Empréstimos Lingüísticos
e Identidade Cultural

Nelly Carvalho (UFPE)

 

Introdução

A palavra é o fenômeno ideológico por excelência, diz Bahktin, em Marxismo e Filosofia da linguagem. Sendo assim, a adoção de uma palavra estrangeira revela-se como algo mais que uma simples escolha formal. Seguindo essa linha,alguns lingüistas consideram toda importação de termos uma intrusão de uma cultura exógena onde a neutralidade inexiste, pois traz consigo um precipitado de valores que interfere e modifica a cultura importadora.

Na relação entre duas línguas, faladas por povos diferentes, a língua-fonte é a que influencia na imposição de um termo, e a que o recebe é a língua receptora. A coexistência entre ambas tende a modelar o léxico da receptora por um recorte analógico do mundo objetivo, de acordo com os traços da língua-fonte. O fenômeno não é causado apenas pela vizinhança territorial, nem é apenas lingüístico. Ë resultado da ascendência de uma nação sobre a outra no campo em que se dá o empréstimo.

 

Colonização e Cultura

As relações entre fenômenos deixam marcas na língua. Lembra Alfredo Bosi que as palavras cultura, culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo, cujo particípio passado é cultus e o particípio futuro é culturus. Colo significava eu moro, eu ocupo. Um herdeiro era o íncola e o inquilinnus o que mora em terra alheia. Agrícola era quem trabalhava a terra. Colo é a raiz de colônia, e colonus, o que cultiva a propriedade em lugar do dono.O íncola era o morador e dono.Quando migrava tornava-se colono.. Passando de colo, presente imediato,ação e poder, para as formas nominais do verbo, cultus e culturus, o sentido vai elastecendo. Cultus resulta da ação do colo. O ager cultus era o roçado. Cultus, substantivo, era o culto dos mortos, por aproximação ao cultivo da terra. De cultum, supino de colo, deriva outro particípio culturus, o que se quer trabalhar, o que se quer cultivar.  Aplica-se ao trabalho do solo, mas também a qualquer trabalho do ser humano com efeito cumulativo. Ë o conjunto de práticas, técnicas, símbolos valores que se devem transmitir às novas gerações, para garantir a reprodução de um estado de coexistência social.A educação é o momento institucional marcado do processo.

A terminação em urus dá forma a uma idéia de futuro e vai tomando o sentido de condição de vida mais humana, digna de almejar-se.Cultura supõe uma consciência grupal operosa e operante que partindo do presente planeja o futuro. Tem a dimensão de projeto. Aproxima-se de colo enquanto trabalho e distancia-se polemicamente de cultus.

A ação colonizadora reinstaura e dialetiza as três ordens: do cultivo, do culto e da cultura.

 

Identidade Cultural

O conceito de identidade cultural diz respeito à conexão entre indivíduos e estrutura social. O mundo das representações, do qual a língua faz parte, tem uma dinâmica própria mas sofre influência da base material da sociedade.  Nestas representações é que surgem os conceitos de visão do mundo, concepções, mentalidade, presentes na forma de comunicação.

A função social das representações é assegurar a dominação de uma classe por outra, violência simbólica que também acontece entre nações, gerando o dominante e dominado, com base no poder político e econômico, definindo o mundo segundo seus interesses.

A identidade social e cultural é a categoria que define como os indivíduos se inserem no grupo e como eles agem, tornando-se sujeitos sociais. Define, também, a forma como o indivíduo incorpora o mundo material a partir da experiência e projeta essa incorporação como construção simbólica.

Essa noção de identidade evoluiu junto com as transformações sociais que se acentuaram na segunda metade do século XX. Houve uma transição do nacionalismo para a chamada globalização, quando tudo passa a fazer parte do mercado, mercado esse dominado pelas potências mais poderosas.Com a globalização, pela circulação planetária de informação e cultura, criou-se uma área comum de referência, onde as identidades específicas vão perdendo os contornos.

