Feminismo, machismo
e música popular brasileira

Manoel P. Ribeiro (UERJ, UFF, ABRAFIL)

 

Para execução de nosso trabalho, selecionamos um corpus da música popular brasileira, do período de 1930 a 1945, considerado pelos críticos como o período de ouro de nossa história musical.

Para atingir esse objetivo, os discursos relacionados ao movimento feminista são de máxima importância para a tarefa principal deste trabalho: trazer sentidos inscritos na memória do referente mulher, a fim de produzir uma análise do ponto de vista discursivo do nosso corpus.

O feminismo é um movimento que, a partir de sua inscrição na História, trouxe deslocamentos dos sentidos relacionados à mulher brasileira.

Qual o papel da memória discursiva? Na análise de discurso, a memória é tratada como interdiscurso. Há um já-dito que sustenta todo dizer. Há uma relação entre o já-dito (o interdiscurso, a memória do dizer) e o que se está dizendo (o intradiscurso, a nossa formulação). O interdiscurso é o eixo vertical (dizeres já ditos e esquecidos). No eixo horizontal, temos o intradiscurso, a formulação, isto é, aquilo que estamos dizendo num dado momento, em dadas condições.

 

Formações imaginárias constitutivas da mulher

Considerando que, na linguagem, os enunciados são produzidos em situações de interlocução também afetadas pela História (Orlandi, 1995: 51, apud Mariani. 1998: 30), para compreendermos como se construiu o campo discursivo das formações discursivas relacionadas ao nosso objeto de pesquisa e podermos explicar com propriedade o funcionamento dos discursos em circulação na formação social de 1930 a 1945, faremos um passeio pelo cenário de constituição dos efeitos de sentidos sobre a mulher, marcando suas dimensões discursivas diacrônicas. Procuramos focalizar especificamente as condições históricas que propiciaram investimentos de outros discursos, identificando instituições/poderes responsáveis por deslocamentos de sentidos, numa tentativa de descrever os mecanismos dos trabalhos discursivos, dadas as condições de produção.

Não há como traçar os processos de identificação da mulher sem mencionar o homem e a inscrição de sua identidade, muitas vezes, sobre a mulher. É a partir do reconhecimento do que é um homem que a imagem da mulher é construída no seu social.

Há um perfil feminino delineado, em muitas sociedades, que consideramos marcante na constituição do arquivo — “memória institucionalizada” —sobre a mulher —, o qual mostra o quanto antigas significações sobre a figura feminina ainda podem ter seus sentidos reverberando sobre outros, já formulados ao longo da trajetória da mulher e reconstituídos nas letras das canções selecionadas para nosso recorte teórico.

A ordem discursiva do machismo

O que é, na verdade, ser um homem? Quais são os grandes marcos ao longo do caminho até a maturidade masculina? Quais são os componentes femininos da personalidade dos homens? (Johnson, 1987).

 

O homem é produtor; a mulher é reprodutora

Para se compreender o papel do homem e da mulher na sociedade, é necessário definir o que é o patriarcalismo. O patriarcado se prende às relações familiares, de geração ou conjugais, ou, em outros termos, às relações de geração e de gênero. Também se observam as relações entre pai e filho, com um tratamento mais suavizado daquele sobre a filha, e as relações entre sogra e nora, com o poder da primeira sendo delegado pelo sogro e ou/marido. Há duas dimensões básicas no patriarcado: primeiro a dominação do pai sobre a filha; depois, a do marido (Therborn, 2006: 29-30).

No pensamento patriarcal, o homem deve ser agressivo, racional, forte, ativo, seguro, objetivo. Já a mulher seria afetiva, carinhosa, ingênua, passiva e sensível.

Nessa unidade básica familiar, o pai é o chefe. Na sociedade, o dominador é o homem. No patriarcado, constitui-se um sistema em que a família, principal instituição, trata de perpetuar os valores de dominação e de opressão da mulher. (Gutierrez, 1985: 22/3). No sistema matrimonial patriarcal-capitalista, a mulher, seu corpo, seu destino e sua força de trabalho se tornam propriedade do homem.

