A CONSTRUÇÃO OLHA SÓ
UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA

Sandra Bernardo (UERJ / PUC-Rio)

 

Introdução

Em trabalhos anteriores (2002, 2005), postulei uma função sinalizadora para a expressão olha só, empregada com sentido de prestar atenção, devido ao papel que desempenha na construção conjunta do discurso conversacional, sinalizando novos (sub)tópicos/referen-tes. Esse uso seria estruturado pelas metáforas “Compreender é ver”, “idéias são objetos” e “discursos são fontes de luz” (Lakoff & Johnson 2002).

Assim, com base em Marmaridou (2000), segundo a qual a dêixis é concebida como uma projeção da metáfora APONTAR PARA, tal sinalizador foi considerado um tipo de estratégia dêitica que orienta a construção da conversa. Em outras palavras, o ato físico de apontar é projetado num espaço conceptual. A dêixis é interpretada aqui como uma noção escalar em cujo extremo poderiam ser encontrados alguns mecanismos anafóricos e discursivos.

Pretendo, nesta comunicação, especular sobre o status construcional de olha só com base em Goldberg (1995), a fim de descrever a estrutura argumental do verbo olhar com função de sinalizador de argumentos contrários. Parto da hipótese de que as especificidades pragmáticas, semânticas e sintáticas dessa expressão podem caracterizá-la como uma construção. Baseio-me no princípio da não‑sinonímia (op. cit.: 67), segundo o qual se uma construção é sintaticamente distinta de outra(s), também deve ser semantica ou pragmaticamente distinta.


 

Pressupostos teóricos

Segundo Goldberg (1995)[1], as extensões de sentido observadas no emprego de certos verbos são possíveis, porque os falantes armazenam padrões construcionais e não informações sobre os itens lexicais individualmente.

No âmbito da Gramática das Construções (GC), não há uma divisão estreita/exata entre léxico e sintaxe, nem entre semântica e pragmática. Goldberg (p. 5) parte da hipótese de que construções de cláusulas elementares estão associadas a estruturas semânticas que refletem cenas básicas da experiência humana[2]. A ligação entre os componentes sintático e semântico ocorre por transferência metafórica de eventos encenados.

As construções da estrutura argumental consistem em uma subclasse especial de construções que produzem sentidos básicos das cláusulas (p. 3), a saber:

CONSTRUÇÃO

SIGNIFICADO

Bitransitiva – SUJ-V-OD-OI

X CAUSA Y RECEBER Z

Movimento causado – SUJ-V-OD-OBL

X CAUSA Y MOVER‑SE PARA Z

Resultativa – SUJ-V-OD-PRED

X CAUSA Y TORNAR‑SE Z

Movimento intransitivo – SUJ-V-OBL

X MOVE Y

Conativa – SUJ-V-OBL

X DIRECIONA AÇÃO PARA Y

Quadro 1 – Construções básicas para estrutura argumental

Em outras palavras, padrões frasais são considerados construções se algum aspecto sobre sua forma ou seu significado não é completamente predizível de suas propriedades ou das partes que a compõem, bem como de outras construções. Assim, construções são consideradas unidades básicas da língua.

As construções, que especificam a integração entre o verbo e os papéis dos participantes da cena discursiva, estão associadas a conjuntos de sentidos relacionados e não a um sentido fixo, por isso são polissêmicas. O sentido de uma construção está relacionado a um enquadre (frame) semântico subjacente à cena representada simbolica e parcialmente pela expressão verbal. Esses enquadres integram o conhecimento de mundo partilhado pelos falantes, que podem codificar a cena de diferentes formas, colocando em foco determinados participantes e deixando outros subespecificados.

Combinações particulares de papéis que assinalam as cenas consideradas humanamente relevantes estão associadas às construções da estrutura argumental, que, por essa razão, entalha o mundo em tipos de eventos classificados discretamente, ao passo que os verbos estão associados a significados do enquadre semântico mais rico. Deve haver uma co‑referência entre verbos e construções, para que os verbos expressem, conseqüentemente, a informação sobre a qual tipo de evento estão associados (p. 40).

Os papéis de participantes dos eventos encenados, incluídos no frame semântico dos verbos, são instâncias dos papéis argumentais (agente, paciente, alvo) que integram as construções, porque apontam as restrições selecionais específicas do emprego de cada verbo (p. 43), determinando os aspectos do frame semântico a serem recortados (profile).

A integração entre o papel de participante e o papel na estrutura argumental da construção é determinada por dois princípios que testam a compatibilidade entre tais papéis quanto às restrições semânticas selecionadas:

(i)        O princípio da coerência semântica – somente papéis semanticamente compatíveis podem ser interligados: dois papéis p1 e p2 são semanticamente compatíveis se p1 puder ser construído como uma instância de p2, ou este puder ser construído como uma instância daquele.

