Polidez nos QUADRINHOS
uma análise Pragmática das tiras de Mafalda

Mônica Lopes Smiderle de Oliveira (UFES)

 

INTRODUÇÃO

Entre todas as linguagens que fazem parte do mundo contemporâneo, iremos abordar uma que realiza a interação entre a linguagem escrita e a linguagem visual: a das histórias em quadrinhos de Mafalda.

Essa interligação do texto com a imagem, existentes nas histórias em quadrinhos, amplia a compreensão de conceitos de uma forma que qualquer um dos códigos, isoladamente, teria dificuldades para atingir. Segundo Lins (2002) essa junção do visual com o lingüístico, quase sempre, faz do texto de quadrinhos a base ideal para pesquisa centrada na interação: o código visual supre lacunas que, por acaso, possam ser deixadas pelo código lingüístico e vice-versa.

Centramos nossos estudos na noção de face de Goffman (1981), e na teoria da polidez de Brown e Levinson (1983). A partir do arcabouço teórico dos autores citados acima, analisamos três tiras de quadrinhos de Mafalda de autoria de Quino que abordam a temática escola.

 

NOÇÃO DE FACE

O conceito de face foi elaborado por Goffman (1981), O termo face é definido como “o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reclama para si mesma através daquilo que os outros presumem ser a linha por ela tomada durante um contato específico” (p.76-77).

O autor nos mostra que o termo pode ser definido como sendo o valor social que uma pessoa assume durante o contato com os outros. Para ele, face é a imagem que a sociedade atribui, é uma máscara, que pode ser usada para se proteger ou atacar. Como se fossemos atores sociais que podemos interpretar qualquer papel dependendo da situação em que estivermos envolvidos, por isso é que Goffman, acredita que a interação entre as pessoas pode modificar a face.

O termo face pode receber um sentido conotado para expressar dignidade, auto-respeito e prestígio, representando aspectos afetivos e sociocognitivos. Essa dupla conotação é explorada pelo autor ao empregar a terminologia shame faced = ficar envergonhado; to save face = salvar as aparências = salvar a face e to lose face = perder o prestígio, desacreditar-se = perder a face.

Goffman estabelece uma distinção entre “salvar a face” (salvar as aparências) e “perder a face” (perder o prestígio, desacreditar-se). Estas distinções são realizadas comparando a cultura anglo-americana à cultura ocidental. Na cultura anglo-americana, “perder a face” significa estar +/- fora da face, estar na face errada, estar envergonhado e sentir-se inferior – imagem do self emocionalmente ameaçada. Nessa cultura, “salvar a face” significa sustentar para os outros a impressão de não tê-la perdido. Já na cultura ocidental, “perder a face” denota estar na face errada, estar fora de face, aplomb e estar em face. Sob o ponto de vista do autor, estudar o modo como as pessoas salvam suas faces é estudar as regras de trânsito da interação social.

A face social de uma pessoa é o que ela possui de mais pessoal, o centro de sua segurança e prazer, “trata-se de um empréstimo que lhe foi feito pela sociedade: poderá ser retirada caso não se comporte de modo a merecê-la” (Goffman, 1981). É uma linha que ela segue perante a sociedade.

Portanto, Erving Goffman ao tratar do termo face e das suas implicações, utiliza uma linguagem teatral. Isto significa dizer que o homem ao interagir socialmente mostra-se extremamente preocupado com a sua imagem, pois o sucesso da interação muitas vezes pode depender da forma como nos mostramos aos nossos semelhantes.

Baseados nessa noção de face, Brown e Levinson (1983) elaboram a terminologia face negativa e face positiva. Sendo que a primeira corresponde ao território de cada um (seu corpo, sua intimidade), e a outra está relacionada com a sua fachada social, a imagem que deseja passar para os outros.

Brown e Levinson (1983) afirmam que tanto o falante quanto o ouvinte tendem a “manter a face um do outro”, porque vivemos em uma sociedade e se quisermos ser aceitos temos que respeitar certas regras sociais. Temos que manter a face positiva que é a necessidade de ser aceito pelos membros de um mesmo grupo social; porque se escolhermos a face negativa, que é a necessidade de ter liberdade de ação e não receber ordens; não seremos aceitos pelo grupo social.

