À LUZ DA SEMÂNTICA: A FLEXIBILIZAÇÃO LEXICAL.

Célia Maria Paula de Barros (U.C.B.)
Fernanda de Oliveira Marconi da Costa (C.V.F.)
Maria Antonia da Costa Lobo (ABRAFIL)
Maria Helena Carvalho da Silva (U.C.B.)

 

O sentido de uma palavra não é outro senão a guirlanda cintilante de conceitos e imagens que brilham por um instante ao seu redor. (Pierre Levy)

 

INTRODUÇÃO

O que é que, em alguma(s) página(s), se designa como notícia, significa notícia?

Uma forma significante que é percebida imediatamente, que faz parte da informação e que constitui esta por ela mesma?

A notícia, contudo, sempre foi objeto de estudos notáveis, os quais consideram elementos espaciais e visuais que a integram, inseridos em contexto sócio-lingüístico-cultural, independentemente da veiculação por suportes, tais como periódicos.

 

O DESLOCAMENTO POLIVALENTE LEXICAL

Na década de 60, basicamente a teoria do texto, promovida pelas idéias de Kristeva e Barthes, tentava colocar sobre um suporte um conceito de texto considerado como tecido de significantes aberto a quaisquer combinações internas e conexões com entidades linguageiras externas.

Paralelamente, é preciso, na realidade, fazer recortes em grande escala para reconstituir o que é uma verdadeira linguagem, da qual se sabe pouco, na partida, e que, não tendo, a princípio, cronologia, funciona tabularmente, como se a totalidade das respectivas unidades aparecesse simultaneamente.

Duas particularidades referentes, respectivamente, ao significante e ao significado distinguem os deslocamentos de texto daquele dos fenômenos naturais à língua evocados sucintamente na inclusão textual.

 

A FIXAÇÃO DE ÉPOCA(S)

A língua é dinâmica – ressaltara Saussure – o que é facilmente perceptível, quando se comparam usos lexicais, a partir da criação, passando, às vezes, pela inovação, chegando-se a deslocamentos.

Para uma análise mais aprofundada, com base nas realizações lingüísticas concretas, definidas por propriedades de caráter sócio-comunicativas, faz-se necessário considerar-se a natureza das informações, o nível de formalidade da linguagem, a situação de comunicação, e até o objetivo desta. Este, em geral, implícito (da parte do emissor/enunciador) para ser inferido ou pressuposto, após contextualização pelo receptor/destinatário, dentro de um contrato de fala, baseado no compartilhamento de um código.

No fragmento do texto extraído da reportagem A mulher, dos anos dourados à mídia de hoje[1], observa-se o destaque dado a SUPERPODEROSAS, a saber:

Olhando pra trás, baby, vemos que percorremos um longo caminho rumo a exatamente o quê? Quais são os atuais padrões que a mídia oferece à mulher? O padrão SUPERPODEROSAS. Elas são as Superpoderosas. Têm a força, o dinheiro, a fama. Invertem os papéis e chamam para si o lado mais discutível do bicho-homem: aquele que tudo controla via sucesso financeiro. Elas compram, pagam, elas estão podendo. Dão as cartas, seduzem e rejeitam. Elas são fêmeas macho pacas.

Elas choram pelos cantos. São descartados e descartáveis, como o kleenex, que enxuga suas lágrimas de enjeitados, clicados em algum canto da Caras, como frágeis amantes de folhetim do século XIX...

Assim procedendo, o enunciador/emissor, a princípio, serve-se de um adjetivo calcado em uma matriz morfológica: poder + oso > osa > osas, para, mórfica e semanticamente, ir além, após acrescentar o SUPER.

Consoante Houaiss (p. 2244), poderoso (séc. XIII) significa: 1. Que tem poder, que tem força ou grande influência. 4. Que produz efeito impressionante, intenso, enérgico, marcante.

Contextualmente, superpoderosas associam-se a poder de compra, e consumismo: assim, terão força, poder e dinheiro.

Outros recursos aparecem ainda: o metonímico não falta – a marca (século XX) pelo produto: o kleneex, lenço de papel, higiênico e facilmente transportável na bolsa, em especial a feminina.

E mais: o periódico no periódico, representado pela designação Caras.

Outro termo que merece destaque é PACA. Este aparece dicionarizado[2] (1950) e utilizado textualmente como muito consideravelmente, extremamente. Ressalte-se a etimologia: alt. eufêmica de pa(ra) ca(ralho) ou ca(cete).

