Lygia Bojunga e os recursos lingüísticos
oralidade e escrita

Tania Maria Nunes de Lima Camara (UNISUAM)

 

O nome de Lygia Bojunga figura entre os mais consagrados no universo da literatura, reconhecido nacional e internacional pela excelente produção que, com extrema justiça, foi a responsável pelo recebimento de importantes premiações.

Propositadamente retiramos nessa apresentação a adjetivação “infanto-juvenil”, que sua obra normalmente recebe, dada a carga semântica preconceituosa e depreciativa que tal denominação incorpora, como se escrever para crianças e jovens fosse uma atividade menor. Preferimos, pois, como Silva (2002), afirmar que, no âmbito nacional, Lygia “... projeta-se como uma das mais competentes e cativantes vozes que falam à criança de Qualquer idade (inclusive ao adulto que ainda for capaz de reviver os sentimentos e as emoções da infância” (p. 9). Assim, esta comunicação tem como foco a escritora Lygia Bojunga, deixando de lado os rótulos ligados a faixas etárias, e buscando apoio em algo que bem mais forte a caracteriza e individualiza: a sua linguagem.

Vários poderiam ter sido as obras escolhidas, todas igualmente importantes e representativas. Ante todo esse leque de possibilidades, escolhemos “O Rio e eu”, pelo fato de já ter sido trabalhado com meus alunos do Ensino Médio. Desse modo, esta comunicação terá o tom de um relato de experiência, fruto de um trabalho docente que tem no texto o ponto de partida e de chegada nas aulas de língua portuguesa: sua gramática e seus recursos de expressividade como ferramentas de produção literária.

A oralidade é traço marcante na obra de Lygia, o que em nada diminui a qualidade de seu texto. Oralidade não é sinônimo de superficialidade, de banalidade; a facilidade da comunicação, ao contrário, decorre de um grande esforço em que as escolhas devem ser perfeitamente adequadas para que o resultado final reflita o propósito. Como diz Drummond, a simplicidade de uma obra resulta de operações complexas necessárias para realizá-la, daí o cuidado que demanda. A linguagem simples, cotidiana, clara, envolvente mostra-se, pois, objeto de frutífera observação. O ar de conversa espontânea que a obra encerra tem nas escolhas lingüísticas um de seus elementos mais significativos.

Como ocorre em todo e qualquer texto, literário ou não literário, os elementos que entram na sua constituição não são gratuitos; muito pelo contrário, cada um deles desempenha um papel específico. No texto literário, os elementos lingüísticos atingem um patamar mais elevado, uma vez que entra em jogo um importante diferencial: a finalidade estética; a arte entendida como criação. Sob esse aspecto, nada pode ou deve ser desprezado no texto, pois tudo se mostra relevante na produção de sentido, encaminhando ou desencaminhando o percurso do leitor.

Assim, antes de propriamente abordarmos as questões especificamente relativas à oralidade, consideramos importante chamar atenção para um outro dado igualmente importante: a escolha do nome do personagem a que o narrador faz referência. A condição de signo lingüístico faz dos antropônimos elementos não somente de designação; mais do que isso: são dotados de significação, escolhidos e empregados em consonância com o contexto em que se inserem. Portanto, se, como dissemos anteriormente, nada é gratuito no texto literário, a maneira como um personagem é nomeado também não o será. Por esse ponto iniciaremos nossas considerações acerca da seleção lingüística feita pela autora.

Na abertura da obra em questão, encontramos a seguinte passagem:

... Muitos anos mais tarde, um dia me perguntando quando é que tinha começado o meu caso de amor com o Rio, eu fui voltando pra trás na minha vida, fui voltando, voltando, até chegar na Maria da Anunciação (p. 7)

A novidade e o estranhamento do nome despertaram o interesse da menina, personagem central do romance, suscitando o seguinte diálogo entre esta e Maria:

Eu já vi muita Maria, mas nunca da Anunciação.
Tá vendo agora.
Anunciação vem de anúncio?
Vem.
Anúncio de quê?
O quê?
O que a senhora anuncia?... (p. 13)

Mais adiante: “... o Rio que a Maria da Anunciação tinha me anunciado existia sim!...” (p. 21). E, no final desse primeiro capítulo, encontramos: “... Acho que foi por isso que eu me entreguei ao Rio tão pequena e tão de longe: pelo jeito que a Maria da Anunciação me apresentou a cidade.” (p. 24).