 

TEORIA DA POLIDEZ

O contato com o outro constitui potencialmente uma ameaça e contém sempre uma dose de imprevisibilidade. Ao interagirem em sociedade, ao protagonizarem cenas, os indivíduos se preocupam em manter um certo controle da situação e via de regra se esforçam para anular possíveis agressões e conflitos. Submete-se às chamadas regras de polidez.

Todos tentam se comportar de forma que não agrida o outro e nem si próprio. Usamos as regras de bom convívio para nos mantermos em contato com a sociedade e para que não possamos ser excluídos do convívio social.

Ao estudarem a polidez, Brown & Levinson (1983) distinguiram entre estratégias de polidez positiva – aquelas que mostram a proximidade entre falante e ouvinte – e estratégias de polidez negativa – aquelas que mostram a distância social entre os interagentes. Exemplificando: o uso de epítetos carinhosos é uma estratégia de polidez positiva. O uso de orações condicionais em promessas, possivelmente, é uma estratégia de polidez negativa, pois trazem imposições ao ouvinte e, muitas vezes, evidenciam quem tem mais poder na escala social.

Por isso, quando alguém no decorrer do seu discurso apresenta uma fala inesperada, às vezes, até mesmo infringindo as regras de boa conduta estabelecidas, ocorre o desvio na linguagem. Tanto um quanto o outro deixa a face de um dos interlocutores ou de ambos ameaçada. Portanto, no discurso, o homem recorre a diferentes recursos/estratégias a fim de não comprometer a si mesmo e/ou aquele a quem se dirige.

Podemos indicar alguns atos que ameaçam a face, tanto do ouvinte, quanto do falante. Esses atos ameaçadores da face podem ser:

1) atos que ameaçam a face negativa do ouvinte (ex.: pedidos, avisos, ameaças, advertências);

2) atos que ameaçam a face positiva do ouvinte (ex.: queixas, críticas, desaprovação, levantamento de assuntos “tabu”);

3) atos que ameaçam a face negativa do falante (ex.: aceitar um oferecimento, aceitar um agradecimento, prometer relutantemente) e

4) atos que ameaçam a face positiva do falante (ex.: pedidos de desculpa, aceitar elogios, confessar-se).

Lakoff (1973, apud Lins, 2002) explica que as diferença óbvia entre um comportamento polido e um rude é que o polido traz às pessoas uma sensação confortável de harmonia, enquanto que o rude distancia o falante do seu ouvinte. Com isso, o autor estabeleceu três regras formais de polidez, às quais os falantes devem seguir quando desejam ser polido.

Regra 1: ‘não se imponha’. Essa regra é considerada apropriada em situações em que há uma diferença reconhecida de poder e de status entre os participantes.

Regra 2: ‘ofereça opções’. É apropriada para situações em que os participantes desfrutem do mesmo status social ou poder equivalentes, porém não são íntimos socialmente.

Regra 3: ‘encoraje sentimentos de camaradagem’. Essa regra é apropriada para amigos muito próximos, porque de modo geral, o falante evita uma comunicação direta para não ‘quebrar o laço de amizade que há entre ele e o ouvinte’.

 

UMA BREVE ANÁLISE CRÍTICA DO CORPUS

Para elaboração desse trabalho optamos por escolher os quadrinhos porque versam sobre os mais diferentes temas, sendo facilmente aplicáveis em qualquer área, principalmente, a de linguagens. Segundo Rama (2004), os quadrinhos ganharam, nos últimos tempos, um novo status, recebendo um pouco mais de atenção das elites intelectuais e passando a ser aceitas como um elemento de destaque do sistema global de comunicação e como uma forma de manifestação artística com características próprias.

