Projeto de texto e iconicidade
uma reflexão sobre a eficácia comunicativa

Darcilia Simões (UERJ, PUC-SP e SUESC)

 

Uma breve introdução

Temos a convicção de que uma nação só alcança sua soberania a partir de sua autonomia intelectual. Portanto, somos partidários de uma revolução no ensino do vernáculo no sentido de garantir a todo brasileiro o direito à instrução letrada e, por conseguinte, à cidadania plena. Para clarificar nosso ponto de vista, acrescentamos que toda a legislação de um país se faz por meio de documentos que deveriam ser de conhecimento de toda a população. Contudo há um impeditivo histórico: o analfabetismo. E esse impediente não se soluciona em função de uma política educacional ineficaz, voltada para demonstrativos estatísticos que garantam a captação de recursos para os projetos governamentais, em vez de ocupar-se com planejar ações efetivas sobre o combate ao analfabetismo e ao analfabetismo funcional. Esse, pior que o outro, uma vez que dá ao sujeito a impressão de que mudou de status social, porque aprendeu a assinar seu nome e já pode votar. No entanto, sua capacidade real de intervir nos processos de organização e funcionamento do Estado Nacional fica resumida à sua condição de eleitor de cabresto, uma vez que responde aos comandos de campanhas assistencialistas e populistas que só servem para manter no poder um clã de mandatários, em sua maioria obstinados na consecução de projetos pessoais de enriquecimento financeiro, em detrimento do desenvolvimento do Estado. Convém esclarecer que quando falamos Estado, neste termo reunimos todas as instâncias de Governo.

Há quem nos ouça agora e se pergunte sobre a oportunidade e adequação desta abertura em se tratando de um Congresso de Lingüística e Filologia e de um tema específico voltado para a produção de textos dissertativos eficientes. Mas é-nos muito fácil de explicar e enquadrar essa abertura política no contexto deste evento e, mais particularmente, desta sessão. Não há como apartar domínio da língua nacional e formação da cidadania. O domínio do vernáculo é condição para a participação política eficaz. A formação integral do homem se faz com a vitamina da leitura, e esta decorre de sua competência lingüística. Ora, se os projetos políticos educacionais desenvolvidos no país pelo menos nos últimos 35 anos (desde a Lei 5692/71) têm resultado no ingresso de semi-alfabetizados na Escola Superior, não é possível desagregar a questão lingüístico-filológica da questão política.

O entendimento do que vem a ser domínio eficiente do vernáculo resta deformado. Hodiernamente, um sujeito capaz de preencher quadrículas de formulários e assinar seu nome, muitas vezes de forma quase ilegível, consegue diplomar-se numa graduação e, em seguida, sofrer a desilusão da não-inclusão no mercado profissional em resposta à demanda de qualidade que é crescente a cada dia.

O terceiro milênio acelera os tempos, e os indivíduos são obrigados a buscar meios alternativos de educação permanente, de aperfeiçoamento constante para que não se tornem rapidamente obsoletos, ultrapassados, despreparados, na dinâmica de um mercado globalizado e instrumentalizado pela cibernética e pela robótica. O sujeito coetâneo não pode se deixar vencer pelas máquinas e precisa mostrar sua capacidade de fazer a diferença dominando a máquina e pondo-a a seu serviço e não o contrário. No entanto, uma sociedade constituída de sujeitos analfabetos, semi-alfabetizados ou mal-formados não consegue impor-se no cenário internacional a não ser nos ganhos esportivos. Mas um país não se faz apenas com seleções desportivas!

Por isso, sintonizando o curso desta fala com as metas do Congresso Nacional de Lingüística e Filologia e com o eixo temático desta apresentação, entraremos a discorrer sobre nossa atuação no ensino e na pesquisa do vernáculo, com vistas a demonstrar uma atuação especializada, contudo engajada num projeto maior, qual seja a da melhoria da educação nacional.

 

Subsídios para a otimização
das aulas de produção textual

Entendendo que a língua nacional é a base da formação intelectual dos sujeitos de uma nação, vimos nos ocupando com projetos de pesquisa que têm por objeto maior a comunicação escrita formal. Por que isto? Por tudo o que já dissemos a respeito da necessidade de apetrecharem-se os indivíduos para a leitura que lhes fortalecerá a cidadania.

