A materialidade da linguagem
na história e na ciência

Carlos Alvarez Maia (UERJ)
alvarez@iis.com.br

 

Introdução

Este trabalho avança para além do território estrito da lingüística porém toma para si termos, conceitos e procedimentos usuais desse campo acadêmico e os aplica à uma linhagem de estudos inovadores, reconhecidos internacionalmente por sua denominação inglesa como Social Studies of Science, SSS, que renovaram as pesquisas da área designada como história da ciência.

Sua meta é expor as condições de possibilidade para o encontro conflitante entre o construtivismo sócio-lingüístico – que imperou nessa área nas décadas de 1970/1980 – e alguma forma de realismo para os saberes, tal que propicie a reunião entre palavras e coisas e afaste o fantasma do relativismo que aí se difundiu.

A investigação aqui retratada situa-se no continente História e foca os processos sociais de produção dos saberes considerados como práticas discursivas exercidas por agentes societários integrados em coletivos de pensamento e de linguagem. Tais agentes – historiadores e cientistas – mantêm um objetivo realista em suas investigações, isto é, perseguem a captura através do discurso das ocorrências que hipoteticamente dão-se no mundo que lhes é exterior. Assim designam seu objeto como uma “realidade histórica” ou como uma “realidade natural”. Trata-se, em ambos os casos, da sobrevivência da idéia de um referente “real”, em si, que o investigador (seja historiador, seja cientista) pretende conhecer. A perspectiva histórica que se delineia aqui busca o compromisso com uma forma de realidade ainda que construída.

Esse realismo diferencia-se do adotado pelo século XIX no qual a apreensão simbólica do mundo através das teorias ditas objetivas era tomada como um reflexo inteligível do real obtido pela linguagem como produção mental da racionalidade humana. Hoje, nesses “estudos”, os SSS, aquelas antigas dicotomias – mental-material, sujeito-objeto, subjetivo-objetivo, inteligível-sensível – esgotaram-se e as pesquisas recentes incorporam instrumentos semiológicos que avançam sobre coisas e objetos, cujo objetivo é ultrapassar as aporias postas pelo relativismo lingüístico e sociológico das décadas anteriores. A partir daí delineia-se uma compreensão de linguagem mais-que-literal que enforma uma historiografia para os saberes centrada no conceito de “inscrição material de sentido”, o foco desta apresentação.

 

O relativismo sócio-lingüístico
em história das ciências

Nas ciências sociais ocorreu uma grande expansão dos estudos de linguagem e sociológicos desenvolvidos após a onda estruturalista de matiz lévi-straussiano. A presença do componente lingüístico na constituição dos saberes era realçada nas mais diversas latitudes disciplinares e marcou a academia com a potência de um evento midiático: o “linguistic turn”ou “semiotic turn”.[1] Daí decorre um radicalismo no qual a linguagem situa-se como a realidade última, sem um apoio na “verdade” do mundo. O mundo seria aquilo dado pela linguagem, o discurso e somente o discurso seria o construtor da realidade, o mundo torna-se um texto literal, composto por representações que, no seu limite mais extremo, são tão somente mentais. Entra-se na “era dos unicórnios”. Dizia-se em tom de um ufanismo nihilista militante: “o mundo é um texto”, “tudo é texto” – e assim bania-se a realidade objetiva para nenhures.

A invasão das aporias discursivas gerou uma “crise da história”, no entorno do “linguistic turn”. Em síntese, a questão posta interrogava: se todo conhecimento provém de um embate discursivo, então como distinguir a narrativa histórica da narrativa ficcional. Afinal, sem a âncora do referente, transformada em quimera das ilusões perdidas, como distinguir o texto histórico “verdadeiro” do mero romance de ficção? (Noiriel, 1996) Dessa forma, a história partilhava do mesmo espectro de dificuldades – o relativismo fantásmico – que também assombrava os estudos de ciência.

