TEXTUALIDADE E IDEOLOGIA EM REVISTA

Patrícia Ribeiro Corado

 

Introdução

A idéia de que os sujeitos se constituem como tal num universo de linguagens é o que motiva este breve estudo, cujos objetivos estão ligados à investigação das formas de construção dos discursos veiculados nas capas da revista Veja, a partir de dois focos fundamentais: (1) a compreensão de que o material sob análise constitui aquilo que se pode chamar texto e (2) a percepção desse produto discursivo-textual como elemento divulgador de representações do real.

 

Informação e ideologia na construção do real

Pensar a linguagem é também pensar os elementos que participam da formação da (in)consciência humana. De acordo com essa visão, a análise dos discursos veiculados pela imprensa ganha relevância na medida em que eles se tornam supostos divulgadores da realidade. Em outras palavras, trata-se de uma investigação lingüístico-discursiva e ideológica que tentará penetrar na opacidade das lentes através das quais o mundo contemporâneo se apresenta aos sujeitos históricos que dele participam.

O surgimento e a consolidação, ainda que em tese, do conceito de democracia fortalecem a relação entre a palavra e o poder, de modo que a força das palavras substitui o poder das armas e a repressão pela força.

De fato, a palavra e todas as demais formas de linguagem que se propõem à representação do real têm força. É no discurso que o homem cria e (re)cria os mundos e as realidades. Para Rodrigues (1989: 19), “falar é criar um mundo que não é, mas fica sendo. Quer dizer, vai sendo. A palavra vai fazendo o mundo verdadeiro”.

É no discurso, cuja matéria-prima é a linguagem, que a ação e a interação humanas se concretizam. Sob esse enfoque, os estudos da linguagem não podem visar apenas à compreensão da língua como sistema, mas também a investigação sobre os mecanismos pré- e pós-discursivos que fazem o discurso se constituir tal como é.

Isso requer, entre outras estratégias, um olhar para a produção dos sentidos como oriunda da relação entre o homem, a língua e a história, ou seja, uma concepção de humanidade que seja histórico-discursiva.

Ao se fazer a investigação dos discursos, dentro dessa perspectiva, não podem ser ignoradas as batalhas históricas, sociais e culturais que neles se travam. Não se pode deixar levar pela idéia ingênua de que a linguagem, posta em discurso, presta-se à reprodução isenta do real, sem se deixar marcar pelo sujeito discursivo que, nesse caso, põe a linguagem a seu serviço.

Cabe ressaltar que a construção histórica do presente é feita no interior dos meios de comunicação, de modo que a realidade não é independente do meio pelo qual se veicula, mas sua existência e a forma que assume estão diretamente relacionadas ao veículo que a torna pública e, portanto, “real”.

Por tudo isso, parto aqui do pressuposto de que o discurso não é simplesmente objeto de comunicação, mas, e talvez sobretudo, objeto simbólico e, conseqüentemente, político e ideológico. Para Citelli (2004: 44), “a palavra, o discurso e o poder se contemplam de modo narcisista, cabe-nos tentar jogar uma pedra na plácida lâmina de água”.

Ao lançar mão de diferentes maneiras de falar de um mesmo fato, o veículo de comunicação faz uma escolha que tem estreita relação com o efeito de sentido que se pretende provocar no leitor.

Se a facilidade de acesso à informação, por um lado, trouxe ao homem contemporâneo uma série de benefícios, não se pode ignorar que, por outro, o poder midiático de nos apresentar o mundo sob a perspectiva de suas lentes coloca-nos numa tênue fronteira entre informação e alienação, por mais paradoxal que isso possa inicialmente parecer, até porque o pior dos alienados é aquele que não se reconhece como tal.