Corroborando Francisco da Silva Borba[3], não há discurso neutro: falar é interagir socialmente. Quem fala ou escreve quer persuadir.

É o que se identifica em uma notícia na qual é afirmado:

ERA PIOR DO QUE SE PENSAVA

O chefe da máfia dos sanguessugas revela que seu esquema corrompeu sessenta prefeitos e 20 % do Congresso e adentrou o gabinete de Humberto Costa.[4]

Além de informar para persuadir, nesse texto de Marcelo Carneiro, merecem destaque dois termos, a saber: máfia e sanguessugas.

Conforme registra Houaiss, máfia (s.f.) é “qualquer associação ou organização que, à maneira da Máfia siciliana, usa métodos inescrupulosos para fazer prevalecer seus interesses ou para controlar uma atividade”.

E ainda: “conjunto de associações sicilianas, regidas por princípios de segredo e silêncio solidário, que estabelece(m) leis próprias e buscam sobrepor-se ao poder constituído”.

No Aurélio:

1. Sociedade secreta, fundada na Itália no século XIX para garantir a segurança pública, e posteriormente acusada de participação em numerosos crimes.

2. Por ext. grupo criminoso bem organizado.

Sanguessuga (1572) (Houaiss, p. 2510) indica (2)

designação comum aos anelídeos da classe dos hirundíneos, marinhos, terrestres ou de água doce. Foram usados no passado como forma de tratamento médico, para promover sangrias; (3) indivíduo que explora outro(s) freqüentemente pedindo dinheiro ou favores; explorador, parasita.

Ora, por um recurso metafórico, a partir de uma breve comparação relacionada à situação contextual (política), referente a uma atuação de políticos ligados ao Governo do atual Presidente (Lula) da República, o termo sanguessugas foi utilizado associado à máfia. Este termo perde semanticamente a característica de segredo e silêncio.

A expressão (máfia dos sanguessugas) foi assimilada e permanece em uso referencial no contexto sócio-político-jornalístico. Curiosamente, até mudou de gênero – passou do feminino ao masculino.

Assim aparece no jornal O Globo (de 28 de julho de 2006):

Máfia das emendas criou até crédito de propinas

Chefe da quadrilha: deputados sanguessugas receberam R$ 830 mil adiantados.

O empresário Luiz Antônio Vedoin disse em depoimento à Justiça que a máfia dos sanguessugas adiantava dinheiro para deputados e senadores envolvidos na fraude. Os parlamentares recebiam a propina antes mesmo de apresentar emendas para destinar dinheiro público à compra de ambulâncias e equipamentos superfaturados. Segundo Vedoin, até hoje a máfia tem créditos a receber com pelo menos oito parlamentares, no valor de R$ 830 mil.

E ainda: HISTÓRIAS DE SANGUESSUGAS

Júnior Betão (PL-Ac): tentou cobrar R$ 230 mil de propina para fazer uma emenda destinando mais de R$ 1 milhão à compra de remédios para seu próprio centro social no Acre, que não presta atendimento.

Ildeu Araújo (PP-SP): exigiu o pagamento adiantado de uma propina de R$ 50 mil. Acabou recebendo R$ 19,2 mil e, irritado, rompeu o acordo com a máfia.

Bispo Rodrigues (sem partido): vendeu uma casa para emprestar R$ 300 mil aos chefes da quadrilha, mas cobrou caro pelo empréstimo: R$ 9 mil mensais só de juros, além de prestações de R$ 50 mil.

(Depoimento de Luiz Antônio Vedoin à Justiça)

E ainda aparece no texto a propina, do latim propina, –ae (dádiva), chegou à língua portuguesa, a princípio como gratificação.

Mas ressalte-se o caráter conotativo da linguagem, no qual a pluralidade de sentido e das coisas faz parte da própria existência humana e à propina associou-se corrupção – isto no Brasil. E pensar que em Portugal, propina indica pagamento de mensalidades (escolares, acadêmicas)! A significação lexical depende, realmente, do contexto sócio-lingüístico.

E vai-se dos sanguessugas aos laranjas.

Laranjas na Varig?

(Bastidores por Thomas Tarumann)[5].

Um receptor/leitor, menos avisado, poderá, a princípio, pensar em alimento. Mas bastará consultar um dicionário e o real significado aparecerá rapidamente.

Segundo Houaiss (p. 1723), laranja (s.f.),

5. Fig. Indivíduo, nem sempre ingênuo, cujo nome é utilizado por outro na prática de diversas formas de fraudes financeiras e comerciais com a finalidade de escapar do fisco ou aplicar dinheiro de forma ilícita; testa de ferro.