Já na área dos estudos de ciência o ponto de inflexão dera-se antecipadamente com o trabalho seminal de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, 1962, que introduziu o conceito de comunidade cujos integrantes se constituem em torno de um mesmo discurso, seus valores e paradigmas. O conhecimento verdadeiro era análogo à produção de crença, desde que aceite pelos membros da comunidade. O saber científico era apresentado como uma disputa entre paradigmas equacionada através do consenso da comunidade de pesquisadores. Dois paradigmas rivais eram considerados em Kuhn como intraduzíveis (incomensuráveis) e a escolha do vencedor estaria permeada por razões sociológicas e discursivas. Abriam-se assim as portas na história das ciências para as ameaças do relativismo sócio-lingüístico.

Este aspecto acirrou-se com os trabalhos subseqüentes, herdeiros de Kuhn. O maior impacto deu-se com o “programa forte da sociologia” produzido por Bloor e Barnes (Bloor, 1976) que apagou a diferença – para a análise sociológica – entre as proposições científicas ditas verdadeiras e as falsas. Ambas estariam ante o mesmo protocolo discursivo e sociológico, indiferenciáveis.

Com essa radicalização do “programa forte” associada ao construtivismo lingüístico não há alternativas ao conhecimento. É a destruição absoluta dos cânones epistemológicos positivistas e neo-positivistas, mas com isso há também a destruição total. Uma guerra sem vencedores. Porém fornecia uma ilusória liberdade, a de poder “decidir” o que o mundo é: o ser humano basta a si mesmo. Um humano esquizóide cuja realidade é totalmente circunscrita aos acordos do grupo social, de sua vontade, de suas representações. Imperialismo da linguagem pela linguagem.

Entra-se assim em um impasse, sem a clássica objetividade, “um eflúvio do objeto que se oferece para ser desvendado pelo sujeito cognoscente”, isto é, sem o referente-âncora, abrimos os flancos para o incômodo do relativismo, corroendo o processo cognitivo. Há urgente necessidade de mais refinamento nesse programa de pesquisa dos estudos de ciência. Abandonamos velhas ortodoxias epistemológicas, o corte objetivo-subjetivo, mental-material, e introduzimos aporias outras. Palavras e coisas encontram-se em divórcio pleno. Como sair deste dilema?

Uma reorientação, reativa a esse relativismo, começou a se desenhar ainda na década de 1980, que veio a se consolidar na teoria ator-rede, Actor network theory, ANT, produzida por Michel Callon e Bruno Latour. (Pickering) Para a ANT a questão fulcral é escapar desse dilema: objetividade do natural versus intersubjetividade do social. É encontrar um tertius entre objetivo e subjetivo já que esse par deixa-nos em desamparo para analisar as coisas do mundo. Essa dupla decorre de outra, da dicotomia sujeito-objeto, na qual reserva-se ao sujeito do conhecimento o papel de agente, ativo, e ao objeto a ser conhecido o de paciente, passivo. Já Callon-Latour constroem um cenário no qual tudo e todos atuam. Propõem uma nova teoria da ação. Uma saída de mestre: expandir para as coisas a noção de agentes – até então, por tradição sociológica, uma qualidade humana exclusiva. Decorre daí uma tentativa, ainda incipiente, de aproximar coisas e o discurso dos humanos, através do resgate de algumas premissas do realismo para enfrentar a soberba relativista. (Latour)

Nosso desafio, hoje, na história das ciências – matriz edificada no cruzamento da história e da ciência – é expor a produção do conhecimento científico como um processo situado historicamente que apresenta aspectos construtivistas mas não está impedido de tocar o mundo real. Entra-se assim numa fase neo-realista para a qual o objetivo é promover a reconciliação entre palavras e as coisas, entre o discurso e alguma forma de realidade.

