O intertexto fílmico
no conto “O cego e dançarina”,
de João Gilberto Noll

Maria Isaura Rodrigues Pinto (UERJ e UNIPLI)

 

O fato de, no texto de João Gilberto Noll, a linguagem verbal se revestir de um caráter visual e acolher o fragmento como material criativo possibilita à escritura estabelecer com o fenômeno fílmico uma relação simuladora: o fazer romanesco fabrica o efeito cinematográfico por meio do aproveitamento de expedientes da tecnologia da imagem. Tal método de simulação demonstra uma aptidão acentuada da ficção para a técnica de montagem/colagem e para a recorrência a clichês. O presente trabalho, considerando a prática discursiva de Noll dessa perspectiva, busca analisá-la enquanto exercício de pastiche da linguagem cinematográfica. Para tanto, acompanha, interpretativamente, o gesto intertextual que, como operação de escrita, promove a incorporação da visualidade e processa, ao mesmo tempo, a recapitulação parcial e condensada de antigas convenções desenvolvidas pela cinematografia americana.

O conto “O cego e a dançarina”[1] (1), que, sugestivamente, serve de fecho ao livro de estréia do escritor mencionado, encena essa afinidade da obra com as técnicas industriais. A narrativa se constitui num espaço auto-reflexivo, em que os mecanismos de produção escriturais são questionados. Devido a sua auto-referencialidade, o texto funciona como uma espécie de síntese metalingüística do processo compositivo.

A leitura do conto permite constatar que o narrador contrapõe, em seu relato, dois tipos de escritura. Para indicá-los, constrói duas metáforas: “palavras em pássaros” e “pele naturalista do cinema”. Fugindo a premissas clássicas, o narrador, em vez de elaborar as metáforas e oferecê-las ao leitor como construções prontas para o consumo imediato, procura, antes, comentá-las e o faz de tal forma que o campo de significação das mesmas não se restringe, mas, pelo contrário, se amplia, se desdobra.

A primeira metáfora pode ser apreendida como referência a um modo de escritura tradicional, em que o olhar do narrador perscruta o interior dos personagens. Observe-se a passagem:

São de primeira mão as informações. Não que seja médico para desvendar num breve olhar os vermes e a cegueira, de quem quer que seja, mas como confessei no início as palavras em pássaros me atacamfreqüentemente e voam sem deixar que minha língua possa freá-las. Por isso vejo o verme no interior da mulher que dança e vejo o cego no olhar do adolescente (CD: 133).

Nessa perspectiva, o texto se constitui numa alusão irônica a um modelo de narrativa tradicional que, mantendo-se presa aos princípios de profundidade e essencialidade, cunhados de uma tradição mítica, apresenta o narrador como um centro gerador e controlador do sentido — olho divino que tudo vê. Trata-se de uma modalidade de arte que procura realçar a aparência de verdade e causar a impressão de coerência espaço-temporal. Esse tipo de ficção diz respeito, grosso modo, aos pressupostos adotados pelo romance realista do século XIX. A própria constituição da metáfora “palavras em pássaros” indicia a referência a um tipo de literatura clássica, elaborada dentro dos princípios do belo e do requintado. O termo “pássaros”, como metáfora tradicional, relaciona-se a categorias estéticas consideradas nobres, elevadas. Regida pelos padrões retóricos de representação (narrador onisciente, escritura coerente e linear, trama fechada), essa modalidade de discurso, através do aparato da linguagem figurada, tem a pretensão de tornar-se um decalque, esteticamente elaborado, da realidade. No âmbito dessas convenções ilusionistas, a linguagem oculta um sentido (uma verdade) subjacente que a análise deveria desvendar.

No fragmento transcrito, o narrador, inserindo o texto numa perspectiva irônica, traz à cena textual o tema da onisciência e, desmascarando-a, mostra sua artificialidade. Ao suspender a narrativa para justificar a menção aos vermes da dançarina e à cegueira do adolescente, o narrador denuncia o “desvendamento do interior”, ou seja, a visão onisciente, como mero mecanismo escritural, ao mesmo tempo que ratifica a idéia de considerá-la, no seu caso, um excesso involuntário, uma espécie de cacoete, do qual deseja se desvencilhar (“sempre falei num vôo que me parecia demasiado”, CD: 133).

Na focalização da cena da dançarina e do adolescente (intercalada àquela em que o narrador — enquanto personagem — convive com a Loura), empregam-se, como se viu, determinados recursos descritivos próprios da estética clássica. No entanto, o texto desmantela esse “realismo” de fachada por meio da ironia, da descontinuidade, da fragmentação e do artifício auto-reflexivo. O caminho seguido pela escritura é, sem dúvida, o da subversão de uma escrita centrada no relato de um sujeito pleno, onisciente e onipresente.

Em decorrência disso, o texto, contrapondo-se à simbologia clássica de nexos lineares, resulta inconcluso, lacunar e ambíguo, caracterizando-se pela proliferação de imagens e de figuras desconexas e pela justaposição de micronarrativas que acabam se imbricando de forma ilógica, numa nítida demonstração de desapego às regras da verossimilhança.