Nesse ponto, a imersão no universo da textualidade da mídia parece perigosa, uma vez que o leitor tende a não perceber a distância entre o fato e a representação que dele é feita. Vive-se, assim, num universo de espetacularizações e silêncios que se camuflam mutuamente; o mesmo véu que se tira aqui é usado para cobrir ali e o que temos são apenas recortes de uma realidade, formando um mosaico no qual o que entra e o que fica de fora obedecem sempre a uma certa ordem do discurso (Foucault, 2003), determinante daquilo que se deve ou não dizer no momento histórico da produção de sentidos, porque por trás de todo “fazer conhecer” o que há é um jogo de luta pelo poder, do qual o leitor ingenuamente participa como peça manipulada inteligentemente por experientes jogadores.

 

Pensando a textualidade

Partindo da concepção de texto como uma unidade de linguagem em uso, situada em um certo tempo e espaço e que, embora se relacionando infinitamente com os mais variados elementos extratextuais, cotextuais, contextuais, situacionais, pragmáticos etc, constitui-se de modo pleno e de acordo com intenções comunicativas, entenderemos texto de uma forma, a meu ver, plural, porém finita. Isso significa dizer que as possibilidades de produção textual ocorrem nas mais diversas linguagens e também nos múltiplos entrecruzamentos possíveis entre elas, desde que se observe nessa ação aquilo que constitui o fundamental na(s) linguagem(ns): a intenção de, através da comunicação, agir sobre o outro, ou seja, o caráter dialógico que, de acordo com as lições backtinianas, está na essência de tudo o que é linguagem.

De acordo com esse olhar e na certeza de que o que faz com que um material seja texto é algo muito maior e mais complexo do que a simples sucessão de palavras, abro este espaço para um rápido, porém necessário, estudo acerca dos sete princípios da textualidade apresentados por Beaugrande & Dressler (apud Valente, 2001), a saber: coesão, coerência, aceitabilidade, informatividade, intencionalidade, intertextualidade e situcionalidade. Os dois primeiros devem ser entendidos como noções centradas no texto, seja sob o aspecto formal ou sob o aspecto semântico; os demais estão mais ligados à pragmática, ou seja, aos interlocutores e à atividade comunicativa em si, apesar de, como veremos, deixarem no objeto textual muitas de suas marcas.

A intencionalidade e a aceitabilidade se relacionam de modo que o produtor do texto constrói, de acordo com suas intenções comunicativas, algo que o recebedor aceitará como verdadeiro, respeitável ou, no mínimo, merecedor da leitura. Em outras palavras isso equivale a dizer que ninguém elabora qualquer material textual sem a intenção primeira e maior de ser lido e mais: de produzir no e para o outro determinados sentidos e formas de ver o mundo. Para tanto, o produto é construído de acordo com as possibilidades de recepção do leitor.

A situacionalidade é outro princípio da textualidade ligado à pragmática do processo comunicativo e é através dele que o texto tem garantida a sua interação com o mundo num dado momento. Assim, o texto precisa, de alguma forma, ancorar-se num aparato situacional, que é extratextual e deve fazer parte do conhecimento partilhado entre autor e leitor, para que se constitua como efetivo veículo de diálogo entre ambos.

Tudo isso, acompanhado de elementos relativos ao princípio da informatividade, ou seja, aos elementos que compõem a informação, o conteúdo novo a ser apresentado ao leitor, forma o suporte pragmático da trama textual que se apresenta nas capas de revistas. É interessante observar que, nas capas, muitas vezes essa “informação” pode aparecer em forma de perguntas retóricas que, além de trazerem forte potencial argumentativo, chamam o leitor a um suposto diálogo.

Outro princípio da textualidade que, como a situacionalidade, está fortemente vinculado ao conhecimento partilhado entre os participantes do ato comunicativo é a intertextualidade, recurso ligado a citações diretas ou indiretas, intencionais ou não que são feitas de modo a relacionar um texto a outros textos e/ou idéias.

Nas nossas produções textuais mais cotidianas, acionamos, ainda que de modo inconsciente, nossos repertórios. Isto é, sendo o homem um ser discursivo, seja na forma de manifestar-se para o mundo ou de entendê-lo, suas atividades comunicativas estarão sempre voltando a outros textos e/ou outras idéias. Sob essa perspectiva, todo texto traz em si uma forte carga citativa que poderia, em sentido amplo, ser entendida como intertextualidade. Os discursos que povoam nosso pensamento e constituem a chamada consciência humana são de tal forma incorporados e abstraídos que não é possível localizá-los com precisão; em alguns casos nem mesmo é possível aceitá-los como formadores das “lentes” que nos permitem ver o mundo tal como o vemos.