Com a evolução dos meios de comunicação, o indivíduo não fica isolado no seu locus, porém tem condições de receber e consumir bens reais ou simbólicos produzidos em outras culturas, incorporando a seu cotidiano valores de realidades distantes, fenômeno denominado por teóricos como desterritorialização. Desta forma, enfraquecem-se os vínculos com a comunidade mais próxima, junto com as noções de regionalismo e nacionalismo. A adoção indiscriminada de termos estrangeiros, provenientes da cultura que domina os mass media, torna-se uma conseqüência natural.

Isto não significa que o empréstimo é um fenômeno recente.

Sem dúvida, esteve sempre presente na história das línguas através de contatos fortuitos ou prolongados. Na atualidade, contudo, tomou outro rumo, intensificou-se, pelas condições acima expostas.

Os alemães têm uma nomeação para os empréstimos (intraduzível) que, ao fazer a distinção, poderá servir para especificar esse fato; Lehnwort– para o termo já incorporado há muito tempo, um fato histórico ; Fremdwort para o empréstimo recém-entrado, um fato contemporâneo. Apesar disso, a linha divisória não é sempre fácil de traçar. Nenhuma língua moderna é tão simples nas suas escolhas que um conjunto de categorias possa descrevê-las exaustivamente.

 

Conceito lingüístico de empréstimo

O processo de empréstimo é interessante até pelo nome adotado. Tomado de outra língua, não há obrigação de restituí-lo.

Trata-se da adoção por parte dos falantes de uma língua, de termo de outra, por perceberem alguma lacuna ou inadaptação para nomear algo, no acervo lexical da língua que falam. Cada falante tenta reproduzir esses modelos lingüísticos importados para superar as novas situações. Nessa tentativa de reprodução de modelos encontrados em outro sistema, nem sempre o falante tem consciência do que está a fazer.

Duas espécies de atividade contribuem para o empréstimo, substituição e importação, definidas em termos de comparação entre o modelo e a reprodução.

Nomes (sobretudo substantivos) encabeçam a lista dos empréstimos em todas as línguas, seguidos à distância por verbos e sufixos; sons e desinências só em raros casos. O aparato gramatical resiste às mudanças extra-sistêmicas por ser o menos material e o mais formal dos componentes da língua.

Haugen, ao analisar as substituições morfêmica e fonêmica, considera os seguintes tipos de empréstimos:

Loanwords– sem substituição morfêmica;

Loanblends– com substituição parcial;

Loanshifts– com substituição completa.

Os loanblends incluem os hibridismos, podendo ser derivados(goleiro) ou compostos (nota-release)e os loanshifts,as traduções, calques e empréstimos semânticos (computador)podendo surgir homônimos (truque)e sinônimos (teledetecção/ sensoriamento remoto).

Confundindo um pouco o quadro esboçado surgem os emprétimos indiretos (mídia), os interdialetais (escalão –upgrade) e a influência da forma escrita, com a falta de correspondência entre os sons das letras na língua-fonte e na língua importadora, explicada por alguns autores como problemas de soletração.(spelling)

Os empréstimos fonológicos praticamente inexistem dada a dificuldade de reprodução fonemas entre as linguas.  Cristo em japonês é percebido e produzido como Kirisito. Ciao(italiano) pañuelo(espanhol) ballayage (francês)não alcançam, entre os falantes do português brasileiro, um nível de realização aceitável para os padrões da língua –fonte. Pizza é uma exceção.

Haugen reforça a análise feita com essa observação: “Ouvindo uma palavra estrangeira desconhecida,, tratamos de descobrir nela um complexo de nossas representações fonológicas e de decompô-la em fonemas de nossa língua materna de acordo com nossa lei de grupamento de fonemas.”

David Crystal detalhou a classificação elaborada por Haugen, da seguinte forma:

Loanwords – importação de forma e significado com adaptações ao sistema fonológico: leiaute, chute.

Loanblends– o significado é adotado, mas apenas parte da forma é da língua-fonte: Barrashpping, funkeiro.

Loanshifts :– o significado é importado, mas a forma é nativa: deletar,computador.

Loan translations– a tradução é feita item por item: sky-scrapper /arranha-céu

Nas classificações citadas, o aspecto socio-cultural não é abordado, como também outros aspectos puramente lingüísticos. Assim pode-se observar no processo de adoção uma grande tendência às formas convergentes, onde são reduzidos ao denominador comum de uma forma, palavras vindas de idiomas diversos: capão (port/tupi); truque (inglês, francês, alemão, espanhol).