 

A realidade histórica desfaz-se do relativismo

Entre dois enunciados, como decidir qual deles é histórico e qual é ficcional? Decidir sem se perder nos labirintos da vertente lingüística estrita que procura, exclusivamente na linguagem pela linguagem, em sua literalidade, resolver o dilema do referente semântico. Ou também sem embaralhar-se com a filosofia analítica da linguagem que persegue a miragem de uma teoria referencial do significado.

A semiologia que constrói novos alicerces solicita a presença do sujeito falante e substitui a noção simples de “significado das palavras” por outra mais complexa e ampla, a de “sentido do texto” – sentido que é produzido por um sujeito para outro sujeito dentro de uma cena discursiva, em uma enunciação. Sentido e sujeito articulam-se como presenças, o sujeito advém com o sentido. Enquanto o significado depende somente da semântica das palavras o “sentido” possui dependência múltipla: dos sujeitos, da cena na qual ocorre, na enunciação, dos cotextos e contextos. Com esse suporte a história alcança maior precisão em conceituar o sujeito histórico como o ser da linguagem e lançar uma hipótese realista para a realidade humana.

Decorrem daí novas leituras, com marcas etnológicas, que perseguem as cenas de enunciação e delineiam duas direções complementares: a primeira, situada mais na instância filogenética, acompanha o processo pelo qual a espécie “forjou” sua humanidade desde seu devir pré-histórico, a sua hominização coletiva, diacrônica, societária porém submetida às condições naturais de sobrevivência, logo, à materialidade; e a segunda, concentrada na instância ontogenética, desvenda como cada indivíduo biológico ingressa em sua humanidade – que não lhe é dada em seu nascimento, garantida por seu genoma – através de suas relações históricas que condicionam as formas de vida, a sua humanização pessoal, por intermédio da historicidade sincrônica, vivencial. Em ambas, as novas discussões privilegiavam a questão da linguagem como constructo-produto, como constituinte essencial e histórico da humanidade, daquilo que fora denominado “ser humano”. Este ser não surge pronto, acabado, como um produto sem vestígios de sua produção, nem como espécie, o Homem, nem como indivíduo, uma criança, uma mulher, um homem. Não se nasce humano, torna-se, em um devir interativo, relacional. Um devir que corrói e desfaz a premissa ontológica do ser, a sua substância, a sua essência anistórica. O que ambos processos, hominização-humanização, revelam é a particularidade deste ser como animal simbólico, como um vir-a-ser da linguagem. A linguagem que o sujeita é a mesma que o torna sujeito: é um estar sujeito, falante e actante do Verbo. E é por estar sujeito de uma linguagem que pode coagir o mundo e reciprocamente ser coagido por ele. Uma linguagem como ação. Uma linguagem historicamente constituída e simultaneamente construtora de historicidades. É um estar sujeito, da linguagem e da história, e reciprocamente, sujeito à linguagem, à história. A conclusão simplificada daí decorrente é traduzida pela mudança na classificação gramatical do lexema “homem”: de um substantivo metafísico para dois adjetivos históricos, logo, melhor dizer humana/humano, e mais, em estado dinâmico, de vir-a-ser. Neste último e mais conclusivo caso, melhor ainda dizer o verbo “humanizar” como o devir do Verbo, que metamorfoseia cada indivíduo biológico, dito humano, para estar um sujeito falante/actante, histórico. Assim, o substantivo “homem” verbaliza-se, transmuta-se nos verbos factitivos “hominizar”, “humanizar”. Por esses caminhos, a mesma linguagem cuja limitação deformada trazia o “linguistic turn” trazia também em sua expansão um arejamento ao monólito que se constituíra como homo sapiens, o ser racional. O humano – como um artefato – emerge do seu vir-a-ser, o humano vem a ser, não é um ser no sentido ontológico de algo isolado, com propriedades em si, um invariante, não é um algo predicado pelo Ser, mas um ente discursivo no mundo. “‘Ser falante’... é um pleonasmo, porque existe apenas ser devido à fala; se não fosse pelo verbo ‘ser’, não existiria nenhum ‘ser’.”[2] A substância do ser é sua historicidade forjada em escrituras, em letramento.