Um primeiro passo, a nosso ver, seria o despertar dos sujeitos para a importância da comunicação verbal, sobretudo a escrita. Levando-se em conta que o uso social da escrita é mínimo, cumpre demonstrar aos estudantes a correlação entre leitura e produção textual, para que eles então se disponham a enfrentar e desbravar os mistérios da redação.

Considerando-se o perfil mediano dos estudantes brasileiros que chegam ao terceiro grau, constata-se uma quase total inabilidade para a leitura de textos. Reduzidos à prática de leitura de volantes, boletos, formulários e congêneres, o graduando hodierno não encara a leitura de textos longos (editoriais, crônicas, contos, etc) como algo necessário, muito menos agradável. Assim sendo, o crescimento intelectual na área eleita para formação se realiza de modo doloroso. Os textos se mostram maiores do que de fato o são, uma vez que o leitor, sem condições de entrada na leitura, não consegue avançar no texto e acaba por desistir do trabalho, acomodando-se na obtenção de resumos feitos por terceiros que não serão necessariamente confiáveis. Assim, a graduação dos sujeitos se desenrola defeituosa, mutilada; e os efeitos se refletem de uma para outra disciplina, já que o domínio da leitura é condição indispensável para o progresso em qualquer área do saber.

Como solucionar isso? Vimos tentando sensibilizar o estudante para a necessidade de progresso intelectual e pelo condicionamento deste ao domínio da língua, à competência de leitura e, posteriormente, à proficiência redacional. Para tanto, temos buscado fazer um trabalho de complexidade crescente em que usamos textos que vão aumentando de tamanho e de sofisticação estrutural, no sentido de tentar induzir os estudantes a buscarem os textos como seus aliados em sua formação profissional.

Com essa estratégia, buscamos promover a leitura e dela fazer gerar a produção de novos textos em que os sujeitos exercitem o dizer e o convencer, por meio dos usos ajustados das formas da língua. Logo, nossas aulas resultam indiscutivelmente em redações que são apreciadas e que têm suas impropriedades apontadas e discutidas, para que sejam revertidas no trabalho imediato de reescritura.

 

A pesquisa atual

Para abrir esta seção, trago novo excerto que considero relevante:

A experiência nos ensina que as falhas mais graves das redações dos nossos colegiais resultam menos das incorreções gramaticais do que da falta de idéia ou da sua má concatenação. Escreve realmente mal o estudante que não tem o que dizer porque não aprendeu a pôr em ordem seu pensamento, e porque não tem o que dizer, não lhe bastam as regrinhas gramaticais, nem mesmo o melhor vocabulário de que possa dispor. Portanto, é preciso fornecer-lhe os meios de disciplinar o raciocínio, de estimular-lhe o espírito de observação dos fatos e ensiná-lo a criar ou aprovisionar idéias: ensinar, enfim, a pensar. (Garcia, op. cit., p. 291)

As palavras de Garcia me servem de estímulo à consideração da importância da iconicidade. Quando fala da falta de idéias, evoca sub-repticiamente a inexistência de imagens inspiradoras para a produção dos textos. Quando fala da insuficiência dos domínios gramatical e vocabular também estará tratando de ausência de imagens que deveriam ser “desenhadas” pelas palavras, concatenadas em enunciados, frases, períodos, parágrafos, etc. Quando fala da necessidade de desenvolvimento do espírito de observação dos fatos, chama à cena o comportamento científico, a partir do qual se busca compreender o mundo e dele o sujeito formará imagens mentais com que irá construindo sua cosmovisão. Isto posto, vejo referendada a indispensabilidade de um tratamento icônico do texto e de seus estruturantes, no sentido de ser o texto escrito uma imagem visual que poderia documentar os mecanismos utilizados na organização verbal-material do raciocínio. Nesta organização estarão incluídas a diagramação paradigmática, sintagmática e imagética a um só tempo; e estas, a seu turno, seriam emergentes das imagens mentais ativadas quando da produção do texto e ativáveis durante a leitura. Tanto mais icônico será o texto, quanto mais fácil de formular-se-lhe um sentido, independentemente das condições de verdade ou falsidade; considerando-se apenas o potencial de verossimilhança.

