Novo Honda Civic:
“Muito mais que um meio de transporte.
É um meio de ficar feliz”
Estratégias de referenciação
e categorização em textos publicitários

Lucineide Lima de Paulo (UFF)

 

A CONSTRUÇÃO DO REFERENTE
considerações iniciais

Servindo de meio para a língua, o léxico atua na designação dos objetos, uma vez que, por meio das palavras, é possível não só nomeá-los, mas categorizá-los. Contudo, vale ressaltar que as palavras não são um “espelho” do mundo, pois não o refletem ou o designam imparcialmente. A escolha lexical, neste caso, atua como fator de categorização subjetiva – ainda que essa subjetividade não nasça de um único indivíduo, mas de uma coletividade.

É importante notar que a referenciação não constrói o mundo: ela cria, recria, transforma formas de ver o mundo. Designa-se o real conforme um ponto de vista (geralmente marcado por influências de ordem social, cultural ou ideológica). Essa designação, entretanto, não é o real, ela é o referente do real. A partir do referente do real (que pode não ser uma visão legítima, fidedigna do mundo) é que se constroem os objetos a que fazemos alusão nos atos comunicativos. Em outras palavras, a referenciação não constrói os objetos do mundo, mas os objetos do discurso.

Para ilustrar este estudo, apontaremos os recursos de referenciação em textos publicitários[1], procurando mostrar que a publicidade se vale, em diversos momentos, da recategorização como tentativa de seduzir o leitor.


 

PROCESSAMENTO TEXTUAL

Tomada a linguagem como atividade interindividual, é preciso reconhecer que, no ato de comunicação, os indivíduos usam recursos objetivando atingir o outro com seu texto, segundo sua própria intenção. Na atividade de produção textual, empregam-se estratégias de processamento de três tipos (conforme Koch, 2003a, p.34).

- ESTRATÉGIAS COGNITIVAS: a comunicação se efetiva conforme os indivíduos que interagem detenham conhecimentos de diversos campos, a saber: objetivos, convicções e conhecimento de mundo (seja episódico ou enciclopédico). A inferência é uma estratégia cognitiva prototípica.

- ESTRATÉGIAS SÓCIO-INTERACIONAIS: essas estratégias são socioculturalmente determinadas e funcionam como apoio para levar a bom termo as interações(por exemplo, as estratégias da preservação das faces, da polidez, da negociação etc).

- ESTRATÉGIAS TEXTUAIS: subdividem-se em quatro:

·         Organização da informação: equilíbrio da quantidade de informações novas, desconhecidas para o outro, e de informações já dadas, aquelas de que ele já dispõe.

·         Formulações: inserção (introdução de explicações, justificativas, exemplos) e reformulação (parafraseamentos e repetições, para reforço do argumento ou correções e reparos).

·         Referenciação: reativação de referentes, por meio dos quais se constroem cadeias coesivas mais ou menos longas.

·         “Balanceamento” entre explícito e implícito: o qual considera a relação entre as informações textualmente expressas e os conhecimentos prévios.

 

REFERENCIAÇÃO

Existem duas grandes modalidades de coesão, segundo Koch (2003a): a referenciação e a seqüenciação. A coesão referencial se estabelece entre dois ou mais componentes da superfície textual que remetem a (ou permitem recuperar) um mesmo referente. Já a coesão seqüencial permite a coesão do texto por meio da recorrência (de termos, de estruturas etc) e da progressão (por manutenção temática ou encadeamento).

A progressão referencial (Koch e Marcuschi, 1998) se dá com base numa complexa relação entre linguagem, mundo e pensamento, estabelecida centralmente no discurso. Ela é obtida por meio de dois mecanismos básicos:

·         SUBSTITUIÇÃO: quando se troca um elemento do texto, retomando-o ou precedendo-o (por meio de pronomes, verbos, advérbios ou quantificadores que substituem outros elementos do texto) ou, ainda, por elipse;

·         REITERAÇÃO: quando se retoma um termo por sinônimos, nomes genéricos, expressões nominais definidas, repetição de mesmo item lexical ou nominalização.