Jamais se fez no plano teórico para as mulheres o que foi feito para os operários, isto é, distinguir claramente sua exploração (lucro tirado pelos homens de seu trabalho) e sua dominação (tudo que constitui o poder masculino) (Alzon, 1977: 103; apud Gutierrez, 1985: 47).

Na canção intitulada “Não admito”, de 1940, cantada por Aurora Miranda, irmã de Carmen Miranda, observa-se como, naquela época, se explorava a mulher: “Não, não admito / Eu digo e repito / Que não acredito / Que você tenha coragem / De usar malandragem / Pra meu dinheiro tomar...”

Logicamente que não era esse o tipo principal de exploração que a mulher sofria e sofre até hoje.

Como a principal finalidade do casamento é a reprodução, o corpo da mulher é o meio de reprodução. Além de reprodutoras, as mães são babás e educadoras espontâneas. Todo esse trabalho em casa é considerado “natural”, obrigatório e gratuito, passando a ser “social” se for executado por outra pessoa ou instituição. Neste caso, o trabalho é remunerado.

O sistema capitalista, mais do que qualquer outro, ligou as mulheres à produção dos filhos e, portanto, ao trabalho doméstico, e os homens à produção dos bens, vinculando, pois, homens e mulheres numa relação de dependência muito estreita, mas colocando as mulheres numa situação de dependência absoluta (Um collectif italien. Être exploitées, 1974. Apud Gutierrez, 1985: 48).

O trabalho doméstico, em termos capitalistas, não gera valor, já que não cria algo que se possa vender ou trocar no mercado, não contribui para acumular riqueza. O produto da dona-de-casa tem valor de uso, serve apenas para o consumo da família. Já que não possui valor de troca, não necessita ser remunerado, segundo as formações discursivas inscritas no ideológico do capitalismo. Esse trabalho “natural”, “sem valor financeiro”, invisível, é considerado uma simples extensão do lugar social de reprodutora, mas é uma produção de que dependem todas as demais. Assim, o sistema familiar escraviza e oprime a mulher. Para Engels, a mulher é a proletária do homem:

O primeiro antagonismo de classes que apareceu na História coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; é a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino (Apud Gutierrez, 1985: 49)

Há um tipo de mulher preferido pelos homens que é o da “Amélia”, que já conhecemos pela música de Ataulfo Alves e de Mário Lago. Há um outro exemplo em “Emília”, de Wilson Batista e Haroldo Lobo, de 1941:

Quero uma mulher / Que saiba lavar e cozinhar/ Que de manhã cedo / Me acorde na hora de trabalhar / Só existe uma/ E sem ela eu não vivo em paz / Emília, Emília, Emília / Eu não posso mais.”

O lar é o refúgio da mulher e, para justificar o seu confinamento, o imaginário social concebe o lar como um lugar diferente do mundo exterior, onde impera a competição, uma guerra de interesses. O lar significa aconchego afetivo, solidariedade, valores humanos. Esses são os discursos atrelados ao patriarcalismo capitalista. Na família, essa mesma instância ideológica assegura o status quo de toda a sociedade. Há nesse espaço relações de poder, de dominação masculina e a conseqüente submissão da mulher e dos filhos (Gutierrez, 1985: 55).

(...) a família humana é uma construção social, uma superação da família biológica (macho-fêmea-crias). Seus membros sempre estiveram unidos por uma rede complexa e precisa de direitos e proibições sexuais, de direitos e obrigações econômicas e, mais modernamente, por laços afetivos habitualmente acompanhados de laços legais e religiosos (Rocha Coutinho, 1994: 27).