 

Palavras internacionalizadas

Merecem especial destaque as palavras ditas internacionalizadas Essas palavras voam sobre as fronteiras lingüísticas e políticas e aterrissam tranqüilamente no campo inimigo. Podem ser reformuladas ou não na escrita, mas na fala, são adaptada ao gosto do freguês, como frila, mídia, frisa Até mesmo snob, biônico, handcap. garçon.Esta é uma categoria de palavras que são comuns em todas as línguas ocidentais. Têm forma e significado praticamente iguais em línguas várias, embora sejam pronunciadas de modos bem diferenciados. Um bom exemplo é psicologia e com ela os nomes de quase todas as ciências e de muitas práticas científicas e técnicas. Música, museu, cinema, universidade, bar, esporte, com algumas mudanças nas línguas mais divulgadas, junto com pizza, bug, hamburguer,status quo, ultimatum, rock, omnibus(com a terminação do ablativo transformada em substantivo-bus), termos da informática e de muitas outras atividades globalizadas.

Sérgio Corrêa da Costa, em Palavras sem Fronteiras listou 3000 dessas palavras,sendo, para surpresa geral, 1420 de origem francesa e 1050 de origem inglesa, resquícios de quando a primeira era a podem adquirir um sentido diferente da língua–fonte: língua da cultura. Em terceiro lugar vem o latim, em quarto o italiano e em quinto o espanhol, apesar de ser falado em mais de 30 países. O português, que segundo Décio Pignatari, não contribui para a língua internacional desde o fim do século XVI, aparece com 13 contribuições, vindo a maioria do Brasil: sertão, favela, samba, cerrado, macumba estão entre elas. Mas, no momento já constam também do vocabulário internacionalizado novela, cachaça, caipirinha, Pitu, rodízio, referente a atividades e produtos onde o brasileiro revela-se competente. Só assim a nomeação é adotada e respeitada.

As palavras inglesas elencadas são de uso recente, relacionadas a negócios, cultura de massa, esportes e ciência. As francesas são abstratas, ligadas a correntes de pensamento, estados de espírito e juízos de valor, além de, obviamente, referirem-se às artes e cultura clássicas.

No seu livro mais recente, A Revolução da linguagem, David Crystal afirma que a tal revolução está apoiada num tripé: O inglês como língua universal (apoiada na globalização),a internet e a extinção em massa de línguas Desses, apenas o último não é controverso.: mais de seis mil línguas no planeta estão em vias de extinção, algumas no Brasil.

Crystal afirma que nenhuma língua teve o alcance do inglês de hoje, a partir da década de 90, nem o Latim, na Roma Imperial.. Pra ele a internet é uma revolução como foi a invenção da imprensa ois não se enquadra nos padrões da escrita nem da fala. È muito cedo para tirar conclusões, muitos dizem.

 

Tipologia das línguas

Para Lucien Tesnière, a receptividade de uma língua a empréstimos é função inversa de sua sistematização

A partir dos critérios de classificação dos empréstimos, foi elaborada por Otakar Vocadlo uma escala de receptividade que tem uma correlação com a estrutura da língua receptora. Com base na escala elaborada, o autor classificou as línguas em homogêneas, amalgamadas e heterogêneas.

Nas primeiras, sendo homogêneas, o empréstimo permanece segregado como termo não-nativo., tendo como exemplo, o checo.

As amalgamadas são receptivas a empréstimos de sistemas com estrutura semelhante; entre estas estão as línguas de origem latina. Portanto, o português tem uma certa permeabilidade para o empréstimo.

As heterogêneas são receptivas a termos estrangeiros, integrando-os e adaptando-os a sua estrutura. Teria como exemplo o inglês, língua saxônica, cujo léxico é constituído de mais de 60% a 70% de itens lexicais latinos e que recorre ao latim sempre que necessita formar novos termos. É uma língua colocada em alta na escala de receptividade

Intuindo este caráter simplificador da língua inglesa, Gilberto Freyre afirmou, no seu livro Ingleses no Brasil : “ A mais simples das línguas modernas é o inglês. Quase sem gramática, tende a aproximar os homens– função genuinamente angélica– enquanto as línguas de gramáticas diabolicamente complicadas tendem a separá-los. Sua gramática é quase um peixe sem espinhas para a boca dos meninos das quatro partes do mundo”.