Há, para Koch (2003b), três princípios básicos de referenciação:

a)             ativação – introduz-se um referente textual (até então não mencionado), que, daí por diante, ficará em foco na memória do interlocutor;

b)             reativação – ativa-se novamente o elemento já mencionado, através de outra forma referencial, de modo que o referente textual permaneça em foco;

c)             de-ativação – ativa-se um novo referente, deslocando-se o foco de atenção do anterior, que ficará, agora, somente inferível.

Por um lado, essa seqüência de ativação/reativação/desativa-ção constrói o objeto e estabiliza seu significado; mas, por outro, essas mesmas referenciações reelaboram o referente, modificando-o constantemente (ainda que de forma mínima), uma vez que, a cada retomada, acrescentam-se informações ou avaliações acerca do referente.


 

PRINCIPAIS ESTRATÉGIAS
DE PROGRESSÃO REFERENCIAL

Para realizar a categorização ou recategorização dos objetos é preciso que se construam cadeias referenciais, que indiquem a progressão efetiva do texto. Destacam-se três estratégias principais (Koch, 2003b: 85):

·         Uso de pronomes ou elipses;

·         Uso de expressões nominais definidas (formas constituídas por um determinante seguido de um nome). Destacam-se quatro:

         i.      descrição definida: é a ativação de características que o locutor procura ressaltar, dentre os conhecimentos supostamente partilhados com o interlocutor;

        ii.      nominalização: é a atribuição do estatuto de referente a um conjunto de informações que, naquele instante, foi organizado;

      iii.      rotulação metadiscursiva ou metalingüística: é a recategorização por meio de formas metalingüísticas ou metadiscursivas, como nomes “ilocucionários” (ordem, conselho), de atividades “linguageiras” (debate, exemplo), de processos mentais (análise, suposição,) e nomes metalingüísticos em sentido próprio (frase, questão, termo);

      iv.      anáfora indireta (ou associativa): é o uso de expressões definidas sem referente explícito no texto, mas inferível a partir de elementos nele explícitos.

Há, ainda, três outros mecanismos que recategorizam: metáforas (estabelecem a orientação argumentativa do texto), denominação reportada (introduz, no texto, termos ou expressões da fala do Outro) e seleção dos modificadores avaliativos.

Todos essas expressões referenciais funcionam não somente para referir,

Pelo contrário, como multifuncionais que são, elas contribuem para elaborar o sentido, indicando pontos de vista, assinalando direções argumentativas, sinalizando dificuldades de acesso ao referente e recategorizando os objetos presentes na memória discursiva. (Koch, 2003b: 106) (grifo nosso)


 

REFERENCIAÇÃO E CONSTRUÇÃO DO SENTIDO

Ogden & Richards (1923, apud Koch, 2003b) propuseram a figura de um triângulo para representar o processo cognitivo, onde estariam em relação, na construção do sentido, o símbolo, o referente e a referência:

 

Discutindo a diferença entre informação e significado, Eco (1976: 94) fornece um exemplo para, em seguida, recorrer ao triângulo de Ogden & Richards. Seu exemplo ilustra uma situação em que, a partir de um fato (um problema), são necessárias respostas (soluções): numa represa há um aparelho, uma espécie de bóia que, ao captar determinado nível de saturação, ativa um transmissor, emitindo um sinal, o qual é captado pelo aparelho receptor que, por sua vez, acionará um mecanismo para escoamento de água, corrigindo, assim, a falha. Tudo mecanicamente.

Contudo, se, em vez de um aparelho receptor, um ser humano recebesse o sinal emitido pela bóia, o circuito de ação e reação não se restringiria simplesmente a acionar um mecanismo para escoamento da água: o homem poderia se assustar, em função da situação de perigo (haveria um aspecto emocional no processo). A partir dessa figura, Eco estabelece a diferença entre sinal e sentido: a máquina recebe uma informação, mas não um significado.