De modo geral, os casos de intertextualidade observados nas capas de revistas têm estreita relação com a produção intencional de sentidos. Cabe ressaltar que, no jogo intertextual, o leitor que desconhece o texto materializado no outro texto encontra dificuldades de compreensão, de maneira que a compreensão plena e profunda da mensagem exige do leitor repertório textual compatível com o do produtor, que, na tentativa de imprimir expressividade a seu texto, recorre a outros, seus ou de outrem, de modo integral ou parcial.

No âmbito das noções mais centradas no texto propriamente dito, situam-se a coesão e a coerência. A coesão, cuja análise ocorre num nível microtextual e numa dimensão mais relativa à forma, dá conta da formação do texto como uma unidade de sentido, ou seja, todos os elementos significantes ali presentes, sejam eles de ordem lingüística ou não, concorrem para a construção de um todo cujas partes são interdependentes. Num nível mais semântico ou macrotextual, a construção da unidade textual tem relação com aquilo que se define como coerência, ou seja, a possibilidade de se estabelecer, através das relações entre as idéias apresentadas no texto, um sentido para ele.

Parece, então, que as capas de revistas, como tentarei ratificar na análise, constituem algo que se pode denominar TEXTO e que, além da importância comunicativa em si, o material mostra-se rico pelo uso plural que faz das linguagens, numa composição em que o verbal e o não-verbal completam-se mutuamente, fazendo parte dos recursos de produção de sentido elementos da análise lingüística propriamente dita, tais como, seleções lexicais, perguntas retóricas, pressupostos e subentendidos, construção de polifonia a partir de recortes do discurso de outrem etc., e elementos da análise semiótica, como, por exemplo, cores, imagens, fotos, jogos de luz e sombra etc.

De acordo com Eco (1991: passim 4-12): “É signo tudo quanto possa ser assumido como um substituto significante de outra coisa qualquer (...) Há, pois, signo toda vez em que um grupo humano decide usar algo como veículo de outra coisa.”.

Desse modo, as capas de revistas apresentam-se como texto para cuja produção de sentido a reciprocidade entre palavra e imagem, signos verbais e não-verbais, é fundamental, constituindo-se como instigante objeto de reflexão e análise. Trata-se, sobretudo, de um tecido rico em fios, tramas e texturas, que, em função do seu grande potencial comunicativo, não é produzido aleatoriamente. Ele é um material altamente discutido e pensado por seus produtores, conscientes que são da repercussão do texto pelo qual são responsáveis.

 

Análise

A exemplificação a seguir procurará mostrar que as tendências ideológicas observadas no material em análise não são restritas a esferas políticas mais imediatas, como costuma circular no senso-comum; ao contrário, os recortes ideológicos atualizados no discurso de construção do real que se veicula nas capas de Veja atingem sim aspectos político-eleitorais, mas vão mais longe, atuando também sobre aspectos culturais e religiosos.

A edição nº 1904, publicada em 11 de maio de 2005, veiculava em sua capa a chamada para uma matéria possivelmente motivada pelo lançamento de uma novela global cuja temática envolvia a reencarnação da personagem principal. O fato que nos desperta interesse, entretanto, não é o assunto, mas a forma coma a questão foi apresentada na capa a da revista.

Um olhar global já garante a percepção de flagrante avaliação depreciativa do assunto e, para tanto, colocam-se a serviço do produtor do texto elementos que vão desde a seleção lexical até o uso de cores e efeitos de luz e sombra, construindo num todo, uma coerência semântica que tem a ver com olhar debochado sobre o referente.

A parte central – e maior – da capa conta com a presença da imagem de pés que, pela forma como são apresentados, são responsáveis pela pressuposição do corpo deitado, sendo, dessa forma, um índice do indivíduo morto. O lençol branco que aparece ao fundo, como que cobrindo o corpo, reforça essa idéia.