Outro ponto importante no patriarcado são as relações com os demais poderes existentes. Subordina-se, em parte, à autoridade da Igreja ou aos rituais institucionalizados perante Deus, como ocorreu no Brasil colônia. A Igreja, a partir da nova ordem capitalista, ganhou em autoridade moral, concentrando-se no que podia controlar com facilidade – a família, a vida privada. Além das leis do Estado, houve, por muito tempo, no Brasil colônia, as leis da Igreja, bastante duras com freqüência. Assim, a Igreja, como um braço do poder do Estado capitalista, exercia grande pressão sobre a sexualidade feminina. Havia, ainda, a vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores.(Araújo, 2001: 45)

Atreladas a esse discurso religioso que considerava a mulher como uma “costela de Adão”, vemos canções como “Os Homens são uns anjinhos”, de 1932, de Zeca Ivo e Custódio Mesquita:

Os homens são uns anjinhos / E as mulheres verdadeiros diabinhos / Mas mesmo assim o homem quer / O amor da mulher e seus falsos carinhos// Todo mal que há no mundo /Foi a mulher quem criou / Só não sabe esta verdade /Quem nunca experimentou / Que não quer a gente / Como a gente vê / A minha vida// Ouvi dizer que o diabo / Na outra encarnação / Foi mulher e agora é homem / Só por chateação. // Mulher é a mãe da mentira / A mãe do pecado / e da tentação.

A significação dos sexos começa no nascimento: o bebê feminino se veste de rosa, enquanto o masculino usa a cor azul. De um lado, o menino é “forte”; já a menina é “meiga e delicada”. Essas qualidades determinam o pré-construído no seio social, herança de dominação. E, para distinguir cada membro, precisa-se separar o forte, ativo e agressivo do fraco, passivo e dócil, como elementos contraditórios, polarizados.

A sociedade patriarcal é dirigida para o poder, para o dinheiro e para o lucro. Submete homens e mulheres aos seus mecanismos de riqueza: o homem deve produzir, a mulher deve servir e servi-los. O feminino é reduzido a alguns papéis e qualidades, produto da visão do homem. Este alimenta a dependência da mulher.Tira a autonomia da mulher, empobrece-a, castra-lhe a sexualidade.

Os discursos provindos de formações discursivas do machismo são, assim, identificados como “tradicionais”, estão naturalizados no imaginário que envolve tanto o homem quanto a mulher na nossa sociedade.

 

O homem é viril; a mulher, frágil

Como uma espécie de núcleo de todas as construções discursivas do referente masculino, temos o viril, o másculo. Um bom exemplo é o dos perfumes, em que se separam as fragrâncias masculinas das femininas. Também na vestimenta se nota a preocupação com a virilidade: “Vista-se como um homem”. A virilidade é uma noção bem evidente. Ela vale por si mesma e, também, se impõe a todos. É necessário ser homem em toda a linha. Usar produtos masculinos, permanecendo, no entanto, discreto. Tal descrição identitária afeta expressamente o imaginário masculino.

“Homem não chora!” Ou se é homem, ou se assume uma posição duvidosa. Ele não pode comportar-se como uma mulherzinha, uma donzela ou uma cocota. Tem de possuir qualidades opostas às das mulheres. Por isso, ele deve ser macho, homem, masculino, viril. Ainda, no campo lexical, buscam-se termos apropriados: aguerrido, inflamado, garantido, para o campo semântico de ativo. Para corajoso: decidido, determinado, valente; para valoroso: importante, heróico, imponente, influente, inteligente, veemente; para poderoso: influente, rico.

É preciso velar continuamente para não ser considerado ou confundido com uma mulher. É necessário haver dois universos opostos, distintos, por isso a demarcação é bem nítida. Para o machista, os limites são bem definidos. Para determinar a vizinhança semântica dos termos ou expressões mais usuais, podem-se estabelecer dois quadros que caracterizam a oposição entre o viril de um lado, e, de outro, o “frouxo”, o “passivo”, o “medroso”.

Em suma, na instância ideológica do machismo, o homem é considerado possuidor de qualidades como coragem, audácia e retidão, próprias de seu sexo: “Repita, se é homem!” “Palavra de homem não volta atrás”. Ser viril, ser macho, ser forte, vigoroso, não hesitante.

Assim, a mulher, no imaginário machista, é vista por diferentes ângulos. Discursos se repetem há séculos.