Dentre os mais diferentes tipos de historias em quadrinhos, escolhemos analisar as tiras de Mafalda. Selecionamos três tiras da publicação Toda Mafalda, de autoria do argentino Quino, da editora Martins Fontes – 1991. Como essa publicação apresenta cerca de duas mil tiras, com vários temas, optamos por selecionar as tiras que abordam a temática escola. As tiras escolhidas abordam a problemática escolar, sugerindo críticas e levando a julgamentos o processo educacional.

Optamos por analisar essa personagem porque segundo Eco (1992, apud Lins, 2002), Mafalda não é uma heroína. É uma anti-heroína. Não aparece para salvar as pessoas, aparece para criticar comportamentos e situações e pôr a sociedade em questionamento. Ela é participativa, constestátaria e quer contribuir para a evolução dos tempos, como um ser humano que pensa, que ter forças e deve ser útil à sociedade.

Mafalda é portadora de uma consciência critica apurada, que surge para nós através do olhar e da percepção inocente de uma menina que, quem diria, tem tanto a nos ensinar.

Na análise das tiras selecionadas, buscamos descrever os atos de polidez e como são empregados durante a interação nos momentos em que a personagem sente sua face ameaçada.

Observemos as tiras a seguir:

Tira 1:

A tira 1, mostra uma cena corriqueira em nossa sociedade, a professora ensinando os alunos a ler com aquele velho modelo educacional com frases feitas e sem nada a acrescentar na formação intelectual dos estudantes ‘minha mãe me mima’ e ‘minha mãe me ama’, e os alunos em seus lugares só ouvindo passivamente o que a professora tem a dizer. Tudo perfeito, até que no segundo quadro Mafalda sai do seu lugar de aluna se dirige à professora e diz ironizando o modelo educacional vigente ‘Parabéns, professora. Pelo visto sua mãe é ótima’ ‘Agora, por favor. Ensine pra gente coisas realmente importantes’.

Quino surpreende as expectativas usuais do modo como os alunos devem atuar dentro da escola, algo ocorre e quebra esse paradigma. Como se vê, Mafalda não está satisfeita com o modo educacional. Ela não é um sujeito passivo, e sim alguém que expõe suas idéias, argumenta e discorda com o velho método. Ela quer aprender coisas realmente importantes e não coisas fúteis. Alinha-se como de igual para igual, contesta e deixa a professora sem resposta.

Como notamos, há a quebra da face positiva, porque todos esperam que o aluno obedeça ao professor, respeite-o e aceite sem questionar, já que ele é o ‘detentor do saber’. Porém, não é isso que acontece com Mafalda, pois ela não age como uma aluna que obedece a tudo passivamente. Ela deixa bem claro que tudo o que a professora falou é algo sem importância e que ela não está ali para ‘perder seu tempo’ com bobagens.

É claro, que ela tenta atenuar essa falta de polidez com o ‘por favor’, no último quadro, para que seu ato não seja tão ameaçador e para que ela possa salvar sua face.

Tira 2

Para realizar uma leitura completa e competente da tira 2, o leitor não pode chegar a ela sem conhecimentos prévios da história mundial. Nas décadas de 60 e 70, quando a tira foi produzida, o mundo estava econômica e politicamente dividido em capitalismo, comandado pelos Estados Unidos e socialismo que era comandado pela extinta União Soviética. O leitor precisa saber ainda, que a sede do governo da Rússia era o Kremlin e o Pentágono é a sede do departamento de Defesa dos Estados Unidos. O edifício tem forma de pentágono. Após esses conhecimentos podemos analisar a tira.

Como vemos, no primeiro quadro a professora começa a desenhar uma figura geométrica na lousa e diz aos alunos que hoje eles vão estudar o pentágono, referindo-se à figura desenhada no quadro. Mafalda imagina que eles vão estudar não só a forma geométrica do pentágono, mas tudo sobre o Pentágono, sede do departamento de Defesa dos Estados Unidos, e faz uma sugestão à professora, dizendo que se eles vão estudar, hoje, o pentágono, amanhã eles poderiam estudar o kremlim, já que os alunos vão aprender tudo sobre o capitalismo, por que não estudar, também, sobre o socialismo?