Para dar conta de um projeto técnico-didático de melhoria do ensino da leitura e, em especial, da produção textual, buscamos apoio na ciência semiótica em sua vertente norte-americana, cujo signatário é Charles Sanders Peirce, e vimos tentando produzir suporte teórico sobre os seguintes itens:

a) texto tomado como objeto visual sensível;

b) iconicidade da imagem textual e suas relações com a cognição;

c) seleção/combinação lingüística na produção da iconicidade textual;

d) projeto comunicativo, verossimilhança e eficácia textual.

Dialogando com a hipótese de iconicidade gramatical (Simões, 2006), com a Semântica e com a Análise do Discurso francesa (Pêcheux) no que tange à representação do sujeito na produção do sentido e suas condicionantes pragmáticas, vimos tentando esquadrinhar os textos e responder à clássica pergunta semiótica: Por que isto significa o que significa? Para tanto, vimos desde 2002 perseguindo a relação entre a iconicidade e o projeto de texto, visando a analisar-lhe a configuração verbal e verificar até que ponto o enunciador consegue dar conta de suas aparentes intenções comunicativas. Nessa pesquisa, busca-se associar a fenomenologia lingüística a princípios cognitivos gerais e explorar a produção lingüística como ação.

Discute-se a eficiência de um projeto comunicativo, quanto a sua capacidade de exprimir algo compreensível, observando-o na ótica da veridicidade e da falsidade, com vistas a atingir o plano da validade. Busca-se a validação dos enunciados (uma imagem comunicativa verossímil – cf. Lopes, 2005), dos argumentos, mediante a análise da estruturação sintagmática e de seu potencial icônico, sobretudo na perspectiva diagramática (Nöth, 1995). E o material verbal privilegiado nessa análise é a seleção vocabular, que é justamente o que justifica a proposta desta apresentação num evento que celebra Antenor Nascentes.

Observada a dificuldade dos graduandos nas atividades de produção escrita, temos dado ênfase a esse trabalho e, por conseguinte, aprofundado a discussão relativa ao domínio da língua em sua instância primeira que é a constituição do repertório do falante. Dizemos instância primeira porque ainda não focaliza os esquemas de estruturação gramatical, o que será observado em instância imediata quando se vai em busca da iconicidade das expressões.

O projeto que subjaz a essa apresentação é nossa proposta de pós-doutoramento no programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica na PUC-SP, sob a supervisão da especialista em Peirce, Profa. Dra. Lucia Santaella. Contudo, a presente explanação recorta o projeto e se atém a considerações exclusivamente vocabulares no intuito de dar realce à contribuição de Antenor Nascentes sobretudo na produção de seu Dicionário de Sinônimos.

O gênero-objeto de nossa pesquisa é a dissertação de graduandos. A modalidade do texto investigada é a denominada trabalho acadêmico que exige uma redação com características específicas, voltadas para a publicidade das descobertas técnico-científicas e que deverá consolidar-se no trabalho de conclusão de curso, popularmente conhecido como TCC.

Na análise dessas redações são considerados os papéis desempenhados pelo escritor associado ao leitor interno e as respectivas projeções do leitor externo (destinatário possível do texto – cf. Sautchuk, 2003), porque tal modalidade textual deve fazer circular (publicar) idéias e opiniões, e lá estarão em jogo a autoridade e a confiabilidade. E aqui entra a habilidade lingüística dos enunciadores. Impõe-se a riqueza vocabular para que seu texto não seja limitado quanto ao conteúdo e pobre quanto à forma. Textos com palavras repetidas ao infinito, acabam por esvaziá-las e baixar a informatividade do texto ao mínimo. Conseqüentemente, a força argumentativo-persuasiva do texto se esvairá na falta de recursos verbais para a expressão eficiente das idéias.

