoje o crime não é mais transestadual. É transnacional – disse. (Jornal O Globo, 15/07/2006)

 


 

Exemplo de editorial

Tolerância zero

O ser humano adapta-se com facilidade a muita coisa. Mas o convívio pacífico com a violência a que nos acostumamos no Rio chegou ao limite. A morte de outro turista – desta vez um jovem português esfaqueado na praia de Copacabana – não pode se transformar em mais um episódio corriqueiro a merecer dois ou três dias de cobertura nos jornais, com as declarações indignadas, as promessas e o esquecimento corriqueiro. Deve ser o ponto de partida para uma reação, pois, se não agirmos agora, não teremos mais o que salvar de uma cidade que tanto já representou para o Brasil e para o mundo. (...)

De perda em perda, acostumamo-nos ao abandono e à falta de cuidados com a infra-estrutura de uma cidade voltada para o turismo. Porque a insegurança pública tem seu efeito danoso também no ordenamento urbano. Calçadas esburacadas, lixo e esgoto a céu aberto, e valas negras se incorporaram à paisagem do Rio. Tudo isso emoldurado por um crescente número de moradores de rua e pivetes que assustam transeuntes locais e turistas. Um quadro, enfim, que realimenta de forma acelerada a violência e a degradação social.

(...)

Não se propõe aqui qualquer tipo de privilégio, mas o começo de um movimento que pode, a partir do turismo, desenvolver a economia e mudar a paisagem social do Rio, com benefícios para todos, cariocas e visitantes. Uma alternativa ao imobilismo que tem alimentado a violência e a criminalidade, e nos levando a tolerar o que não pode mais ser tolerado.

- Sugestão de resposta: a notícia busca, simplesmente, convencer o leitor de que um determinado fato é verídico e, com isso, a estratégica argumentativa mais usada é aquela tratada por Charaudeau como lógica (causal). Já o editorial estabelece uma relação de explicação, pois tem como objetivo central persuadir/seduzir o leitor através da exposição de idéias.

 

Conclusão

A motivação para a realização deste trabalho surgiu a partir do desejo de contribuir para o processo de aprimoramento didático do ensino de português.

Como já se disse, o aprendizado do padrão culto não deve ser visto como acúmulo de regras e classificações gramaticais, ou seja, como um exercício de treinamento, que objetiva fixar um modelo preestabelecido.  

Não se sugere, aqui, menosprezar ou, muito menos, desprezar os postulados da gramática tradicional. Pelo contrário, busca-se, através de uma nova forma de abordagem dos conteúdos gramaticais, considerar a língua como um instrumento de comunicação, de socialização e de desenvolvimento da capacidade argumentativa do aluno, cujo saber decorre de suas necessidades de dimensão individual e social.

Apoiadas em uma breve revisão sobre o conceito de argumentação e nas distinções sintático-semânticas das construções de causa e de explicação, propuseram-se discussões e comentários relacionados a um ensino produtivo desses enunciados.  

Acredita-se, em suma, que, ao propor reflexões em sala de aula, conforme as descritas no decorrer do trabalho, o aluno estará apto a ler, entender e criticar o meio em que vive, apoiando-se em estratégias de que a língua dispõe para tal. A sala de aula e/ou a escola seriam o espaço destinado a práticas de cidadania a partir do aprendizado da língua.

 

referências bibliográficas

CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 9ª ed. São Paulo: Cortez, 2004.

LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

LUFT, Celso Pedro. Gramática resumida. São Paulo: Globo, 1996.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 2ª ed. Campinas: Martins Fontes, 1993.

VAL, Maria da Graça Costa. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.