A tática de incorporar o aleatório evoca o jogo surrealista da “escrita automática”. Observe-se, nesse sentido, a incongruência que se estabelece entre os elementos que compõem o próprio título, se considerados um em relação ao outro. Convém mencionar que a arte clássica sempre procurou eliminar ao máximo o acaso, o contingente, uma vez que aspirava ao controle irrestrito do discurso. Tratando-se de cinema, a luta contra o fortuito culminou com o sistema de estúdios de Hollywood, onde o trabalho de elaboração do produto fílmico era dirigido com extrema eficiência, o que reduzia ao mínimo a possibilidade de atuação do acaso, tido como responsável por possíveis deslizes na produção.

A última seqüência do conto é um exemplo de repentina e imprevista mudança no curso da narrativa. Contrário à lógica-discursiva, o texto enfoca o episódio do adolescente cego, que diz ter atirado, “sem querer”, no narrador. O ilogismo da situação patenteia a não-plausibilidade da linguagem, o seu desprezo por relações causais. O final impreciso do conto, deixando em aberto a questão da morte do narrador, acentua a desestabilização do esquema ilusionista. Via de regra, os desfechos inconclusos dos textos de Noll diferem muito dos finais edificantes e felizes destinados aos heróis de romances e narrativas fílmicas tradicionais.

Quanto ao espaço e à linha do tempo, torna-se impossível estabelecer demarcações precisas nesse sentido, uma vez que tais categorias se apresentam pulverizadas. A narrativa não se situa num local logicamente determinado no espaço e no tempo. Escorregadia e reticente, ela resvala sempre para uma outra situação. Nesse sentido, atente-se para o fato de o texto sugerir dubiamente uma temática nordestina, a partir de imagens que lembram antigos filmes americanos:

Não chove há um ano e meio. A terra em volta se cresta. Há um sensacionalismo nordestino nessa terra ferida, mas a mulher e o adolescente ignoram qualquer Nordeste. E no entanto são atingidos. Tão atingidos que a mulher pensa que dança mas apenas está aturdida por vermes e o adolescente pensa que olha uma mulher que deseja, mas de fato olha a mancha rosa suada que dança na sua quase cegueira(CD: 133).

Irônica e caricaturalmente, a prática textual alude a manejos discursivos adotados em determinados filmes nacionais, como por exemplo, Marvada carne (André Klotzel, 1985), em que a imagem do nordestino passa por um processo de tipificação, peculiar à cinematografia clássica. Em vista das colocações precedentes, depreende-se que o texto vai paulatinamente desconstruindo os estereótipos narrativos que impedem a participação do leitor no diálogo escritural.

Com relação à segunda metáfora do conto, ressalta-se que, enquanto “pele naturalista do cinema”, a escritura visaria ao “registro das superfícies”, logo, à reversão da postura inicialmente mostrada:

Por isso de uns tempos para cá o cinema tem me seduzido tanto, poisele não seria uma espécie de pele naturalista sem vôos musicais(embora tantos filmes neguem isso) ? Queria olhar e registrar com uma câmera a mulher que dança e o adolescente que vê, uma câmera paciente que aguardasse os sinais visíveis dos vermes e da cegueira (CD: 134).

Tal mudança seria alcançada por meio da adoção de mecanismos relacionados à técnica cinematográfica: o olho do narrador, simulando o procedimento de uma câmera, deter-se-ia na superfície das coisas, na pele, no meramente visível, seguindo assim a via oposta à do texto clássico realista, que pretende desvelar interiores e profundidades. O fato de o sistema narrativo optar por um tipo de elaboração descentrada, em que a continuidade e a coerência são desmanteladas pela descontinuidade e pelo ilogismo de imagens desconectadas, mostra que a técnica cinematográfica da qual o texto de Noll se avizinha não é a utilizada pela narrativa realista de Hollywood, embora, de certo modo e em dados momentos, a prática romanesca simule fazê-lo. Na verdade, a escritura se utiliza, em larga escala, de recursos de montagem disjuntiva baseados no corte. São expedientes propostos pelo cinema de vanguarda que hoje já foram repetidos o suficiente para se tornarem banais.

Pode-se detectar, no conto, o uso da colagem que desponta da inesperada associação de detritos narrativos do repertório hollywoodiano, o que demonstra a propensão da escritura ao confisco, sempre desalinhado e insincero, de discursos alheios.Sob tal ponto de vista, a estética de Noll mantém uma relação muito próxima com a pop´art, pois, assim como a estética pop toma objetos do consumo de massa e os desloca do seu campo habitual, instaurando relações inesperadas, também o discurso romanesco entrega-se à coleta de resíduos emergentes do acúmulo de imagens cinematográficas que formam o imaginário urbano e os redistribui insolitamente no contexto escritural. Nesse caso, o termo “naturalista”, que integra a segunda metáfora, equivaleria à estética pop (também chamada de hiper-realista), em que se substitui o procedimento metafórico pela exibição da própria aparência do objeto, pelo simulacro visual. Em Noll, ajuntar recortes de filmes cotidianizados também não é um procedimento metafórico; é, em suma, uma colagem de máscaras.