A Estilística e a Nova Retórica de Perelman (1996) têm nos ajudado a perceber que, na produção do texto dissertativo eficiente, o enunciador deverá ser capaz de persuadir seu leitor acerca da validade de seus argumentos. Portanto, seu texto deverá gerar imagens mentais que acionem outras tantas que se articulem com uma cosmovisão circulante na comunidade discursiva onde está inserido o leitor. Assim sendo, por meio do encontro de imagens textuais e interiorizadas/evocadas será conferida a validade aos argumentos e referendada a sua eficiência comunicativa. Isto porque essa validação decorre de um encontro harmonioso entre o que diz o autor do texto e o conjunto de dados que compõe o interpretante coletivo, conjunto referencial que permite ler um texto com compreensão.

Como o objeto de estudo de agora é o texto acadêmico, é óbvio que não se trata de texto artístico. No entanto, isso não o afasta da condição de produtor de verossimilhança, ou seja, de uma verdade textual, interna ao texto. Essa verossimilhança é a mais relevante para o estudo dos textos, uma vez que ela decorre da estruturação dos signos na tessitura textual. O diálogo ou não-diálogo com verdades extratextuais assentes é outro tema. Focaliza-se aqui a potencialidade de organização textual de modo a construir uma verossimilhança e conduzir o leitor até ela ou a outras análogas, afins.

A verossimilhança pode ser entendida como um juízo de probabilidade construída por meio da coesão e da coerência na articulação dos signos que tecem o texto.

Relembrando que a presente pesquisa situa-se no âmbito da comunicação e da semiótica, cumpre esclarecer que, nos estudos de comunicação, distinguem-se duas grandes correntes de investigação, uma que entende a comunicação, sobretudo como um “fluxo de informação”, e outra que entende a comunicação como uma "produção e troca de sentido". A primeira corrente é a escola processual da comunicação e a segunda é a escola semiótica[1]. E é no eixo semiótico que se insere esta pesquisa.

 

Por que da opção pela matriz semiótica?

Ainda que haja algumas reduções da semiótica à teoria de Greimas, é conveniente lembrar que há outras semióticas como a representada por Umberto Eco, a da corrente de Tartou, a de Barthes, a de Kristeva, a de Bahktin, a de Peirce, etc.

Segundo pesquisas que vimos realizando desde 1988, pudemos convencer-nos de que a teoria semiótica produzida por Charles Sanders Peirce oferece subsídios para a produção de matrizes teóricas derivadas destinadas à análise do código verbal. O filósofo norte-americano não se ocupou do signo verbal, no entanto, dedicou-se a construir matrizes teóricas universais, portanto, aplicáveis a qualquer sistema semiótico. Por força dos fundamentos filosóficos de sua teoria, as extensões e aplicações decorrentes acabam por desaguar em diálogos com as teorias da cognição. Como nosso objeto de estudo é o texto verbal, a lingüística cognitiva se impõe como caminho complementar de nossas elucubrações.

A semiótica de Peirce observa os processos de produção sígnica subsidiada pela teoria da percepção, uma vez que o signo emerge da ação de uma mente (humana ou não-humana) intérprete que responde à sensação provocada pelo signo por meio da produção de um novo signo que de alguma maneira traduza aquele.

Observe-se que o processo de tradução intersemiótica (Plaza, 1987) ocorre por mediações sucessivas, dentre as quais realçamos a mediação sensorial. Tudo o que existe só é por nós percebido por meio de um de nossos sentidos. No entanto, convém esclarecer que o fato de não termos percebido algumas coisas não significa que elas não existam. Em outras palavras, verifica-se que coisas existem independentemente de cognição. Contudo, pela mediação sígnica (e o signo é um produto, a princípio, cognitivo) tudo é semiotizável, convolável em signo e por isso passível de um tratamento semiótico. Em síntese, os existentes independem da mente, de uma vontade de que assim sejam, contudo só nos são conhecidos na relação com nossos órgãos (Almender, 1970).

Com base nisso, entendemos o projeto comunicativo como um processo de produção sígnica que, no caso verbal, lança mão dos itens léxicos da língua e das matrizes sintáticas como instrumentos semiotizantes. Isto porque a língua é um sistema semiótico e seus componentes, ainda que regulados pelas gramáticas[2], estão sujeitos às idiossincrasias individuais materializadas nas opções estilísticas.