A partir da aplicação do registrado acima, ao texto de Thomas Trauman, não se tem qualquer dúvida:

Para provar que têm o controle da Varig, os sócios brasileiros terão de comprovar que não são “laranjas” dos estrangeiros, fato que passará pelo crivo da Receita.

E à Receita, acrescente-se o termo Federal: Setor arrecador e fiscalizador.

A política cria realmente vocabulário, como é o caso de PALOCCIGATE e registros não faltam:

Inquérito de 1009 páginas sobre o Paloccigate a que Veja[6] teve acesso mostra que até a Receita foi acionada (Julia Duailibi).

Federal, termo implícito no texto, em verdade integra aquele Setor Governamental que, segundo Duailibi, detém um dos mais valiosos (e secretos) bancos de dados do país.

Consoante a reportagem publicada:

Já se sabia que a perseguição ao caseiro envolvera Jorge Mattoso, presidente da Caixa Econômica Federal na época. Mattoso ordenou uma devassa na conta do caseiro, mandou imprimir um extrato bancário e entregou-o nas mãos do ministro Palocci – e os dados, mostrando uma movimentação de 40 199,44 reais, acabaram aparecendo nas páginas da revista Época. Ficou evidente, desde o primeiro momento, que o governo, numa operação clandestina e ilegal, levantou e vazou dados bancários do caseiro com a intenção de desmoralizá-lo e, assim, reduzir o impacto devastador de suas declarações contra o Ministro Palocci. Agora nas 1009 páginas do inquérito sobre o caso, às quais VEJA teve acesso, está minuciosamente detalhada a movimentação de seis funcionários da Receita Federal para perseguir o caseiro, a começar pelo chefe do órgão, Jorge Rachid.

O neologismo, oriundo de uma justaposição, surgiu por aproveitamento de uma outra que data do século XX: o escândalo WATERGATE na História dos Estados Unidos.

Em 17 de junho de 1972, durante a campanha presidencial estadunidense, ocorreu um arrombamento no Comitê Nacional do Partido Democrata, no Edifício chamado WATERGATE, localizado em Washington. Os cinco participantes foram presos por policiais, no instante em que eram fotografados papéis, e aparelhos de escuta inspecionados. Apesar de terem sido identificados como colaboradores de Richard Nixon, o fato não impediu que este vencesse as eleições à Presidência da República pelo Partido Republicano.

Apesar dessa vitória, suspeitas de que Nixon tivesse alguma responsabilidade pessoal no caso culminaram, em 08 de agosto de 1974, por levá-lo à demissão. Foi, então, substituído por Gerard Ford que concedeu anistia a Nixon, o que evitou, assim, que fosse processado.

Dessa forma, –gate passou a designar escândalo ligado à corrupção.

O contexto político gerou também Alckimistas, por associação a alquimistas. Foneticamente, não oferecem diferença, mas graficamente sim; em especial semanticamente, a saber: enquanto alquimista (o termo data de 1532) indica aquele que se devota à alquimia (= imisção), Alckimista relaciona-se ao sobrenome do candidato (Geraldo), pelo PSDB, à Presidência da República.

Logo, é partindo do estudo do vocabulário, que advém a explicação de ocorrências lexicais. Assim, a neologia reflete a evolução e o estado de desenvolvimento técnico, científico e cultural de uma sociedade.

Escândalos não faltam – os periódicos estão por aí para contribuírem com a fixação dos mesmos pela utilização do mais variado vocabulário:

VÃO TER DE CONTAR SÓ COM O TALENTO

O jabá está virando crime.

(...) Nos Estados Unidos a Justiça abriu campanha contra o Jabá – lá eles chamam de payola. As gigantes que dominam o mercado fonográfico vêm desde o ano passado tendo de desembolsar somas altas para encerrar ações judiciais por ter comprado espaço na grade de programação das rádios. (...)

Existe no Brasil um movimento contra o jabá, encabeçado por artistas que têm dificuldades de conviver com as gravadoras, como Lobão e Marcelo D2. Há até uma proposta de lei no Congresso sugerindo transformar a prática do crime. Mas ainda não há sinal de punição no horizonte. Por aqui, jabá ainda compensa.

Redução de jabuculê, jabá indica suborno.

O contexto político é bem produtivo – mensalão e mensalinho não faltam, ambos recebidos por engajados[7] nesse contexto.

O primeiro corresponde àquela importância recebida pelo chamado “alto clero” – políticos conhecidos, envolvendo tesoureiro(s).