Verifiquem-se os efeitos de sentido que ocorrem ao se chamar uma mulher de chuchuzinho, uma uva, um doce. Vê-se aí a correlação com algo que se delicia ao comer. Desperta-se no homem o prazer de alguma coisa que se come com satisfação, algo apetitoso. Além disso, outros termos se ouvem, como gostosa, gostosona. Poderíamos acrescentar variados epítetos que as mulheres, gostem ou não, são obrigadas a ouvir: amorzinho, princesa, fofinha, gata, paixão, tesão, tesãozinho, belezinha, lindinha. De outro lado, as feias sofrem com: canhão, mocréia, dragão, bucho, traste, bofe, bagulho.”Quem gosta de mulher feia é salão de beleza”, diz a frase de caminhão. Outra: “Mulher feia e cheque sem fundos eu protesto”.


 

O homem deve lutar e triunfar,
e a mulher ser dócil, obediente

A feminilidade é havida como um estado natural a ser conservado, de acordo com os discursos machistas. A virilidade jamais se adquire, nunca se assegura. É preciso que seja manifestada incessantemente. Uma vida de homem requer aventura, competição, caça, sensações fortes, vastos espaços. Ele deve afrontar, conquistar, cavalgar, dominar, adestrar, domar, encarar, enfrentar, assenhorar-se, submeter, subjugar, vencer, empreender. Há um gosto acentuado pela aventura, pelo risco, permitindo ampliar seu domínio, aumentar seu poder. (Falconnet & Lefaucheur, 1977: 39)

A agressividade masculina é ressaltada, torna-se um valor fundamental. Ela se impõe, é essencial para caracterizar determinados momentos. Daí, o uso de termos como “atacar, armar-se, responder ao fogo, batalhar, lutar, vencer”. (Falconnet & Lefaucheur, 1977: 44)

Nota-se o apelo a todas as qualidades necessárias para determinar o lugar social do homem bem-sucedido: “virilidade, força, poder, domínio de si mesmo intrepidez, vigor, nobreza, classe, bom gosto” devem refletir-se no homem de verdade. Ele precisa ser capaz de manter a família em boa situação. Ele deve ser seu próprio senhor e mandar em outros homens, saber dominar e triunfar. É a lei do mais forte, a luta pela vida (strugle for life). As ideologias da competição e dominação justificam a desigualdade social e a concorrência. Por isso busca-se uma justificativa ou outra face: o espírito esportivo (Falconnet & Lefaucheur, 1977: 45).

Isso porque, se a sociedade capitalista pretende ser natural, deseja também mostrar-se civilizada, polida, podendo ser considerada capaz de atenuar o que a natureza tem de excessivamente feroz, brutal, bárbaro, desumano. Para que se perpetue a ordem social, para que se mantenha a hierarquia social, os perdedores no jogo da competição social devem se contentar com o lugar que lhes é reservado. Sem contestação, sem desejo de vingança (Falconnet & Lefaucheur, 1977: 48).

Por isso, o esporte é elemento primordial, autêntico da verdadeira vida do homem. Também a bebida é associada a esse poder e ao luxo. Um ponto não pode ser esquecido: o papel de mando. Na sociedade capitalista, há necessidade de competição e de domínio. “Ser um homem é ser um chefe”(Falconnet & Lefaucheur, 1977: 54).


 

O homem é o chefe da família;
a mulher não sabe liderar

Antes de mais nada, é imputado a ele o atributo de chefe da família, o eixo em torno do qual tudo gravita. Ali é o senhor absoluto, exerce seu poder total. Em princípio, todos os homens são chefes, em seu nível, de acordo com sua capacidade. Já as mulheres seriam incapacitadas de ocupar esse lugar social de liderança. Grandes decisões são próprias de homens. Eles são mais insensíveis a revoltas ou reclamações. Os homens estariam mais bem organizados. O homem estaria preparado para exercer uma relação de domínio ou de mando, já que a mulher é doce, dócil e obediente, enquanto o homem é o senhor, sentido hegemônico que se cristalizou. “Na impossibilidade de exercer o poder político, econômico ou social, é preciso ao menos ser o senhor em casa, ou dono de seu pardieiro” (Falconnet & Lefaucheur, 1977: 59).