Nessa pesquisa, as opções lexicais e a organização sintática são observadas como signos que se combinam formando signos maiores, cuja função seria deflagrar processos cognitivos dos quais resultaria a produção de imagens mentais que conduziriam a tradução intersemiótica indispensável à compreensão e à interpretação do texto. Essa tradução consiste na conversão dos signos usados pelo produtor original do texto em novos signos integrantes do universo semiótico do intérprete. Caso a organização textual seja deficiente, a tradução intersemiótica resultará inadequada, e o projeto comunicativo previsto para o texto não se efetivará. Abrimos aqui um parêntese para esclarecer que um projeto comunicativo pode ser construído estrategicamente para orientar ou desorientar o leitor. No segundo caso, o projeto comunicativo é falacioso. No entanto, a produção desse projeto demanda ampla competência verbal, o que não caracteriza os sujeitos produtores dos textos-corpus dessa pesquisa: pois são estudantes que manifestam domínio verbal muito aquém do esperado para o nível superior. Fechamos o parêntese.

 

Como combinar semiótica,
gramática e lingüística cognitiva?

Com esse projeto de pesquisa, pretendemos demonstrar que expressão carreia estilo e que de algum modo a avaliação de redações deve abrigar tratamento estilístico. Em se tratando de projetos de textos particulares, não é possível desconsiderarem-se as intervenções pessoais, por isso é preciso levar em conta os processos cognitivos. Assim sendo, para a análise dos textos em perspectiva semiótica, propõe-se discutir a atualização de itens léxicos (palavras e expressões) em estruturas gramaticais do uso padrão, visto que os textos em observação são redações de treinamento (trabalhos dissertativos de pequena extensão - até duas laudas A4) para a produção do TCC.

Em se considerando a imposição estilística, tem-se de pôr em jogo os dois eixos saussurianos: da seleção e da combinação. Um e outro nível estão sujeitos às intervenções pessoais e as refletem no produto. E a produção sígnica decorrente da estruturação sintagmática é que resultará ou não na produção da iconicidade do texto. Essa iconicidade é para nós o potencial semântico-discursivo emergente da estruturação textual o qual conduz o leitor durante a leitura. Logo, não será resultado de uma seleção exclusivamente icônica, mas decorrente da articulação de signos de várias categorias e combinações complexas com que se poderão ativar espaços mentais, enquadres, roteiros, por meio dos quais a tradução intersemiótica individual é processada.

Temos percebido que da ativação inábil de itens léxicos ou da formulação imprópria de sintagmas resultam textos defeituosos, cujo projeto comunicativo pode nem ser identificado. Por isso, nossa preocupação em dar tratamento semiótico aos fatos lexicais e gramaticais com vistas a apresentar alternativas didáticas de instrução léxico-gramatical que venha a tornar proficientes as aulas de português.

Recuperando dados técnicos como as relações anafóricas, catafóricas, dêiticas, pode-se iniciar um trabalho na identificação de signos indiciais na estruturação gramatical. O uso adequado dos pronomes e dos advérbios (sobretudo quando em uso pronominal) constitui potencial indicial valioso, uma vez que as relações gerenciadas por tais vocábulos podem conduzir o leitor à captação do projeto do texto. O mesmo sucede com a escolha apropriada dos substantivos, dos adjetivos, dos modos, tempos e aspectos verbais. Não necessariamente portadoras de força indexical, essas classes gramaticais podem “desenhar” itinerários na superfície do texto e, combinadas com aquelas de força indexical, gerar a tão desejada iconicidade.

A iconicidade almejada combina-se com a semântica da enunciação (Guimarães, 1985) e leva em conta figuras como: locutor, enunciador, polifonia, argumentação, ao mesmo tempo, que considera conceitos da análise de discurso como: texto, recorte, incompletude, polissemia. Nessa trilha e com olhos abertos para as questões de autoria e condições de produção, procura-se levantar os dados textuais que produzem estranhamento (no sentido de fugir à norma gramatical e à ambiência semântica) e, em seguida, aqueles são classificados em duas ordens: quanto à sua função semântico-gramatical e quanto à sua função semiótica, então, em duas classes: a) quanto à categoria sígnica: ícone, índice, símbolo; b) quanto à categoria semiótico-comunicativa: iconicidade orientadora ou iconicidade desorientadora.