Para Peirce (1975), índice seria uma espécie de fragmento da coisa indiciada; assim, os pés verticalizados, como parte do cadáver humano, indiciam a presença do corpo sem vida.

Um Indicador é um signo que se refere ao Objeto que denota em razão de ver-se afetado por aquele Objeto. (...) Na medida em que o Indicador é afetado pelo Objeto, tem necessariamente alguma Qualidade incomum com o Objeto e é com respeito a essas qualidades que se referem ao Objeto. (Peirce, 1975: 101)

A ironia ganha força nesse jogo sígnico com a colocação de uma plaqueta típica de portas de lojas comerciais, com a inscrição “VOLTO JÁ” naquilo que indicia a pessoa morta. Desse modo, é como se o próprio cadáver, indiciado pelos pés em posição vertical fosse o enunciador do aviso, ou seja, é o próprio morto enunciando e anunciando o seu breve retorno.

Essa composição funciona como um argumento do ridículo (Abreu, 2003), que consiste em criar uma situação irônica ao adotar o discurso do contra-argumentador, destacando-se o seu caráter estapafúrdio. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996: 233-4) explicam o ridículo como estratégia argumentativa:

O ridículo é aquilo que merece ser sancionado pelo rido, aquilo que E. Dupréel, em sua excelente análise, qualificou de ‘riso de exclusão’. (...)

Uma afirmação é ridícula quando entra em conflito, sem justificação, com uma opinião aceita. Fica de imediato ridículo aquele que peca contra a lógica (...).

Ainda em relação ao aspecto não-verbal, a sugestão, pelo jogo de cores e de sombras, de uma luz ao fundo concorre, junto aos outros elementos do quadro pictório, para uma referência a montagens televisivas e/ou cinematográficas de baixo custo, com o uso de clichês previsíveis, de um modo que a ridicularização do assunto posto em tela torna-se um sentido subjacente àquilo que poderíamos definir como o tema da capa. Tudo isso parece evidenciar que, ao selecionar e combinar elementos para uma representação, submetemos esses elementos a uma manipulação ideológica inerente à ação comunicativa do homem.

Nessa mesma tendência e seguindo o princípio da não-contradição (Charolles, 1977), aparecem os elementos propriamente verbais.

O título “VIDA APÓS A MORTE” reafirma o que se veicula na parte não-verbal do texto, sendo, para ele, uma espécie de legenda na qual a carga irônica parece ter sofrido um apagamento. È como se no título, pelo seu caráter verbal e mais objetivo, a revista, de certa maneira, guardasse uma intenção de se resguardar, o que pode ser compreendido se levarmos em consideração o princípio da aceitabilidade e o fato de o poder de um veículo de comunicação ser, na verdade, o poder que o leitor da a ele. Em outras palavras, a depreciação apresentada através dos elementos não-verbais do texto se camufla um pouco no texto verbal, uma vez que a revista não pode perder a credibilidade do público adepto ao espiritismo, que, segundo ela mesma, é crescente.

Charaudeau (In Charaudeau e Maingueneau, 2004: 143), ao discorrer sobre as estratégias de discurso, define essa atitude, que visa determinar a posição de verdade do enunciador, como estratégia de credibilidade e explica:

A credibilidade é um fato de estratégia de discurso que, à semelhança das estratégias de legitimação e de captação, consiste, para o sujeito falante, em “determinar uma posição de verdade, de maneira que ele possa (...) ser levado a sério”. Com essa finalidade, o sujeito pode recorrer a três tipos de posicionamento: (1) colocar-se em posição de neutralidade quanto à opinião que exprime, “posição que o levará a apagar, em seu modo argumentativo, qualquer traço de julgamento e de avaliação pessoal, seja para explicitar as causas de um fato, seja para demonstrar uma tese; (2) colocar-se em posição de engajamento, “o que conduzirá o sujeito a optar (de maneira mais ou menos consciente) por uma tomada de posição na escolha dos argumentos ou na escolha das palavras, ou por uma modalização avaliativa associada ao seu discurso”, o que produzirá um discurso de convicção destinado a ser partilhado pelo interlocutor.(...) Na comunicação midiática, trata-se, para a instância jornalística, “de trazer a prova do dizer verdadeiro, seja do ponto de vista da própria existência dos fatos em questão, seja do ponto de vista da explicação dada para dar uma razão de ser aos fatos”. (os grifos são meus)