Já Blikstein (1985, p. 46) propõe que o triângulo apresente uma configuração semiológica mais abrangente, uma vez que a realidade se transforma em referente por meio da percepção/ cognição ou da interpretação humana:

 

 

Blikstein considera que, o que julgamos ser a realidade, não passa de um produto da nossa concepção cultural, pois nossa percepção não é “ingênua” ou “pura”, mas está condicionada a um sistema de crenças e estratégias perceptuais.

Vemos, então, que a significação do mundo não é feita somente pela nomeação (como um processo de “etiquetagem”) ou pela elaboração da informação, mas pela (re)construção do próprio real, de acordo com a interpretação humana sobre o mundo, influenciada pela prática social de seu grupo.

Observemos, então, um exemplo de referenciação, tirado de um texto publicitário, em que a escolha do nome e de seus modificadores vai ser a responsável pela orientação argumentativa do texto (seleção lexical):

Exemplo

Você não poupa energia na hora de trabalhar. Dinavital C não poupa na hora de repor. Para enfrentar o ritmo do dia-a-dia, você precisa de uma dose extra de energia efervescente: Dinavital C. O antifatigante rico em Aspartato de Arginina e Vitamina C que trata o estresse e o cansaço físico e mental com um delicioso sabor. Experimente essa nova fonte de energia.

Nesse exemplo, o produto “Dinavital C” é retomado, no decorrer do texto, de três maneiras diferentes:

Primeira retomada: “uma dose extra de energia”;

Segunda retomada: “o antifatigante rico em Aspartato de Arginina e Vitamina C que trata o estresse e o cansaço físico e mental com um delicioso sabor”.

Última retomada: “nova fonte de energia”.

Notamos, porém, que essas três retomadas não são de forma alguma neutras. A cada remissão, é acrescentada uma nova informação que funciona como apoio ao argumento do locutor (isto é, “compre, pois você precisa desse produto”).

A publicidade aproveita-se da instabilidade das entidades para fazer, ela mesma, uma categorização que sirva a seus objetivos (de induzir ao consumo). Notamos uma referenciação fundada no aspecto ideológico, apelando-se para o senso comum, os valores sociais, as ideologias existentes em dado grupo social (por exemplo, status, longevidade, beleza, aspecto saudável, sensação de poder, de comando, de domínio etc).

A seguir, discutiremos alguns recursos de referenciação e conseqüente categorização dos objetos, usando para isso três textos publicitários.

Texto 1

Para alguns é uma alface. Para nós é uma fábrica de fertilizantes, um produtor agrícola e uma cadeia de supermercados.

Os gerentes do Bradesco Empresas estão capacitados para enxergar mais longe, por isso têm sempre as soluções mais adequadas para sua empresa.

Observamos nesse anúncio uma “meta-recategorização”, em que, para valorizar os gerentes do banco e a visão ampla de que dispõem, o anunciante retifica um possível conceito criado sobre dado elemento (a partir da figura “alface”) para fazer crer que esses administradores possuem tino comercial e outras qualidades que os tornam indispensáveis ao leitor. Tal raciocínio pode fazer o possível consumidor crer que consultar tais gerentes é de inegável importância para a empresa dele.

O mecanismo lingüístico empregado é o uso de expressões nominais indefinidas, pois o autor focaliza a informação que veicula (ou pelo menos o aspecto que o referente permite inferir), não atuando diretamente no processo coesivo do texto.

Texto 2

AutoCAD. O benefício chega agora. O custo, só começa em agosto.

Observamos que AutoCAD não é mais somente um programa de computador, mas um “benefício”. Aqui, a nominalização reconstrói o sentido do referente no texto. É essa descrição definida que contribui para a singularização do produto, tornando-o único. Com essa caracterização, o produto se torna desejável, pois o leitor (um consumidor potencial) pode concluir que sendo o software um benefício rápido, cujo pagamento ainda está distante, vale a pena adquiri-lo.