Dessa forma e em função de nossa prática didática do modelo ora em explanação, temos percebido significativo progresso por parte dos redatores-estudantes, uma vez que a reescritura de seus textos é feita mediante marcações orientadoras apostas aos problemas encontrados nos textos. Vale esclarecer que trabalhamos a maior parte do tempo com arquivos digitais no programa Word for Windows e utilizamos as ferramentas de alterações controladas com código de cores, além do recurso da inserção de comentários (os quais já estão preparados em forma de macros de autotexto). O conteúdo gramatical é criticado, e as normas são cobradas como meios de produção de signos eficientes.

Ilustrando, apontam-se problemas de concordância e regência, de referenciação pronominal, de estruturação de períodos compostos de distribuição de idéias em parágrafos, etc. como responsáveis pela produção de signos indiciais desorientadores por imperícia. Isto porque entendemos que a expectativa de leitura é gerenciada pela visão de mundo dos leitores, a qual, a seu turno, é construída verbalmente. Logo, o repertório dos falantes dimensiona o seu universo sociocultural, e os valores semânticos atribuídos aos vocábulos nos textos decorrem de estruturações sintagmáticas que vão abrindo o leque de acepções possíveis para os itens léxicos das línguas. Nessa cadeia, os processos cognitivos serão tão mais eficientes quanto mais bem estruturados sejam os enunciados. Caso a produção sintagmática seja imprópria, as chances de um entendimento defeituoso do texto multiplicam-se. Então, cumpre conhecer e dominar o léxico da língua para que o desempenho textual se aperfeiçoe paulatina e sistematicamente em benefício da comunicação eficiente, já que a relação entre língua e pensamento faz parte da constituição do ser humano; e na persecução do(s) objetivo(s) textual(is), opera-se com matrizes lógicas de raciocínio e buscam-se estruturas lógico-lingüísticas que materializem teses e argumentos de modo a produzir a verossimilhança de significação e a aceitabilidade formal esperadas.

 

A importância do domínio lexical

Considerando-se que a depreensão num texto de dados extralingüísticos está intimamente ligada com a cognição que, por sua vez, será tão mais rica quanto maior a experiência de vida do intérprete, parece possível inferir que a seleção dos signos a serem atualizados no texto está proporcionalmente ligada a essa competência social, pragmática dos interlocutores (enunciador e intérprete). (Simões, 2006b)

Nessa exposição, decidimos privilegiar a questão lexical, para a qual destacamos a contribuição de Antenor Nascentes com o legado do Dicionário de Sinônimos da Língua Portuguesa.

Pelo que temos podido vivenciar em classes das mais variadas, é raro o estudante que conheça dicionários de sinônimos. Na maioria das vezes, o estudante tem o dicionário geral como sendo de sinônimos, e a idéia de sinonímia em si resulta deformada. Ainda que se insista na inexistência da sinonímia perfeita, a noção de especialização semântica na escolha dos itens léxicos a ativar num enunciado está longe de ser contemplada. Além disso, há um itinerário de práticas expressionais em voga eivadas de modismos e vícios de linguagem que contaminam o estudante, sobretudo quando tais práticas são realizadas por autoridades sociais, em especial da classe intelectual. Assim sendo, a faculdade expressional da língua resulta reduzida a uma meia dúzia de palavras (sobretudo hiperônimos tais como: coisa, negócio, etc.) que empobrecem a comunicação uma vez que perdem em objetividade, em clareza e, muito freqüentemente, em correção.

Para exemplificar, extraímos do Dicionário de Sinônimos Antenor Nascentes (Nova Fronteira, 1981) verbetes relacionados a colocar:

p. 104 – assentar, colocar, pôr – (...) colocar é pôr no devido lugar, com proporção, simetria, etc.; coloca-se um quadro numa parede onde receba luz boa; (...)

p. 136 – botar, colocar, meter, pôr – (...) colocar já foi explicado em assentar. (...)