Entretanto, é importante observar que mesmo quando o juízo de valor se pretende camuflado, ele se faz presente desde as escolhas lexicais até a organização dos arranjos discursivos. Nesse caso, a ideologia disfarçada de verdade se torna mais perigosa pois envolve o leitor sem que ele se dê conta disso. Isso porque para que se conquiste o coenunciador num jogo argumentativo é importante que o outro se sinta o responsável por sua própria tomada de posição. Nas palavras de Abreu (2003: 93), “argumentar é motivar o outro a fazer o que queremos, mas deixando que ele faça isso com autonomia, sabendo que suas ações são frutos de sua própria escolha”, ou, pelo menos, pensando isso...

Elementos dessa tendência ideológico-discursiva aparecem no texto verbal da parte inferior da página, onde se vê uma estrutura interrogativa, cujo objetivo é aparentemente o de atrair o leitor para a leitura da revista, mas pode também ser uma chave para o jogo argumentativo/persuasivo que se apresenta nessa capa, encaminhando, pela pergunta, o leitor a certas respostas, ou, segundo a revista, às respostas certas. Conhecendo seu público, a Veja parece querer mostrar elementos de ordem científica que não apenas expliquem, mas também que façam com que o público-alvo relativize a “tão forte” tendência a acreditar em reencarnação e comunicação com os mortos. Desse modo, a revista não apresenta essa tendência como algo ligado à fé – ao inexplicável -, mas sim a fatores que a razão humana é capaz de processar. Parece, então, que a revista em momento algum desconsidera a formação do público a que pretende persuadir com seu discurso. Para Abreu (2003: 75), “aquele que quer persuadir deve saber previamente quais os verdadeiros valores de seu interlocutor ou do grupo que constitui seu auditório.”.

Ainda nesse enunciado interrogativo, chama a atenção a seleção da unidade lexical “crença”. Perceba-se que, em lugar de “fé”, cujo prestígio social, a despeito de seu caráter independente da razão, é grande, Veja opta por “crença”, palavra que guarda uma carga semântica negativa em função se sua relação com práticas de cunho supersticioso, renegadas pela ciência e pela sociedade. Assim, “crença” fica-nos como algo de menor valor que “fé”.

Nesse caso, é interessante observarmos uma capa publicada pouco mais de um mês antes. Em 06 de abril de 2005, a capa do n.º 1899 da revista Veja tratava do estado de saúde do Papa João Paulo II:

Note-se que, agora, o espaço lexical é ocupado por “fé”, no enunciado “A GRANDEZA DA FÉ”. De modo que parece ficar clara a distinção feita pela revista entre os dois tipos de ligação religiosa: a FÉ dos católicos X a CRENÇA dos espíritas.

Citelli (2004: 69) relaciona a seleção lexical e os efeitos argumentativos do enunciado, mostrando que nesse procedimento os planos estilístico e ideológico se cruzam com objetivos persuasivos:

A busca de efeitos argumentativos pode envolver uma conduta quanto à escolha de palavras, locuções e formas verbais. Optar por um termo em detrimento de outro é gesto menos arbitrário do que imaginamos e costuma significar o cruzamento dos planos estilísticos e ideológicos na direção dos discursos persuasivos.

É evidente que, quando escolhemos uma palavra, estamos, na verdade, escolhendo uma forma de representar alguma coisa.

Outros elementos concorrem para a construção desse juízo de valor positivo na capa que tem como referente o Papa João Paulo II.