(ii)      O princípio da correspondência – cada participante lexicalmente recortado e expresso deve ser interligado a um papel argumental recortado da construção, mesmo que um deles não seja preenchido sintaticamente.

No quadro 2, abaixo, pode‑se observar a fusão entre os papéis de participante do evento encenado e os papéis da estrutura argumental da frase Ela espirrou o guardanapo para fora da mesa.


 

Quadro 2 – Construção de movimento causado

A semântica está associada diretamente à construção CAUSAR‑MOVER que configura os papéis argumentais de agente/causador, de caráter menos volitivo, alvo/objetivo e tema. ESPIRRAR preenche a variável PRED, cuja função é integrar o verbo à construção. No caso da referida sentença, a construção especifica, com uma linha sólida, somente o papel de causador que será amalgamado ao papel de participante que integra o enquadre semântico do verbo. A linha pontilhada indica os papéis que não foram recortados, mas contribuem com construção. R indica o tipo de relação responsável pela integração do verbo à construção.

O princípio da coerência semântica monitora a integração dos papéis dessa construção, bloqueando a fusão entre guardanapo e tema e fora da mesa e meta, devido à extensão de sentido do emprego de espirrar; contudo, tais papéis contribuem para conceptualização da construção. Em outras palavras, a compreensão do sentido desse verbo, bem como sua linearização sintática, deve‑se ao fato de os falantes armazenarem padrões construcionais, não apenas o sentido do verbo isoladamente, o que, nesse caso, seria implausível.

As construções constituem uma rede e são ligadas por relações de herança que motivam muitas propriedades de uma construção particular. Essa rede de herança permite capturar generalizações entre as construções e permite, ao mesmo tempo, sub‑regularidades e exceções (p. 67).

 

 

A construção olha só

Entre os tipos de olha só estudados em trabalhos anteriores, encontram‑se casos em que essa forma sinaliza argumentos contrários, como nos excertos (1) a (3), abaixo:

(1) M = 405 Olha só... porque a Maria Amália... você sabe eles têm medo... né? (BDI 5)

(2) R = 528 Olha só! ... Eu fiquei com raiva ... porque eu- eu fui lá ... com toda boa vontade ... me vesti de noiva (BDI 5)

(3) M = 751 Olha só ... é que vocês rodam- ((Pigarreando)) {segue trecho com superposição}

759 Hein Júlio.

760 Vocês rodam ... prova demais. (BDI 5)

Em (1), a falante introduz um (sub)tópico questionando a intervenção de uma colega na organização da festa junina, a qual aparentemente se impõe em relação aos demais colegas. O delimita/atenua a força da crítica, protegendo a face da falante. Em (2), a falante M relembra falta de reconhecimento de seus esforços para participar da festa junina, que, segundo sua avaliação, foi mal organizada. Nesse caso, o olha só, com entonação exclamativa, reitera a indignação da falante. A passagem de (3) refere‑se a um trecho em que os participantes da conversa estão reclamando dos gastos com cópias de provas e da relação preço-qualidade do serviço de algumas copiadoras próximas à escola. Nesse contexto, a falante introduz de forma modalizada uma crítica à postura dos colegas. Em todas essas ocorrências, o olha só assinala a abertura de um novo (sub)tópico na conversa que reforça a posição do falante de forma modalizada.

De uma maneira geral, pode‑se considerar como propriedades comuns às formas analisadas aqui o fato de participarem da estruturação do discurso em termos (i) organizacionais, já que sinalizam etapas da construção do discurso; e (ii) conceptuais, na medida em que sinalizam FOCOS e PONTOS DE VISTA do enquadre dessa construção. Em outras palavras, tais formas sinalizam etapas, posições e intenções inerentes à compreensão do discurso conversacional.

Em termos sintáticos, o verbo olhar aparece ligado a complementos preposicionados (contra, em, para, por) e não‑preposicionados, bem como na forma intransitiva. Luft (1987), apresenta, com base na noção de regência, seis classificações para esse verbo, considerando também o sentido expresso, o qual, por sua vez, apresenta‑se bem variado, já que, em Houaiss (2001), lhe são registradas 18 acepções.

A partir do pressuposto cognitivista de que o significado lingüístico é corporificado, interpretei o sentido de fixar os olhos (sentido físico da visão) do verbo olhar como prototípico. Embora Luft (1987) e Houaiss (2001) não assinalem como figurado o uso de olhar como prestar atenção, em seu étimo latino adoculāre, de ad ‘direção para algum lugar ou objeto’ + ocŏlō ‘dar vista, esclarecer (fig), abrilhantar (fig.)’, esse sentido era tido como figurado. Logo, considerei olhar = prestar atenção uma projeção metafórica da experiência física de fixar os olhos em algo.