Observe-se que o sema predominante é o de inclusão objetiva de algo. No entanto, grassa o uso de colocar no campo semântico de dizer. E este, por sua vez, está definhando, pois, a despeito de suas trinta e duas acepções (incluídas várias predicações), ninguém mais exprime, pronuncia, enuncia, profere, declara, afirma, etc... todos colocam. E isto se reflete no texto escrito e no desempenho verbal dos estudantes.

Ainda que saibamos que nossa fala cotidiana seja predominantemente figurada e que esse emprego lexical tenha fundamento metafórico, é também do conhecimento de todos que os pronunciamentos formais são planejados, geralmente por escrito; e manifestações em conferências, palestras, aulas, reuniões técnico-científicas ou de alta administração devem seguir o uso padrão da língua. A despeito disso, propaga-se uma ilusão de mudança lingüística alimentada pelo baixo repertório de uns e pela falta de cautela de outros. Os primeiros, pela sua insipiência, seguem o modelo dos últimos que supõem estar se exprimindo segundo a moda e acabam por cometerem delitos lingüísticos no que concerne ao uso culto da língua.

Não vimos aqui defender o purismo, uma vez que não fazemos uso dele nem concordamos com ele. Contudo, na qualidade de docente do vernáculo, sentimo-nos na obrigação de advertir os usuários letrados a respeito de sua condição de exemplo de desempenho verbal para os iniciantes. Da mesma forma que lutamos contra a idéia de que o texto literário seja tomado como referência normativa, uma vez que é texto artístico, também digladiamos contra o vale-tudo na língua em seu uso culto, caso contrário este perde o sentido. A hipótese de que o distanciamento entre fala e escrita esteja diminuindo é histórica: a língua é dinâmica, é mutante, mas os seus falantes não dão testemunhos das mudanças. Essas são percebidas por gerações futuras. E quanto ao binômio fala e escrita, aparentemente estas se aproximam num dado ponto da história, mas em seguida tornam a distanciar-se em função de inovações que influenciam todos as variedades, umas mais, outras menos fortemente. O léxico é o primeiro plano da língua a sofrer mudanças, contudo, um povo dotado de instrução lingüística satisfatória estará preparado para operar em meio às novas formas e sancioná-las ou vetá-las segundo a necessidade ou oportunidade de expressão de idéia também nova.

Convém ressaltar que a riqueza de repertório não é exclusividade do uso culto, porém, os falantes inseridos nesse contexto têm maior obrigação e compromisso com uma seleção vocabular que demonstre uso escorreito da língua. E não podemos nos queixar de falta de instrumentos, pois Antenor Nascentes deixou em seu pequeno dicionário uma porta aberta para o aperfeiçoamento lexical.

Antenor de Veras Nascentes (Rio de Janeiro, 19 de junho de 1886 — 6 de setembro de 1972) foi um filólogo, etimólogo, dialectólogo e lexicógrafo brasileiro de grande importância para o estudo da língua portuguesa no Brasil. Sua obra[3], encerrada com o Dicionário de Sinônimos (1969) é um exemplo de dedicação à causa vernácula e de empenho na elaboração de instrumentos que auxiliassem a descrição e a compreensão de nossa língua. Autor de Bases para a elaboração do atlas lingüístico do Brasil, apresentou os principais aspectos a serem considerados nesse projeto, uma extensa proposta de localidades para a rede de pontos, e também a primeira proposta de divisão dos falares brasileiros. Observe-se que essa iniciativa vem ao encontro de nossa preocupação com não transmitir falsa idéia de purismo lingüístico. Assim como o mestre Nascentes, buscamos difundir a nossa variedade lingüística sem contudo abrir mão da disciplina lingüística quanto aos usos, e nestes da seleção e combinação que os caracteriza e distingue.