Ao dar essa sugestão, Mafalda põe em risco sua própria face, porque a professora poderia se ofender com a sugestão e achar que a menina não a respeita como professora, como alguém que é superior naquele momento. Essa intromissão inoportuna é fonte de embaraço, tanto que a menina fica constrangida. Podemos ver isso por sua expressão facial, e ela tenta salvar sua face se justificando “quer dizer pra equilibrar”.

Tira 3

Ao professor, em geral, é garantido o poder para selecionar os conteúdos que serão ensinados aos alunos, bem como o seu modo de transmissão. O fato de ocupar uma posição privilegiada nesta relação, na maioria das vezes, também confere ao professor o direito de falar mais, de iniciar e sustentar os turnos conversacionais, de dirigir o discurso de acordo com os tópicos conversacionais que ele julga serem relevantes para determinada aula.

Por outro lado, não são raras às vezes em que o professor evita que o poder da fala seja compartilhado com os alunos, optando por ministrar uma aula predominantemente expositiva ou até mesmo servindo-se de um discurso autoritário, com o intuito de manter o controle sobre as interações conversacionais que ocorrem na sala de aula (incluindo-se, neste caso, o controle sobre eventos de indisciplina dos alunos). E, às vezes, os alunos levam duvidas para casa, por medo de perguntar ao professor.

Na tira 3, vemos que Mafalda conversa com uma amiguinha no recreio, falando que pediu ao pai pra lhe explicar “algumas divisões” , enquanto isso a professora observa a conversa das meninas, achando que Mafalda estava se referindo as divisões que ela tinha ensinado na aula anterior. E ela fala que as meninas têm que tirar dúvidas com ela e não levá-las pra casa.

Mafalda ignora a fala da professora, a olha com total desprezo, como se pode observar nos quadros 3 e 4, volta-se para coleguinha e diz que pediu ao pai pra lhe explicar as divisões existentes entre russos e chineses, árabes e israelenses, pretos e brancos... Ela pediu ao pai para lhe explicar porque essa divisão não era a matéria que a professora selecionaria para os alunos, talvez porque ela achasse que crianças não precisassem aprender esse tipo de conteúdo. E a própria Mafalda sabia que a professora não estava preparada para lhe explicar esses tipos de divisões, tanto que ela ignorou a professora e a deixou sem palavras.

Ao contrário das duas tiras anteriores em que Mafalda tenta salvar sua face usando atenuações como “por favor” e “quer dizer pra equilibrar”, agora ela não faz questão nenhuma de ser polida com a professora e nem se preocupa em salvar sua face.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, tivemos o propósito de analisar como nas tiras em quadrinhos de Mafalda são utilizadas as estratégias de polidez para salvamento de face. Observamos que ela enfrenta as professoras, impõe-se falando tudo o que tem para falar, não se intimida perante a professora e tenta, algumas vezes, atenuar sua fala para que não possa parecer tão agressiva. Porém, as professoras, em todas as tiras analisadas, se sentem ameaçadas, percebemos isso olhando a expressão facial de cada uma delas, que ficam sem ação e não sabem como lidar com essa situação, pois é esperado que os alunos obedeçam aos professores e não que os reajam e enfrentem.

A análise desse corpus propiciou uma interpretação globalizada em que o lingüístico é visto em paralelo com o visual e que, juntos, os dois códigos nos permitem analisar não somente falas, mas, também, movimentos dentro da interação, posturas, sentimentos de cada personagem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAVALCANTI, Ronaldo A. O mundo dos quadrinhos. São Paulo, Símbolo. 1977.

ECO, Humberto. Mafalda, o sobre el rechazo. (Trad. Marcelo Ravoni) In: RAVONI, Marcelo (org). El mundo de Mafalda. Barcelona, Editorial Lumen. 1992.

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LINS, Maria da Penha P. O humor nas tiras de quadrinhos: Uma análise de alinhamentos e enquadres em Mafalda. Vitória, Grafer. 2002.

––––––. Mas afinal o que é Pragmática? Revista Fala Palavra. Vitória, N.2. p. 52-65. 2002.

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RAMA, Ângela & VERGUEIRO, Waldomiro (orgs). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto. 2004.