 

Considerações Finais

Para Heidegger, o idioma é o ser, ou melhor, a língua é a casa do ser. Por isso, a intromissão exagerada de outra língua apaga as experiências compartilhadas e acumuladas pela comunidade de fala, tornando-as impessoais. A língua materna seria a última identidade que resta, quando as demais foram perdidas.

Os empréstimos, de acordo com Robins, estão entrando em uma língua todo tempo, mas sua freqüência e suas fontes são temporariamente atingidas por fatores políticos e outros que resultam de contatos culturais restritos de uma ou outra espécie.

A nossa língua portuguesa vive, como as demais, em permanente elaboração, e o modo de forjá-la é, ao mesmo tempo, forjar cultura. Na medida em que é veículo de novas experiências e valores, precisa adequar-se para permanece como instrumento de comunicação, o que determina a necessidade de empréstimos. Isto, contudo, não pode significar uma forma de tutela, trazendo na raiz o preconceito da superioridade cultural da língua–fonte em relação á língua importadora. O prestígio das línguas dos países dominantes tem por base questões extralingüísticas, ou seja, políticas e econômicas. Seguindo a linha de raciocínio de Coseriu, o falante da língua importadora compara seu saber e seu poder com o falante da língua-fonte e dispõe-se a aceitar os termos dessa última, reconhecendo-lhe a superioridade.

O inglês é o veículo da globalização que faz manter a preferência ao ter que optar entre um termo inglês e outro vernáculo, mesmo que seja desnecessário por ter o português um equivalente.

Um termo que se instala é mais que um grupo fônico ou um conjunto de letras. É um signo com um sentido, um referente e suas pressuposições. Mais que um ato lingüístico, é um ato cultural, uma tentativa de impor uma visão de mundo à comunidade. É impor um modo de ver e, através da língua, agir.

Apesar de ser um fato incontestável a interpenetração das línguas e culturas, com a conseqüente adoção de empréstimos, Antonio Houaiss afirmou que,” se uma língua recebe empréstimos sempre de outra, sem diversificar, ela se torna cada vez mais diferente de si mesma, descaracterizando-se”.

O tratamento a ser dado aos empréstimos, penso, não está em proibir-se ou coibir o seu uso: as “viagens” que empreendem as palavras estão na dependência direta dos “balanços” das relações inter-nações e escapam ao domínio estritamente lingüístico. Por outro lado, não me parece convir deixar-se a língua vernácula ser usurpada no seu direito de expressão e de emprego de soluções que oferece à designação de fatos e coisas do mundo bio-social.

O caminho talvez esteja na preferência, prioridade, para a língua portuguesa no encontrar os caminhos que o idioma nacional oferece sem, porém, deixar-se tomar de xenofobia, que emperre o desenvolvimento ou dificulte o aprendizado em decorrência da recusa à absorção de termos e formas não vernáculas. A incorporação crítica e não a absorção acrítica entendo ser o caminho pois, na verdade, a questão é uma questão lingüística e político-cultural.

 

Bibliografia

CARVALHO, Nelly. Empréstimos lingüísticos. São Paulo: Ática, 1989.

CRYSTAL,David. Dictionary of Linguistics and Phonetics. New York: Basil Backwell, I985.

HAUGEN, Einar. The Analysis of Linguistic Borrowing. In: Essays. Stanford University Press. California, 1972.

HOUAISS, Antonio. A crise na nossa língua de cultura. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 1983.

JUNQUEIRA,Lília. Identidade, Representações e Mudança Socia. In: Identidades. Recife: Universitária, 1999.

ROBINS, R.H. Lingüística geral. Porto Alegre. Globo, 1997.

VOCADLO, Otakar. Some Observations on Mixed Languages. In: Actes du IV Congrès Internationale de Linguistes. 169/76. Copenhague, 1938.