Portanto, entendemos Antenor Nascentes como uma referência indispensável para o atingimento dos objetivos de nossa pesquisa, que consiste na discussão de textos verbais escritos em português formal, produzidos por estudantes da graduação. Tal pesquisa tem por meta oferecer subsídios científicos e didáticos para o ensino da leitura e da redação em língua culta, considerando que a seleção vocabular é condição para a produção da iconicidade textual, uma vez que é o vocabulário da língua que constrói a ponte entre o sistema lingüístico e as idéias. Portanto, se se pretende instruir o estudante quanto à construção de seu papel de autor, quanto à projeção de suas metas comunicativas, quanto à eleição de seus modelos expressionais, cumpre dar-lhe meios de enriquecer seu repertório com conhecimento de causa, ou seja, apetrechado para pesquisar, adquirir e eleger formas da língua que sirvam à consecução de seus objetivos comunicativos, elaborando textos legíveis já que capazes de orientar o leitor na produção de sentido para o texto lido. Para tanto, a estruturação textual deve perseguir a iconicidade, usando adequadamente o léxico e a gramática da língua, levando em conta que a organização textual deve refletir uma relação com a organização de uma visão de mundo. E se há projeto de uma nação soberana, este depende de cidadãos participantes. Para tanto, é papel da escola oferecer educação lingüística eficiente de modo a propiciar o desenvolvimento intelectual dos sujeitos nacionais e garantir-lhes melhores condições de vida.

A inserção social começa com a educação lingüística de qualidade.

 

 

 

Referências bibliográficas

ALMENDER, Robert F. “Peirce´s theory of perception. In: Transactions of the Charles Sanders Peirce Society, vol. VI, nº. 2, 1970 [p. 99-110].

GARCIA. O. M. Comunicação em prosa moderna. 16ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995.

GUIMARÃES, Eduardo. Não só... mas também: polifonia e argumentação. Cadernos de estudos lingüísticos. Campinas, n° 8, p. 79-108, 1985.

LOPES, Luiz Carlos. “Verossimilhança e poder”. In La Insignia, Brasil, jun2005. Disponível em www.lainsignia.org/2005/junio/soc_020.htm

NASCENTES, Antenor. Dicionário de sinônimos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

NÖTH, Winfried. Panorama da semiótica: de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume, 1995.

PÊCHEUX, Michel. Discurso: estrutura ou acontecimento. São Paulo: Pontes, 1983.

PERELMAN, Chaïm. Tratado de argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva/Brasília: CNPq, 1987.

SAUTCHUK, Inez. A produção dialógica do texto escrito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SIMÕES, Darcilia. Primeiros escritos do projeto de “Texto e iconicidade: uma reflexão sobre a eficácia comunicativa”. Pesquisa de pós-doutoramento em realização na PUC-SP sob supervisão de Lucia Santaella. (PUC-SP), 2006.

––––––. “Coerência, coesão e cognição em perspectiva semiótica”. Comunicação na III Conferência "Lingüística e Cognição". Campinas: UNICAMP, 2006b.

 


 

[1] Conforme distinção e caracterização das duas correntes desenvolvidas por John Fiske em Introduction to Communication Studies, London: Methuen, 1982.

[2] Usamos o termo no plural, porque entendemos que cada variedade lingüística constrói suas próprias regras organizacionais.

[3] Obra de Antenor Nascentes:

1.        Ensaio de phonetica differencial luso-castelhana; dos elementos gregos que se encontram no espanhol - Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1919.

2.        Noções de estilística e de literatura - Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929.

3.        Dicionário etimológico da língua portuguesa - Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1932.

4.        Gramática da língua espanhola para uso dos brasileiros - São Paulo: Nacional, 1943.

5.        Idioma Nacional - Rio de Janeiro: Valverde, 1944.

6.        O problema da regência (regência integral e viva) - Rio de Janeiro: Livraria editora Freitas Bastos, 1944.

7.        Tesouro da fraseologia brasileira - Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1945.

8.        Léxico de nomenclatura gramatical brasileira - Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1946.

9.        Dicionário etimológico da língua portuguesa: nomes próprios - Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1952.

10.     A gíria brasileira - Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1953.

11.     O linguajar carioca - Rio de Janeiro: Organização Simões, 1953.

12.     Elementos de filologia românica - Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954.

13.     Bases para a elaboração do atlas lingüístico do Brasil - Rio de Janeiro: MEC, 1961.

14.     Dicionário de língua portuguesa da Academia Brasileira de Letras - Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1967.

15.     Dicionário de sinônimos - Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1969.