 

Texto 3

Também em textos longos observa-se a recategorização dos referentes. A empresa Hedging-griffo, administradora de bens, lançou a campanha seguinte:

Numa economia com altos e baixos, você precisa de uma administradora de recursos com horas de vôo.

Verificamos, nesse anúncio, uma constante retomada de referentes (quase todos ligados à “Hedging-griffo”), por meio de diversos recursos:

·         pronomes: ela (linha 7);

·         elipse: oferecendo (linha 3);

·         descrição definida: a administradora de recursos... (linhas 7-8);

·         nominalização: É por tudo isso (linha 7);

·         anáfora indireta: nossos assessores financeiros (linha 9);

·         metáfora: todas as referências à aviação, como economia com altos e baixos (título), horas de vôo (equivalendo a experiência – título), turbulência (linha 1), pilotos (linha 1), ambos voam (linha 10).

Foi criada uma analogia para passar, ao leitor a idéia de credibilidade, rentabilidade e outras características necessárias ao sucesso de uma administradora de bens. Esse recurso contribui para despertar confiança, orientando no sentido argumentativo de persuadir o leitor da eficiência da empresa.

Texto 4

Lovedrive – venha testar o Novo Honda Civic 2004. 99,5% das pessoas que vieram amaram. Muito mais que um meio de transporte. É um meio de ficar feliz

Aproveitando-se da palavra meio, o publicitário cria a relação meio de transporte x meio de ficar feliz. Observamos, aqui, uma recategorização com vistas ao objetivo de criar um produto (que não existe na realidade) cuja capacidade exceda a de ser um mero automóvel: ele deve ser capaz de trazer, ao seu proprietário, a felicidade. Para isso, constrói-se um universo de sonhos, no qual as pessoas felizes são aquelas que possuem um carro, mais especificamente, um Honda Civic. É verdade que, conscientemente, as pessoas conhecem as características reais do produto. No entanto, os textos publicitários são construídos para seduzir o leitor, dispondo, como material, tão somente das palavras e dos valores sociais que circulam na comunidade (ideologias, padrões impostos pela mídia etc). Pelos traços ideológicos sociais, a publicidade automotiva se firma, produzindo consumidores que buscam não mais um meio de transporte, mas que procuram, no meio de transporte, o meio de ficar feliz.

 

RECATEGORIZAÇÃO DOS PRODUTOS
considerações finais

As categorias e os objetos de discurso pelos quais os sujeitos compreendem o mundo não são nem preexistentes, nem dados (Mondada e Dubois, 2003): eles se elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos contextos.

Observamos que o texto publicitário comumente reelabora conceitos por meio da predicação, também buscando convencer o leitor a adquirir aquele produto. Essa reelaboração baseia-se numa revisitação aos valores sociais, suas ideologias e estereótipos. No entanto, esse mundo não é o real, uma vez que é fabricado tomando por base apenas determinado aspecto da realidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLIKSTEIN, Isidoro. Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix, 1985.

ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1976. (Coleção Debates)

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Desvendando os segredos do texto. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2003b.

––––––. O texto e a construção dos sentidos. 7ª ed. São Paulo: Contexto, 2003a.

––––––. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Processos de Referenciação na Produção Discursiva. Revista Delta, São Paulo: PUC-SP, vol.14, número especial, 1998. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 25 de julho de 2005.

MONDADA, Lorenza; DUBOIS, Danièle. Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, Mônica M.; RODRIGUES, Bernardete C.; CIULLA, Alena (orgs.) Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003.

OGDEN, C. S.; RICHARDS, I. A. The meaning of meaning. London: Routledge, 1923.


 


 

[1] Revista Caras, Abril: edição 504, número 27, ano 10 (04/07/2003); Revista Veja, Abril: edição 1786, nº 03, ano 36 (22/01/2003); Revista Época, Globo: edição 315 (31/5/2004).