É justamente em sua enunciação que aquilo denominado “humano” recebe suas inscrições e advém. Torna-se sujeito – humano – por se sujeitar. Na enunciação, as inscrições se materializam, incorporam-se ao ser, produzem o ser. Na enunciação o literal inscreve-se como material, e o humano se faz como texto, texto mais-que-literal. Agora, o humano como um artefato em devir, e a própria história como uma escritura diacrônica desse artefato, desse estar devir na linguagem. Esse sujeito se faz em uma prática discursiva designada como a realidade histórica desse agente.

Essa insistência histórico-semiológica em transbordar o literal para o material, fabrica ainda novos instrumentos como teares de uma textura diferenciada para os textos moldados em uma tessitura mais-que-literal. Tratam-se dos conceitos de “traço”, “inscrição”, e “escritura” tomados de empréstimo da Gramatologia derridiana e aplicados a realidades históricas concretas. São instrumentos que expandem a superfície textual, dão-lhe espessura e densidade – em consistências nada metafóricas –, desenham e enformam espaços-volumes, modelam um corpo significante como vestuário amalgamado com as coisas do mundo, é o literal em sua materialidade mais concreta: o mais-que-literal.

O salto entre coisas e palavras:
traço e inscrição

Mas como as coisas do mundo são apreendidas pelos sujeitos falantes? Como a materialidade veste-se em literalidade? Como as coisas encontram efetivamente as palavras?

Vamos em busca da cena originária hipotética que envolve esse encontro, das coisas com as palavras, vamos para esse tempo anterior. Seja o evento primordial – “E no princípio era um simples traço diferencial ...” – no qual a coisa mostra-se apenas como diferença, um rastro sem a presença da significação, tão somente a sua diferença é percebida. Este evento se materializa rotineiramente, por exemplo, no impacto inesperado de uma gota de chuva – antes de ser assim nomeada –, ou em um ruído súbito não identificável, ou por um aroma incógnito, ou no surgimento de uma sombra imprevista... São traços. Eis aí e assim o momento em que o mundo real invade a cena de vida de cada sujeito, eis como o Real – não simbolizado – mostra-se à realidade humana, histórica.[3] O traço simplesmente marca uma diferença enquanto tal, ele não remete a nada. O traço “real”, do Real, atravessa a realidade historicamente constituída. Mas o traço encontra-se aquém das palavras, simplesmente uma diferença que “anuncia-se como tal”, declara Derrida (57), “é preciso pensar o traço antes do ente[4]

Ao considerar de maneira mais concreta essa invasão do real do mundo “extralingüístico” no cenário das ações humanas, permaneço aqui, agora, refletindo ao escrever essas palavras, enquanto observo uma ultra-sonografia preenchida por manchas desiguais, por traços, rastros derridianos. As manchas de claros e escuros não remetem a nada. Para minha observação leiga, esses traços só mostram diferenças visuais, de tons. Mas o especialista delineou com sua caneta um contorno e anexou-lhe uma designação: “feto no quinto mês”. Ele nomeou a diferença exposta pelo traço, a diferença constituída no traço tornou-se significante. As formas de significação partem da captura da diferença, do traço que se institui. Após a nomeação o ente se fez. Uma presença, um objeto. Mas para o traço se fazer uma presença solicita a participação de um sujeito. De um sujeito afetado pelo traço. Ante a ultra-sonografia o leigo – naquela prática – é afetado por manchas, vê manchas. Já o especialista – na prática que produziu aquele artefato, a ultra-sonografia – é afetado por um “contorno fetal” que lhe é visível. Ele vê um feto. Ele vê o feto por ser sujeito em uma prática discursiva, uma prática na qual a palavra “feto” já circula semanticamente em um estilo de pensamento fleckiano o qual, por sua vez, produz uma taxonomia para o mundo, taxonomiza a realidade histórica daquela prática, daquele coletivo de pensamento. Esta, a sua condição sine qua non. A condição para nomear o traço, para identificar o traço nas características de sua prática discursiva. O traço afeta tanto o leigo quanto o especialista, como pura diferença percebida como tal, porém cada um desses sujeitos resolve essa percepção – essa afecção/afeição – dentro do seu próprio universo discursivo, de sua semântica, de seu léxico.[5] São sujeitos históricos trabalhando no interior de suas respectivas historicidades constitutivas, de seus coletivos/estilos de pensamento. O leigo nomeia “mancha”, o especialista, “feto”. O real do traço é conduzido para o interior da realidade simbólica, ele invade e atualiza a realidade histórica. Assim o traço ingressa na linguagem: torna-se uma inscrição; recebe o batismo simbólico, das palavras. Eis o salto de coisas a palavras. Para tanto, solicitam-se três componentes: um traço diferencial (que afete um sujeito), uma linguagem (que constitua uma prática discursiva) e um sujeito da linguagem (que seja afetado pelo traço).