A recuperação sincrética e parcelar não diz a referência por inteiro, mas, ainda assim, permite ao leitor-espectador o gosto de identificar a procedência dos fragmentos, na medida em que atualiza clichês. O texto se debruça sobre o gênero do western como principal referência que possibilita a articulação do discurso ficcional. A presença desse imaginário se faz sentir através da colagem de ingredientes fílmicos tipificados como, por exemplo, a paisagem desértica, o restaurante de beira de estrada, a dança, a loura, a violência.

Aqui a colagem, já esvaziada do efeito de choque buscado pelas operações dadaístas e cubistas, assume uma dimensão lúdica e prazerosa, que decorre do envolvimento do leitor com o texto. Tal relação de prazer difere do entretenimento convencional, desenvolvido por um tipo de arte simplista e narcotizante como a produzida pela “Fábrica de sonhos“ de Hollywood que, mascarando a realidade, assumiu a tarefa, antes reservada ao romance tradicional, de cultivar ilusões.

O conto “O cego e a dançarina“ se constitui num verdadeiro recolho de fragmentos que, pinçados de seu contexto, são mosaicamente dispostos numa superfície textual marcada pela diversidade. A compilação de “pedaços” é regida pelo princípio do fragmentário.

A narrativa coloca em tensão categorias discursivas tradicionalmente incompatíveis e, com isso, solapa o princípio monológico da unidade. Configurando-se como um amálgama, absorve múltiplos expedientes discursivos. Sob esse aspecto, a par de soluções vanguardistas já assimiladas e simplificadas pela mídia, a escritura reúne, fragmentariamente, material narrativo da Hollywood clássica, assumindo uma ressonância pop, que desmancha o ilusionismo, devido ao efeito que produz através da justaposição estonteante de recortes díspares.

Ao lado de alusões desalinhadas de cenas de antigas histórias, constantemente reiteradas pelo cinema (observe-se, nesse sentido, a cena clichê do cego e da dançarina, prováveis réplicas desajeitadas do western), figuram, revestidas de ironia, referências explícitas a um quadro da cultura cinematográfica hollywoodiana:

Esta mulher loura com quem estou não sabe que neste momento ela poderia ser Tuesday Weld e traz na nádega direita as marcas de uns dentes que eu finquei ainda lá na Barra da Tijuca. Mas a casa que alugamos não é enfim a mansão sulista de A gata em telhado de zinco quente e tem a cor — não é folclore, é pura realidade — tem a cor de rosa-choque (CD: 134).

As absorções parcelares de intertextos fílmicos, bem como as referências diretas a películas famosas expressam, em nível ficcional, o fato de estar o imaginário proliferante da sociedade contemporânea, sobretudo, ligado a um arquivo coletivo de imagens cinematográficas, provavelmente, porque a inclusão do cinema no universo da comunicação eletrônica possibilita o acesso a um número cada vez maior de filmes.

A narrativa promove uma concepção de “real“ compatível com o imaginário veiculado pela mídia, sob a ação do qual se dilui, em meio à homogeneidade das imagens técnicas, os contornos do regional, do nacional. Observe-se, no texto, como as “instantâneas” imagens do nordeste são ironicamente descaracterizadas no confronto com as imagens do cinema. O texto encena o esvaziamento do real, frente ao poder do espetáculo que se consolida na sociedade pós-industrial:

Uma pátria sem fronteiras é eu estar aqui quase esquecendo o que estou olhando e vendo uma paisagem que lembra o revolto Sul dos Estados Unidos num filme de quem sabeElia Kazan sobre o roteiro de Tennessee Williams , em que o tédio da ensolarada tarde brinca com os cabelos da Loura que os sacode para que sequem ao sol da varanda da casa que alugamos? (CD: 134).

Pode-se constatar, com base no que foi dito, que a escritura de Noll não funciona como uma espécie de espelho em cujo centro se projeta a imagem soberana do autor, mas sim, como um espaço híbrido no qual o outro, ou seja, a cultura se mostra. É nessa convivência com o outro que o autor, submetido a um processo de disseminação, passa de uma existência referencial para uma existência ficcional dispersa. Como diz Eneida Maria de Souza, em Traço crítico: “O pai da escrita desaparece e ressurge sob a forma de simulacros, reflexos de obras, re-engendrando textos e perseguindo a aventura da palavra que se relê e se reescreve” (Souza, 1993: 26).

 

Referências bibliográficas

BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991.

METZ, Christian. O significado do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.

NOLL, João Gilberto. O cego e a dançarina. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

SOUZA, Eneida Maria de. Traço crítico. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: UFRJ, 1993.


 


 

[1] As referências a esta obra serão indicadas entre parênteses, adotando-se a abreviatura CD, seguida do(s) número(s) da(s) página(s) em questão.