O segundo percebido pelo “baixo clero”– políticos com menor influência, principalmente do norte/nordeste brasileiro.

O Caixa dois (dinheiro não contabilizado oficialmente) integra também o contexto supracitado, juntamente com tudo termina em pizza (expressão surgida à época do pseudo impedimento político de um Presidente (F.C.M.) da República, após uma denúncia relativa a um escândalo. Ora, pizza: uma coisa dividida por várias pessoas.

Com o advento das C.P.I., pelos congressistas, a expressão tudo termina em pizza se generalizou e permanece na época atual.

Palavra atrai palavra, contexto apela para contexto. E o um – sete – um foi emprestado do contexto jurídico para situações do cotidiano, em especial aquelas que envolvem golpistas.

E o um – sete – um é o estelionatário e, por extensão de sentido, vigarista, trapaceiro.

Um – sete – um é a enunciação dos algarismos 171 do Código Penal, que trata de crime de estelionato.

Estelionato veio do Latim (stellionatum), que veio de stellio, uma espécie de camaleão com estrelas manchadas na pele. Daí o seu nome derivado de Stella (estrela). Por sua capacidade de mudar a cor da pele para se confundir com o ambiente, Stellio ganhou o sentido figurado de trapaceiro.

Também não faltam as favas contadas. Expressão usada para designar algo fatal, inevitável.

A fava é uma prima do feijão, cultivada desde os tempos pré-históricos.

Antigamente, as favas eram usadas nas votações: favas brancas para o sim; favas pretas para o não. Concluída a apuração com a contagem das favas, estava eleito quem recebesse maior número de favas brancas. Reclamações de nada adiantavam, porque já eram favas contadas.

Objetos ou situações novos favorecem a criação e/ou a inovação lexical ou a adaptação de termos já existentes, conforme constante no seguinte elenco:

1) frescão – ao surgir o ônibus com ar condicionado, o povo, por associação, assim apelidou o meio de transporte;

2) ruralista – usado não apenas para aqueles que defendem o interesse dos proprietários de terra, mas aquele que negocia com o Banco Rural;

3) 0800 – a princípio, linha telefônica para ligações telefônicas, passou a indicar gratuidade:

– Você vai ao pagode?

– É 0800?

A língua é viva e vai se modificando, em função das modificações sofridas pelo homem, porque a linguagem é o próprio homem.

Esta funciona por analogias, serve para criar, interpretar e decifrar significações;

4) Pitt-bull – por um processo metafórico, passou-se da raça canina – o comparante maior – à indicação de pessoas (comparadas) de temperamento agressivo ou violento;

5) picolé de chuchu – indicando frio e sem paladar (gosto), transformou-se em epíteto do ex-Governador de um estado brasileiro, candidato (atual) à Presidência da República;

6) chuchu cozido – representa, entre dançarinos, dança de irmão com irmã;

7) bola nas costas – um praticante de ludopédio, defensor, quando se aventura ao ataque, deixa o time que integra exposto a um contra-ataque do adversário. Ele corre o risco de receber uma “bola nas costas”. Atualmente, quando o marido é traído pela mulher, recebe uma “bola nas costas”;

8) gilete – designador de lâmina de barbear, por um processo metonímico da marca pelo produto, passou a representante de um tabu lingüístico, enquanto indicador de indivíduo bissexual, a ambigüidade assim o permite;

9) casal – o sentido original desse termo não é par composto por homem / mulher, mas casa pequena, rústica. Vem do latim (casale), significa cabana, choça, choupana e, por extensão, passou-se a chamar casal quem morava dentro dela.

Tomás Antônio Gonzaga, em Marília de Dirceu, empregou esse termo com o significado de casa pequena:

Eu Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado;
de tosco trato, d’expressões grosseiro,
dos frios gelos, e dos sois queimado
tenho próprio casal e nele assisto.

A língua é uma verdadeira tsunami. Aquela vaga marinha, volumosa, provocada por movimento da terra submarina ou erupção vulcânica. Vem de tsu (ancoradouro) e nami (onda, mar). A palavra que passou a designar tragédia, devastação. E, tal qual essa onda, ninguém consegue segurar mesmo a Língua.

Contrariamente a namoro (compromisso sério), ficar(10) passou a designar relacionamento sem maior compromisso.

E inclua-se na lista o rolo (11) – quando alguém está ficando com uma pessoa há algum tempo.

Saca (12)? Indica, atualmente, na linguagem da gíria, Entende?