A mera designação ou indicação gestual de um objeto do mundo já lhe imprime significação, um uso, uma função, uma aplicação, uma classificação. Uma nomeação é seletiva, recorta e focaliza, seleciona um dentre muitos, designa a diferença do traço, destaca-o de seu entorno de contrastes. Já o veste de cultura, impõem-lhe uma nomenclatura, declara-o objeto e lhe inscreve um sentido, uma taxonomia. Torna-o uma presença, presença objetal, presença textual. E essa inscrição, doravante, será inseparável daquele objeto. O objeto nomeado não mais se apresentará em seu “estado de natureza”, despido, incógnito, amorfo. Estará situado na contraluz de diferenças e semelhanças taxonomizadas que o evidenciam. Será visto, percebido, reconhecido, utilizado, pensado com e através de sua inscrição. Essa inscrição retira aquele objeto do anonimato silencioso na multidão, dá-lhe distinguibilidade, sua inscrição o torna visível, audível, torna-o um significante que grita sua diferenciação inscrita para o ouvinte, torna-o um falante. Não há palavras em oposição a coisas, objeto de um lado e palavra do outro, há uma unidade: é uma coisa-objeto-palavra. Para ver o objeto é necessário distingui-lo. E sua distinção inscrita acena para o leitor, torna-o um signo. O mesmo ocorre com a impressão de uma forma diferencial sobre um objeto, como a modelagem de uma peça de cerâmica. Torna-se uma inscrição para o sujeito usuário de utensílios, não há mais argila em-si, de um lado, em “estado de natureza”, e a forma ideal platônica “vaso”, de outra. Compõem agora uma unidade, um objeto com inscrição, ainda que não literal. A forma – o design, a sua atribuição utilitária – está inscrita na argila, lhe é inseparável. E essa forma percebida, que afeta o sujeito, justamente por afetar o sujeito, é transcrita literalmente no termo “vaso”. A forma que afeta e a designação literal “vaso” são, ambas, inscrições. A fidelidade dessa transcrição, de uma inscrição não-literal para uma literal, é garantida pela continuidade do sentido estabelecido por aquela affection derridiana, naquela relação do sujeito com a inscrição da coisa. O traço é a ignição para a produção de sentido, da significação estabelecida pelos leitores da inscrição.[6] Os objetos do mundo eclodem pelas inscrições que lhe dão sentido, sejam elas literais ou não. São significantes que passam a povoar o mundo, e o mundo torna-se uma imensa escritura, a ser lido logo que seus traços afetarem algum leitor: “os próprios objetos poderão transformar-se em fala se significarem alguma coisa.” (Barthes, 133) O débito com os atrevimentos derridianos é impagável, por desconstruir a tradição que se atém à linguagem fonológica – na qual a escrita seria mera conseqüência, representação, da fala e na qual o conceito “idealizado” antecederia sua expressão gráfica. Ao demitir o primado do fonocentrismo, Derrida expande a noção de escrita que deixa de ser subalterna: “a linguagem é primeiramente escrita” (Derrida, 45), “a língua oral pertence já a esta escritura” (idem, 68). Nessa subversão, abrem-se possibilidades de leitura das inscrições postas no mundo, nos traços do mundo. Habitamos a semiosfera. (Lotman)