As relações de poder entre homens e mulheres na família e na sociedade são práticas que se refletem na materialidade da linguagem. É o tecido social que oferece pistas, para que percebamos os mecanismos de cristalização de sentidos, cuja análise, atrelada à história de constituição discursiva, leva-nos a brechas, falhas e rupturas na contigüidade de sentidos. As mulheres, há muito, vêm-se organizando e oferecendo discursos de resistência aos fomentados pela ordem do machismo. Para Weber (apud Rocha Coutinho, 1994: 20), o poder

É a probalidade de um protagonista, num relacionamento social, estar em posição de realizar seu próprio desejo apesar da resistência, indiferente às bases nas quais essa probabilidade se apóia (Weber, 1957,152). Ou seja, o poder seria a habilidade de agir efetivamente sobre as pessoas ou coisas, tomando ou assegurando decisões favoráveis, independentemente destas serem por direito asseguradas aos indivíduos ou a suas funções (Rocha Coutinho, 1994: 20).

Quando o poder se baseia na legitimidade, na noção de que o indivíduo tem o “direito” de impor seu desejo, a partir de uma hierarquização, ele é considerado como autoridade. Para Foucault (Subjet and power, 1982, apud Rocha-Coutinho, 1994: 21), o poder como objeto natural não existe. Há, sim, relações de poder como práticas sociais constituídas historicamente. Ele define, ainda, relações de poder como ações

...que não agem diretamente sobre as pessoas, mas sim sobre as ações, já existentes ou por existir, destas pessoas. Apesar destas relações de poder estarem por vezes ligadas a um consentimento social prévio, elas não são, por natureza, a manipulação de um consenso (Rocha-Coutinho, 1994: 21).

Por essa posição de Foucault, as sociedades têm dispositivos de poder informais, independentes da posição que ocupa uma pessoa. Isso faz com que um grupo ou um indivíduo possa, mesmo sem autoridade legitimada, ganhar o consentimento dos que a possuem ou tomar decisões (Rocha-Coutinho, 1994: 21). Portanto, o poder seria um item do qual todos, no tecido social, estariam dotados. As estratégias de controle levam alguém a pensar, agir ou sentir de uma forma que talvez não partisse espontaneamente dessa pessoa. Essas estratégias estão ligadas à distribuição de poder e de autoridade, quer no espaço doméstico, quer na sociedade de modo geral. Para os homens, o êxito e o poder se refletem em todos eles. Para ser homem de “verdade”, deve ser capaz de manter a família, ser seu próprio senhor e, principalmente, mandar em outros homens. Seja o mais forte, tenha mais dinheiro, mais mulheres, mais poder sobre os outros. Se não for o mais forte, ele sucumbirá. Se não dominar, será dominado.

Mais precisamente, Foucault observa que dominação e submissão estão em simultaneidade no seio social; portanto, se o homem tem poder em sua família, sobre sua esposa e filhos, em outra situação, como em seu emprego, se submete ao chefe, ao diretor etc.

O machismo, para Gutierrez (1985: 118), “não passa de uma postura reacionária que, em escala social, ideológica e cultural, pretende perpetuar – nem sempre conscientemente – o statu quo patriarcal”. Já o feminismo se coloca como um movimento social, como revolução cultural e luta ideológica, pois a mulher pretende libertar homens e mulheres dos estereótipos vergonhosos e constrangedores, para transformar as personalidades e mudar a qualidade das relações individuais e sociais. “Em termos individuais, no plano do quotidiano, o “machista” limita-se a repetir os preconceitos sem questioná-los, imersos numa espécie de alienação falocêntrica” (Gutierrez, 1985: 118).