A questão está na interpretação também. Entra-se em uma discussão semântica sem fim.

Até siglas surgem no contexto social, tais como B.V. (13) (boca virgem) e L.V. (14) (língua virgem).

O léxico de uma língua é, em verdade, formado do saber partilhado existente na consciência do falante dessa língua, constituindo-se no acervo do saber de um grupo sócio-lingüístico-cultural.

Representa a janela através da qual o indivíduo observa o mundo, ao mesmo tempo que revela os valores, as crenças, os costumes, os modismos que viabilizam a sociedade em que o usuário vive. É no léxico que se gravam as designações que rotulam as mudanças encadeadoras dos (des)caminhos da humanidade, além de comporem um cenário de revelação tanto da realidade, quanto dos fatos culturais que atravessa(ra)m a História da referida sociedade.

É importante ressaltar que as palavras têm história: nascem, evoluem, transformam-se e, às vezes, desaparecem. A história de cada palavra está ligada à do Homem, da própria fala humana, da respectiva evolução, do próprio crescimento e transformação. Assim, ao pesquisar uma palavra, devem ser observados vários aspectos, não só lingüísticos, como sociais e antropológicos.

Como forma de comunicação, as palavras e expressões por elas integradas passam de boca em boca, carregam experiências de mundo acumuladas na respectiva trajetória das mesmas, na própria evolução, às vezes até nas entrelinhas dos significados.

Assim procedendo, visa-se a descortinar a janela do léxico, incluindo-se expressões, cristalizadas e até fossilizadas na consciência daqueles que as utilizam, de maneira, em especial, curiosa e pitoresca, como, por exemplo, as elencadas a seguir:

1) para exprimir uma grande briga, uma feroz discussão, nada mais expressivo, popularmente do que o arranca-rabo.

Por um processo associativo, tem ela origem em uma prática bastante comum entre guerreiros da Antigüidade. Era hábito, à época, os cavalos do inimigos terem o rabo cortado, como uma espécie de troféu de batalha.

O primeiro registro escrito a respeito desse costume vem do Egito. Um oficial do exército do faraó Tutmés III contou a façanha. Ele decepara a cauda do cavalo do rei adversário, proeza de enorme significado simbólico, naqueles tempos de disputas bélicas.

A prática ultrapassou séculos e chegou ao Brasil Colônia. Em uma adaptação bem selvagem, o rabo do gado das fazendas dos inimigos era arrancado para humilhar proprietários.

Atualmente, o arranca-rabo que se conhece refere-se a conflitos em diferentes lugares – bares, reuniões políticas e até no Congresso Nacional;

2) além do arranca-rabo, também se paga o pato, isto é, se faz papel de tolo, se é ludibriado.

A expressão foi registrada em um conto do escritor italiano Francesco Bracciolini, a saber: uma senhora casada, mas leviana, queria muito comprar um pato e estava decidida a pagar um bom preço por ele. O vendedor, conhecendo os atrativos da moça e pensando na oportunidade de um negócio, quis unir o útil ao agradável, disse que venderia o animal, mas em troca de favores sexuais. Ela cedeu, mas o comerciante pediu mais dinheiro. Repentinamente, o marido dela chega em casa e fica sabendo que o esperto vendedor alega que o pato não estava pago. O marido paga o pato e, inocente, diz que até ajuda a preparar, mais cedo, o jantar daquele dia;

3) depois de se pagar o pato, aprende-se que dinheiro não tem cheiro. Antiga expressão, tem quase dois mil anos de existência, e é atribuída ao imperador romano Vespasiano.

Ao assumir o trono dos Césares, encontrou as contas do Império arruinadas. A prioridade então foi aumentar a arrecadação, o que fez, criando impostos, como o tributo pelo uso dos mictórios da cidade; estes se tornaram uma excelente fonte de receita e, assim, Vespasiano saneou as finanças. Tito, o filho do Imperador, escandalizou-se com a cobrança e Vespasiano, mostrando moedas provenientes dos tributos arrecadados nesses recintos fétidos, perguntou se o cheiro delas o incomodava. Tito respondeu que não sentia cheiro algum. E Vespasiano retrucou:

Pois é, meu filho, dinheiro não tem cheiro.

O fato é que a expressão atravessou os séculos;

4) dinheiro lembra Negócio da China, expressão cada vez mais em moda pelo esfuziante desenvolvimento da China. Todavia, tem noção nada edificante. Durante séculos, esse país foi dominado e saqueado por vários países que exploravam e humilhavam o povo. Nos gramados do Parque Xangai, havia placas com o seguinte dizer: Proibida a entrada de cães e de chineses. Estrangeiros obtiveram lucros, amealharam fortunas – raramente em transações honestas.