É o modo fashion de ser: de tudo e de todos, que se encorpam em vestes semióticas. Não há nudez, nada se apresenta em seu estado de “pureza”, em si, em seu singelo “estado de natureza”, anônimo e despido de inscrição. Não há corpo sob o texto, mas corpos-textos. As formas fundidas em conteúdos. O mundo e suas coisas, humanas ou não, expressam-se como vestimentas imaginário-simbólicas, com suas texturas de significação, o literal inscreve formas esculturais, o gesto indicial e o uso inscrevem literalmente sentidos, somente há esculturas semiológicas. E a escultura é forma e conteúdo, inseparáveis: letra inscrita em matéria, enformando-a. E mais, como foi dito, essa morfologia é taxonômica, a forma imprime sentido à coisa material, classifica-a, dá-lhe valores, propriedades, qualidades, enfim, adjetiva. Daqui decorre o dizer renovado, revigorado, outrora expressão militante do construtivismo lingüístico: “tudo é texto”, sim, mas textos mais-que-literais. Esta é conseqüência mais direta da noção de inscrição de Derrida, um instrumento, que impõe uma gramaticalidade relacional – como toda gramática, ela expressa a articulação entre as coisas inscritas – para as inscrições esculpidas. A gramática das inscrições materializadas impede coisas-em-si, em seu “estado de inocência natural”, interdita o nudismo edênico dos seres e das coisas em um idílico mito naturista. Aquilo que é anônimo é igualmente invisível, inaudível, impensável. Não há palavras de um lado e coisas em-si de outro aguardando o encontro. A realidade é o conjunto de coisas-inscrições.

A linguagem não pode se conceber como o resultado de uma série de rebentos e botões, que sairiam de cada coisa. O nome não é como a cabecinha do aspargo que emergiria da coisa. A linguagem só é concebível como uma rede, uma teia sobre o conjunto das coisas, sobre a totalidade do real. Ela inscreve no plano do real esse outro plano a que chamamos aqui o plano do simbólico”. (Lacan, 298/299, grifo meu)

Conclusão

Através da noção de inscrição, enfim, ultrapassamos o eterno e insolúvel enigma de uma antiga bipartição metafísica – das palavras em confronto com as coisas, do literal mental e do objeto material –, vencemos a aporia do referente: de como as palavras “se ligam” às coisas referidas. A inscrição é a presença do signo na coisa, a própria coisa como signo. Não há o “problema do referente lingüístico”! Há, sim, um pseudo-problema produzido por uma ontologia essencialista, mentalista, idealista e alérgica à uma visão histórica e pragmática do mundo. Um falso problema gerado pela invenção de uma dicotomia que rompeu a unidade historicamente constituída: palavras-coisas. O “problema do referente” é o resultado do corte, este sim, problemático, que separou as palavras das coisas e apagou as inscrições. Uma outra visão que observe a linguagem em seu uso efetivo pelos agentes vivendo no mundo, em seu modo de agenciamento do mundo, das maneiras pelas quais afetam e são afetados, mostra-nos outra possibilidade de entendimento. A instauração da linguagem, literal, associada a coisas dá-se como efeito de sentido – transcrito – gestado nas inscrições enformadas nas coisas e que afetam o sujeito.