Assim, os sentidos mais abstratos de olhar (dirigir a atenção, considerar, ponderar, examinar, estudar, atentar etc., conforme Luft), que denotam percepção não apenas física mas também mental, aproximam‑se do sentido ver, que remete à impressão mental causada pelos objetos, ao entendimento, daí as metáforas COMPREENDER É VER e IDÉIAS SÃO OBJETOS.

Venho concebendo a conversa como um evento encenado numa arena na qual os falantes defendem suas posições, a fim de atingir um objetivo comum. Trata‑se, assim, de um espaço a ser percorrido metaforicamente, visando ao entendimento.

Essa formulação é estruturada com base na metáfora conceitual DISCUSSÃO É UMA GUERRA. A dimensão espacial de organização do discurso conversacional leva à interpretação da conversa como um recipiente de onde se pode retirar e colocar objetos. Em outras palavras, à medida que o discurso é interpretado/construído conjuntamente pelos participantes, idéias‑objetos são trazidas para um campo de visão: o recipiente onde se encontram os objetos (Lakoff & Johnson 2002: 82).

 

Logo, as posições apresentadas pelos falantes são objetos representados num campo visual: O DISCURSO É UMA FONTE LUZ (Lakoff & Johnson 2002: 113). Como a forma olha só é empregada em passagens que envolvem a sinalização de novos (sub)tópicos, a conceituei como uma projeção da metáfora orientacional EVENTOS FUTUROS SÃO PARA FRENTE, cuja base física é o fato de os olhos voltarem‑se para a direção em que se move (Lakoff & Johnson 2002: 62‑63). Daí projeção da metáfora APONTAR‑PARA para explicar as estratégias dêiticas.

Dada a diversidade semântica e sintática do verbo olhar, ao refletir sobre o esquema conceptual relacionado ao seu uso como sinalizador, postulei o esquema movimento das construções de movimento causado para tal emprego, baseada nos participantes do enquadre semântico de eventos encenados pelo verbo olhar com sentido prototípico de fixar os olhos, a saber:

Participantes
do evento

<quem causa   objetivo  objeto ao qual se dirige a ação>

Papéis
argumentais

<agente/causador           alvo               tema>

Esse esquema conceptual é projetado metaforicamente quando se emprega na conversa a forma olha só, para a qual postulei uma construção de movimento causado, porque visa ao deslocamento da atenção dos interlocutores. Assim, quando o falanteX emprega essa forma está sinalizando ao falanteY a necessidade de que este desloque sua atenção para o objeto que se encontra no campo visual recortado/especificado pelo falanteX, ou seja, X CAUSA Y MOVER SUA ATENÇÃO PARA Z.

A partícula demarca metaforicamente o objeto que está no campo visual do falanteX, conduzindo a atenção do falanteY para o objeto em foco. Portanto, devido ao papel de sinalizador, olha só orienta o caminho a ser seguido, porque O DISCURSO É UMA FONTE DE LUZ.

No quadro 3, em seguida, a exponho a representação da construção proposta para a forma em estudo.

Quadro 3 – Construção olha só

A relação entre o verbo olhar e a construção de movimento causado ocorre por extensão de sentido, que reflete a intenção falante de guiar a maneira como sua posição deve ser interpretada. O FOCO desse objetivo é capturado pelo contexto discursivo, por isso também está representado como um recorte pragmático. A construção gerada pela construção de movimento causado básica herda o papel de agente, satisfazendo os princípios da correspondência e da coerência semântica. O princípio cognitivo da não‑sinonímia também está satisfeito, já que semanticamente os sentidos são distintos.

Apesar de os papéis de alvo e tema não terem sido recortados, o deslocamento da atenção dos interlocutores (tema) para o campo de visão (alvo) do falante que sinaliza o início de um novo argumento estão estruturados na construção.

Portanto, acredito que as ferramentas teóricas utilizadas aqui permitem avançar na descrição formal do papel desses sinalizadores. É necessário, contudo, refinar as primeiras reflexões sobre esse assunto. Pretende‑se continuar investigando os casos limítrofes e prototípicos de olha só (Bernardo 2002, 2005), bem como investigar estrutura argumental de outros sentidos do verbo olhar à luz da Gramática das Construções.

 

Referências bibliográficas

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BERNARDO, Sandra. Dêixis conversacional e metáfora. Comunicação apresentada no II Congresso sobre metáfora na linguagem e no pensamento. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.

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[1] Como as referências a Goldberg (1995) são a base desta seção, doravante especificarei somente o número da página, quando referenciar essa autora.

[2] Hipótese da codificação de cenas: construções que correspondem a tipos básicos de sentença codificam, assim como seu sentido central, eventos básicos da experiência humana (1995: 39). Essa hipótese origina‑se nos trabalhos de Charles J. Fillmore e Paul Kay entre outros (apud Goldberg).