A exploração terminou com a ascensão de Mao Tsé Tung ao poder. Na Praça da Paz Celestial, ele declarou:

– Acabaram-se os negócios da China!

Atualmente, é sabido que há negócios lucrativos com a China, mas que beneficiam o povo e servem para ampliar a presença chinesa no comércio internacional;

5) mas depois de Negócio da China, o brasileiro vai Bater na madeira, para neutralizar o mau agouro, o espírito derrotista.

Reza a tradição que a madeira do carvalho era respeitada pela própria força. O Carvalho era cultuado por ser uma árvore imponente e longeva. Teria, na crendice popular, poderes sobrenaturais, pois resiste à força dos raios. Ainda, conforme a crendice, acreditava-se que fosse a morada do Deus dos Relâmpagos. Bater na base do Carvalho afastaria perigos e riscos diversos;

6) mas a desconfiança também presente, leva a debaixo desse angu tem caroço. Ela remete ao tempo da escravidão no Brasil.

Nessa época, o angu era o alimento que os escravos recebiam como refeição diária – era o que mantinha vivas aquelas criaturas tratadas como bichos.

Entretanto, havia ocasiões em que as cozinheiras escravas faziam, em segredo, um agrado aos companheiros de infortúnio: escondiam sob o angu alguns pedaços de carne, cuidadosamente, porque se fossem apanhadas o destino delas seria o tronco ou o chicote.

Do denotativo, passou-se ao conotativo e a expressão passou a ser empregada quando se desconfia de algo escondido, não revelado, escamoteado, comportamento suspeito.

O social realmente atua sobre o lingüístico e nem a área médica escapa.

A expressão (7) Diga trinta e três, usada em exame médico de rotina, para detectar algum problema pulmonar, surgiu na França como Trente trois. A pronúncia arranhada provoca reverberação no pulmão e com ela o médico percebe se o pulmão está sadio. À época, a escola francesa dominava a Medicina.

Atualmente, o médico pede ao paciente que inspire profundamente, para avaliar a condição do pulmão;

Curiosa também é (8) Dar uma colher de chá.

Através dos séculos, o chá correu o mundo, como símbolo de pontualidade: o chá das 5 horas da tarde; também lembra arrogância imperial, domínio dos mares e terras, onde o sol nunca se punha.

O chá também serve de medicamento. A Fitoterapia que o diga – doença pode ser tratada com um bom chá. Pode não eliminar a doença, mas em um sentido figurado dá um empurrãozinho para a cura do mal.

Ao revelar a realidade de uma época, expressões são criadas por deslocamento, metaforizando fatos sócio-políticos atuais, como é o caso de pérola palocciana, que indica situação político-econômica, quanto à renovação do acordo com o FMI. O então Ministro Palocci comparou à medida com o cheque especial, afirmando. É bom tê-lo, mesmo sem usá-lo. Manter a tutela do fundo seria providência precaucionária.

O que é isso? Perguntaram os brasileiros de norte a sul do país.

Sem resposta, foram ao dicionário. Não havia essa palavra. Pelas poucas explicações, entendeu-se que o acerto tem caráter preventivo. O povo diria “Trancar as portas antes do arrombamento”. Na realidade, ao criar essa palavra, teria querido expressar : Providência preventiva.

No contexto Policial também são geradas expressões lexicais.

Policiais Federais nomeiam expressivamente operações realizadas com a finalidade de desbaratarem quadrilhas.

Na Operação Vampiro prenderam os mafiosos do Ministério da Saúde que fraudavam a compra de sangue.

Na Operação Gafanhoto prenderam políticos de Roraima que roíam a folha de pagamento do Estado.

Dentre as inúmeras operações, destacou-se a Operação Perseu. Depois de oito meses de investigações, Policiais Federais prenderam os cabeças dos que desviavam dinheiro do I.N.S.S.

O antropônimo Perseu vem da Mitologia Grega.

Acrísio, avô de Perseu, era um rei muito poderoso. Um dia, procurou um bruxo. O feiticeiro consultou uma bola de cristal e disse-lhe:

– Perseu, seu neto, matará você.

O rei, então, resolveu se livrar do garoto. Pôs mãe e filho em um cofre e o jogou no mar. Foram parar em uma ilha. Lá o rei apaixonou-se por Dânae, mãe de Perseu. O rei quis se casar com Dânae. Perseu não aceitara o casamento, pois o rei era conhecido como perverso. Corajosamente, Perseu enfrentou o rei dizendo:

– O que devo fazer para Vossa Majestade desistir da idéia?