O fundo preto, além de dar mais evidência à imagem clara do Papa, garante ao texto um ar de sobriedade e respeito que passou longe quando o discurso da revista fazia referência à religião espírita. A cor dourada do título remete o leitor à idéia de realeza, reafirmando a grandeza que é apresentada verbalmente. Em ambos os casos a cor funciona como elemento simbólico; De acordo com PEIRCE (1975: 128), trata-se da significação extraída de um signo convencional, ou que depende de hábito, nato ou adquirido.

No texto verbal, a avaliação positiva, já demonstrada no título pela unidade lexical “grandeza” e pelo uso da cor dourada, é reforçada pelo uso do substantivo “coragem” e da adjetivação em “grandes pastores”, “significado original” e “sacrifício cristão”.

A foto surge como um flagrante do real, constituindo-se argumentativamente como prova contra a qual não há refutação possível. Santaella e Nöth (2005: 120), ao discorrerem sobre as análises de Barthes acerca das fotografias como atos revelados, dizem que se trata “de ‘um gesto colhido num momento da sua execução em que o olhar normal não pode imobilizá-lo’, quer dizer, ‘a foto imobiliza uma cena rápida no ser tempo decisivo’”. A foto escolhida para compor a capa de Veja parece ter imobilizado uma cena rápida que, imóvel, traz forte apelo ao leitor, tornando verdadeira a composição verbal, bem como toda a carga avaliativa a ela subjacente. Isso porque as feições de dor estampadas no rosto de João Paulo II constituem-se como um índice do sofrimento que, segundo o texto escrito, dignifica o Papa e o aproxima do próprio Cristo, como se pode confirmar pela estrutura verbal “sacrifício cristão”. De certo modo, a conjugação entre palavra e imagem faz do Papa uma espécie de ícone de Cristo, numa metáfora que se fundamenta nas idéias de sofrimento e sacrifício.

Segundo as lições de Peirce (1975), o ícone é uma espécie de signo cuja referência ao objeto denotado se dá em razão de características do próprio signo, constituindo-se como uma imagem mental ou uma espécie de imitação. Valente (1997), esclarece-nos, ainda, que o ícone tem por base a metáfora, o que nos leva a ver o uso de ícones como boa estratégia argumentativa, uma vez que é nas dobras do inconsciente que a metáfora se fixa. Charaudeau e Maingueneau (2004: 330) explicam:

Os discursos políticos, morais, jurídicos ou midiáticos fazem grande uso da metáfora para impor opiniões sem demontrá-las. (...) A força persuasiva da metáfora se deve ao fato de fornecer uma ‘analogia condensada’ (Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1970: 535) e um julgamento de valor concentrado (Charbonnel, 1991: 35). Ela ‘adormece a vigilância do espírito’ (Reboul, 1989: 20), transferindo analogicamente um valor decisivo ligado ao termo metafórico para a proposição que se quer que seja aceita. Como observa Boissinot (1992: 87-89), quanto mais a metáfora se apóia em um acordo preliminar e mais ela parece óbvia, mais seus efeitos manipuladores são importantes.

As diferentes abordagens trazidas por Veja para o tratamento de referentes da seara religiosa evidenciam que a percepção do real está sempre impregnada de conceitos e pré-conceitos que se fixam nas formações discursivas e fazem delas seus veículos. Se a partir de diferentes perspectivas é possível construir as mais diversas imagens do mesmo objeto, a imagem que será selecionada para representar publicamente esse objeto depende da intencionalidade, que, por sua vez, é determinada por um jogo em que se envolvem valores, poder e força.

A intenção de trazer à tona elementos que muitas vezes parecem estar escondidos na opacidade do texto tem estreita relação com a necessidade de chamar a atenção do leitor para o fato de que a seleção de imagens, de palavras, de cores, bem como a combinação de tudo isso na composição textual, não é gratuita. Ela alcança efeitos de sentido e nasce de intenções que também podem falar, desde que haja interesse em se saber e em se fazer saber o que o texto, mais profunda e cientificamente, pode dizer sobre os sujeitos que o escrevem e que nele se inscrevem.

 

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