 

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Na música popular brasileira, pode-se observar o caráter ferino de composições, como em Mulher indigesta, de Noel Rosa: “Mas que mulher indigesta, indigesta / Merece um tijolo na testa / Merece um tijolo na testa (...) Esta mulher é ladina / Toma dinheiro, é até chantagista / Arrancou-me três dentes de platina / E foi logo vender no dentista”. José Barbosa da Silva, o Sinhô, o compositor que “botou o samba no salão”, segundo tia Ciata, compôs o samba Já-já”: “Se essa mulher fosse minha / Apanhava uma surra já-já / Eu lhe pisava todinha /Até mesmo eu lhe dizer chega”. Em outra composição (Minha paixão), de 1923, ele diz numa estrofe:”Não quero teima nem discussão / Meu doce bem minha paixão / Hei de vencer os carinhos teus / Com a luz dos meigos olhos meus”. Note-se que os olhos meigos não são dela, mas dele. A seguir, vem o estribilho contundente: “Olá Olé / Tu bem mereces / Um pontapé”.

Esses exemplos mostram um outro aspecto do tratamento misógino: a violência contra a mulher. A violência, no entendimento popular, pode ser definida como “ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade moral” (Saffioti, 2004: 17). A violência psíquica pode, geralmente, levar a vítima a enlouquecer. A violência psíquica e a moral situam-se fora do palpável, pois seus efeitos não são tangíveis; mesmo assim, elas são passíveis de mensuração (Safiotti, 2004: 18).

Destaca-se sempre a aparência física, em detrimento da personalidade, elemento com que pouco se ocupa o desejo masculino. O homem não consegue superar a dissociação entre corpo e espírito, no qual ficou enredado seu desejo. O corpo da mulher fica separado de seu caráter e de sua inteligência, tornando-se ela apenas um objeto sexual. O homem se diz atraído por qualidades como doçura, ternura, sentimentalismo, associando-se à mulher os conceitos de intuição, gentileza, fragilidade, necessidade de dependência afetiva. Isto é: Seja, sensível e cale a boca (Falconnet & Lefaucheur, 1977: 83/4).

(...) a linguagem constrói o mundo, não o “representa”. (...) Dizer como algo se chama não é simplesmente nomeá-lo ou falar sobre isso: é, num sentido muito real, convocá-lo a ser como foi nomeado. (W.Barnett Pearce. Apud Lopes, 2001: 101).

Para finalizar diríamos que, há muito, existe a escuta de muitas vozes de mulheres, que ressoam forte, tentam conseguir mudanças, não se satisfazem com o já estabelecido. Têm esperanças, um sentimento que depende da ação de todos numa sociedade desigual. É preciso transformar e reconstruir. Os direitos das mulheres são legítimos, não dependem de condescendência. São reais porque cada ser humano deve ter o reconhecimento dos direitos, pela existência e vivência num mundo em transformação.

Há uma multiplicidade de vozes, de diferentes culturas, raças, classes sociais, das que vêm do campo, das lutas organizadas, como a que conseguiu maior proteção às trabalhadoras gestantes. Ouvem-se também as vozes das mulheres de dupla jornada de trabalho, em casa e fora, participando ativamente do sustento da família, administrando o lar, cuidando dos filhos e do marido. Enfim, muitas vozes que não devem submeter-se, que devem continuar a luta por seus direitos, seu lugar na sociedade (Gonçalves, 2001: 89-90).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FALCONNET, Georges & LEFAUCHEUR, Nadine. A fabricação dos machos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1977.

GONÇALVES, Nair Teresinha. Escutando a voz das mulheres. In Construções e perspectivas em gênero. São Leopoldo: Unisinos, 2001, 89/100.

GUTIERREZ, Rachel. O feminismo é um humanismo – o sentido libertário da luta da mulher. São Paulo: Nobel, 1985.

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LOPES, Janecy T.S. Mulher e família: a construção de uma nova forma de ser? In Construções e perspectivas em gênero. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 101/108.

MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa. Campinas: Unicamp, 1998.

ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.

––––––. A mulher na sociedade de classes – mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976.

THERBORN, Göran. Sexo e poder. São Paulo: Contexto, 2006.