– Você precisa me trazer a cabeça da Medusa.

Aceitou o desafio. Com a ajuda dos deuses, decapitou a criatura. Medusa estava grávida. Do pescoço dela, nasceu o filho – é Pégaso, o cavalo alado.

Perseu e a mãe voltaram para a Terra Natal. Lá o herói participou de uma competição esportiva. Sem querer, lançou um disco que matou o avô. O bruxo, do começo da história, estava certo.

 

CONCLUSÃO

As palavras são criações humanas. É através delas que o Homem pensa, analisa o mundo, se integra e se relaciona em sociedade.

Qualquer palavra no processo de vida, no uso cotidiano, se enriquece de novos significados, de novos sentidos, a partir dos quais o mundo pode ser interpretado, compreendido e entendido de muitas e diferentes maneiras.

À medida que o Homem avança nos respectivos conhecimentos, a linguagem o segue, auxiliando-o na modificação de velhos conceitos, criando novos para velhas palavras, fazendo desaparecer palavras que não mais se prestem à representação criativa e para expressar a emoção humana – outras que possam representar mais adequadamente o momento histórico do Homem são criadas.

Antigamente... conforme lembrado por Cesar Roberto Marconi da Costa, em conversa informal:

BALA PERDIDA era uma guloseima que não se podia encontrar;

VERTICALIZAÇÃO era uma opção para a persiana da sala de estar;

FOGO AMIGO era o empréstimo do isqueiro para acender cigarro;

CAIXA DOIS era um guichê num agente financeiro;

ECONOMIA DE MERCADO era valorizar o seu dinheiro; e

SUPERAVIT PRIMÁRIO era a sobra de salário que se espera.

E todos iam ao enterro da sua última quimera.

As mudanças ocorrem, não relativamente às coisas, mas ao nome indicado para designá-las. Logo:

Lâmina de barbear virou gilete; palha de aço, bombril; fecho, zíper; tailleur, costume; collant virou body; rouge virou blush; pó de arroz virou pó compacto; rímel virou máscara; lycra virou strech; anabela, plataforma; corpete virou porta-seios que virou soutien (sutiã) que virou lib e acabou no silicone.

Para isso, o Homem se serve da linguagem que representa o conjunto de significações, de símbolos e de valores que determina o modo como se interpreta o mundo.

A linguagem, por sua vez, se serve da Língua, do código ou seja do conjunto de sinais que possibilitam a comunicação.

Para se comunicar, se o indivíduo tivesse de inventar a Língua, cada vez que falasse, o processo de comunicação seria quase impossível; ou seria hilário, enfadonho, se, para se comunicar, tivesse de se limitar a repetir frases feitas ou clichés.

A arma daquele que se comunica é descobrir equiparações nas palavras ou expressões, utilizando-se basicamente da conotação (metáfora, metonímia e até comparação). É por isso que o campo semântico se torna o grande manancial da língua para pluralizar-se, sem se multiplicar. A razão está na faculdade do pensante de chegar ao desconhecido, partindo do conhecido, conforme em “coqueluche na Internet[8] e em micro-mini-saia[9].

Coqueluche (1441), oriunda do francês, designava a princípio o capuz (capuchon) com que os doentes cobriam a cabeça durante a epidemia da doença que grassou nos séculos XIV e XV. Passou a designar popularmente um tipo de doença em que o paciente, dela portador, tosse bastante e a posteriori apresenta febre.

Micro-mini-saia reflete bem a relação de palavras e coisas. A princípio era a saia comprida, longa, a maxi-saia. O comprimento foi sendo encurtado, surgiu a longuette (pelo meio da canela), a mini-saia, cujo comprimento (acima do joelho) encurtou bastante (século XX), até chegar à micro (além de mini, representa-se (no século XXI) a saia de comprimento pouco abaixo das nádegas).

Corroborando XU[10] (2001):

O neologismo, sendo a forma engajada de necessidades novas, constitui o sinal de mudança lingüística e das mutações sociais de uma época determinada. Ele se acentuou, a partir dos anos oitenta, na França como na China, e seu desenvolvimento levou a um estudo mais aprofundado de duas disciplinas mais ou menos relacionadas até recentemente, a sociolexicologia e a lexicografia, porque é no plano do léxico que se manifestou melhor a tomada de consciência pelos locutores dessa especificidade neológica e das mudanças de ordem social, econômica, política e cultural, o que permite que se creia: o neologismo é uma conseqüência de um dos melhores terrenos das fenomenologias sociais.