Inscrição-transcrição compõem um binômio na contínua produção de escrituras. A reunião de coisas e palavras é o mero efeito de uma transcrição, de transcrever em termos literais o sentido inscrito materialmente na coisa. Passamos da coisa para o nome, para a designação literal da característica inscrita e capturada pelo olhar, pelo tato, enfim, transcrevemos a inscrição em outra inscrição, transcrevemos literalmente aquilo que afeta os órgãos dos sentidos e assim produzimos uma nova modalidade de inscrição. Desta, novas transcrições se desdobram. A transcrição é incessante, está em ação contínua. De um fragmento de cerâmica encontrado em um sítio arqueológico, que por esta inscrição afetou o pesquisador, passamos para a inscrição literal “vaso asteca”, e desta inscrição passamos a outras, como o texto desenvolvido em um tratado geral da cultura pré-colombiana – todas, meras transcrições.

A linguagem, literal ou não, gestual ou das formas históricas enformadas nas coisas, está no mundo, é a humanidade do mundo, é a articulação que inscreve o mundo nos humanos e os humanos no mundo, a realidade é o mundo que se percebe como signo, como linguagem. A inscrição é o dêitico por excelência. Aponta e localiza o objeto-palavra, mistura, funde, palavra e coisa. Encontra-se aí e assim o que se designa como semiologia dos objetos – na esteira de Barthes – que ampliou a semiologia para além do literal. E ainda mais, a inscrição é dramatúrgica, é performática, implica em agentes em ação em uma cena, agentes que são afetados pelas inscrições, é performativa. Entramos assim no território da pragmática da linguagem, de seu uso, no qual a própria palavra constitui uma forma de ação. “É a história que transforma o real em discurso.” (Barthes, 132)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.

BLOOR, David. Knowledge and Social Imagery. Chicago: University of Chicago Press, [1976] 1991.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1999.

FINK, Bruce. O sujeito lacaniano, entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 2001.

Kuhn, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975.

LACAN, Jacques. O seminário: Livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953/1954. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

LATOUR, Bruno. A esperança de pandora. Bauru: EDUSC, 2001.

LOTMAN, Iuri. La semiosfera. Madrid: Cátedra, 1996. 3 v.

NOIRIEL, Gérard. Sur la “crise” de l’histoire. Paris: Belin, 1996.

PICKERING, Andrew (ed.). Science as practice and culture. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.

REGO, Claudia de Moraes. Traço, letra, escrita: Freud, Derrida, Lacan. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.

WHITE, Hayden. Historical Construction. Conferência inaugural proferida em 25/10/2000 no I Congreso de Filosofía de la Historia. La Conprensión del Pasado. Facultad de Filosofía y Letras. Universidad de Buenos Aires/UBA.


 

[1] Hayden White tem preferência pela expressão “discursive turn”. (White, 2000)

[2] Lacan: Seminário 21, 15 de janeiro de 1974. Apud Fink, 220.

[3] Lacan faz uma útil distinção entre real e realidade, na qual o real precede a linguagem, a letra, e até resiste à simbolização. Já a realidade – historicamente constituída – suga o real para dentro da linguagem, para o interior dos signos destinados a escrevê-lo e dessa maneira o neutraliza. Mas o real está sempre lá, fora da linguagem, “separado de nossa realidade”, pronto para invadi-la. (Fink, 44).

[4] Derrida utiliza o termo “la trace” que foi traduzido por “rastro” em Gramatologia. Parece-me pertinente a observação de Claudia Rego preferindo o termo, já consolidado em psicanálise, “traço”. Rastro sugere uma relação figurativa com a marca deixada por um animal, o que não é o caso para o conceito “la trace”, que não figura, não remete a nada, somente marca a diferença.(Rego, 151) “O rastro é a diferência que abre o aparecer e a significação”. (Derrida, 80)

[5] Derrida menciona “affection” jogando com esse duplo sentido, afecção/afeição.

[6]O rastro pertence ao próprio movimento da significação”, (Derrida, 86-87), ver também p. 80, o traço “abre o aparecer e a significação”.