Nos neologismos é encontrado o verdadeiro retrato da sociedade de uma determinada época. Trata-se de um reflexo do modo como a língua acompanha as inovações sociais.

Segundo Mário Eduardo Viaro,

Uma palavra entra em circulação de uma maneira um tanto o quanto misteriosa e com base em associações vagas, a palavra sai da linguagem individual e passa para a língua comum.

O (des)conhecido sempre está carregado de valores de ordem sensível, dos quais o Homem não consegue se libertar a qualquer momento, por isso sensibilidade e razão caminham lado a lado, embora sejam distintas.

Na realidade, corroborando Rubem Fonseca: nada temos a temer, exceto as palavras.

Não sendo só razão, a palavra não é apenas instrumento de idéias, pois se a cada ser, por exemplo, correspondesse um nome, a Língua seria um acúmulo interminável de palavras onde a razão e o sentimento seriam descartáveis. Isso seria, em verdade, impossível, já que “o Homem não é apenas um simples observador do mundo, ab extrinseco e põe ad extra vivências internas”[11].

Logo, é possível que mentalmente se coloquem, paralelamente ao sentido permanente das palavras, significados supervenientes, quando se abstrai da(s) palavra(s) contextualizada(s) o sentido ocasional, até para se verificar a possibilidade de depreensão de um sentido permanente.

O sentido de uma palavra é indicado pelo conjunto do(s) contexto(s) em que ela pode figurar.

Esse gênero de trabalho conduz ao porquê ocasional ou contextual do léxico e, conforme ressaltara Saussure, a característica da fala é a liberdade de combinações, quando estruturas permitem captar a intenção do enunciador/emissor, pelo destaque, pelo realce, pelo contexto situacional. É o momento em que Sintaxe, Semântica e Pragmática se encontram.

Compreender o sentido de uma palavra é saber que estrutura é possível construir com ela. Por isso, a integração de uma palavra a um texto traduz um trabalho criativo nas possibilidades oferecidas, pelo sistema, de diferentes usos.

Corroborando José Saramago: quem de palavras tem experiência, sabe que delas se deve esperar tudo.

Qualquer indivíduo tem todo o direito de inventar/criar lingüisticamente o que quiser e o filólogo de registrar essa invenção.

Consciente disso, este entra em ação – para ele a fixação de época constitui um trabalho fundamental.

E ainda é preciso não se esquecer de:

Ai palavras, ai palavras,
que estranha potência a Vossa!
Todo sentido da vida
Principia à vossa porta.

(Cecília Meirelles)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS[12]


 

[1] Jornal do Brasil, caderno H, 07 de março de 2004, p. 4.

[2] HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro.: Objetiva, p. 2100.

[3] Discutindo Língua Portuguesa. São Paulo: Segmento, ano 1, no 1,  p. 14.

[4] Veja. Edição 1966 – ano 39 – No 29 – 26 de julho de 2006, p.56. HUMBERTO COSTA, então Ministro da Saúde do atual Presidente (Lula) da República.

[5] Época. São Paulo: Globo, no 427, 24 de julho de 2006. p. 26.

[6] Edição 1966, ano 39, no 29 de 26 de julho de 2006.

[7] Denunciado por um Deputado Federal (RJ) de um dos partidos brasileiros mais tradicionais.

[8] O Globo, de 23 de julho de 2006.

[9] Extra, de 31 de julho de 2007.

[10] XU, Z. Le néologisme et ses implications sociales. Paris: L’Harmattan, 2001.

Le néologisme, étant la forme engagée das besoins nouveaux, constitue le signe du changement linguistique et des mutations sociales d’une époque donnée. Il s’est accentué depuis les années quatre-vingts en France comme en Chine, et son développement a conduit à une étude plus approfondie de deux disciplines plus ou moins liées jusqu’à récemment, la sociolexicologie et lexicographie, parce que c’est sur le plan du lexique que s’est le mieux manifestée la prise de conscience par les locuteurs de cette spécificité néologique et des changements d’ordre social, économique, politique et culturel, ce qui permet qu’on le croie: le néologisme est une conséquence un des meilleurs terrains des phénomenologies sociales.

[11] VERGNA, Walter. Comunicação nobre, p. 18/19.

[12]Apesar de terem sido feitas diversas referências, as autoras se esqueceram de incluir os detalhes das fontes referidas.