Temos nesse batismo do personagem que “Maria” metaforiza a mulher. Ao lado de ser um nome popular, presente em várias frases-feitas que povoam o linguajar do povo, alude à mãe de Jesus, sugerindo dedicação, pureza. No caso da personagem, trata-se de uma trabalhadora, uma passadeira que vai trabalhar na casa da narradora. O jeito simples, puro, apaixonado resgata a metáfora de seu nome. Quanto a “Anunciação”, passou, pelo processo morfológico de derivação imprópria ou conversão, de nome comum a próprio e, segundo Houaiss, remete à “notícia levada pelo anjo Gabriel à Virgem Maria, de que ela seria a mãe do Filho de Deus” (p. 242). É, pois, evidente a relação entre a personagem e o significado do seu nome, de acordo com o exposto nas passagens anteriormente referidas: foi Maria da Anunciação quem passou à narradora a primeira notícia sobre a existência da cidade do Rio de Janeiro e de todos os seus encantos, o que acabou por desenvolver na narradora sentimentos de encantamento e paixão por um lugar que, por algum tempo, mantiveram-se desconhecidos, até a vinda para a cidade, o que a fez confirmar tudo quanto era imaginado a partir do relato de Anunciação. Sem dúvida, não é possível descartar a adequação que se estabelece entre nome e personagem no caso em questão.

No que se refere aos aspectos da oralidade propriamente ditos, entendemos ser essa a modalidade adequada para a narrativa que se apresenta. O tom de conversa, anteriormente referido, a informalidade da situação, o envolvimento afetivo do narrador no relato são pontos mais do que suficientes para justificar o registro. A oralidade, marca presente da informalidade, faz-se a responsável maior pela aproximação entre o narrador, o leitor e o objeto narrado.

Escolhemos o fragmento, como já referido, trabalhado com os alunos, para destacar alguns dos aspectos que consideramos importantes.

Na passagem “Adorei! Se você quer saber a verdade, eu a-do-rei me ver longe de você.” (p. 38), as primeiras palavras evidenciam a personificação da cidade, com a qual a narradora estabelece uma relação amorosa. O contexto apresentado é um rompimento; mais do que “dar um tempo” (p. 39), expressão usada pela narradora, era necessária uma verdadeira separação, dado o desgaste estabelecido.

Além disso, encontramos a forma “a-do-rei”, registrada de maneira silabada, enfatizando o estado emocional do eu, à semelhança do que freqüentemente nós próprios realizamos nas manifestações espontâneas de fala cotidiana. A separação silábica do registro resgata o ritmo pausado da expressão oral nas situações em que a ênfase se faz necessária, associada a estados emocionais.

Expressões de gíria, tais como “Tipo da coisa”, “pra sacar”, (p. 39), palavras abreviadas ou aglutinadas (“pra”, “pro”, “‘tava”), pronome pessoal oblíquo iniciando frase (“Me senti...”), construções sintáticas que subvertem o padrão gramatical (“Que férias que nada!”), considerados contextualmente, demonstram de maneira clara que oralidade não constitui inconsistência; longe disso, estamos diante de um texto extremamente bem escrito e, ao mesmo tempo, criativo. O fazer-se-passar-por-descomprometido, parafraseando aqui um recurso freqüentemente usado pela autora – a hifenização – “papo-pra-jogar-fora” (p. 40) – talvez tenha sido um dos maiores obstáculos que Lygia teve de superar, e o fez de modo brilhante. Afinal, fazer um texto pensado parecer natural é algo que demanda esforço e habilidade imensos, no intuito de manter a qualidade.

Outro aspecto digno de destaque remete à presença de expressões populares –“toca a falar” (p. 40) –, mistura de tratamento tu e você – “...deixa eu te contar... toca a falar de você...” (p. 40), “a gente” no lugar de “nós”, neologismos – “poluências”, “ências” (p. 39) como recursos igualmente relevantes. Todos esses traços estão presentes na fala espontânea e, se a intenção do narrador é fazer um desabafo emocionado acerca de uma relação afetiva, nada mais natural do que fazer uso de recursos marcantes daquela forma de expressão. Trata-se, sem dúvida, da transposição efetiva do oral para o escrito.

A ruptura com o padrão formal culto da língua é, pois, evidente e plenamente justificada, fazendo da leitura um produto “fácil” de ser consumido, o que, por sua vez, acaba por possibilitar a observância dos recursos utilizados. Sem o empecilho da linguagem rebuscada, abre-se mais espaço para a percepção da quebra que a autora estabelece em relação à norma gramatical, em toda a sua plenitude: lexical, morfológica, sintática.

Ainda sobre a subversão das regras gramaticais, é importante destacar a forma peculiar da autora quanto ao emprego dos sinais de pontuação. Estamos, pois, diante de um texto em que a forma de pontuar mostra-se como recurso de expressividade. Por exemplo, o modo como são usados os dois-pontos e as reticências, muito longe de ratificar os procedimentos que a gramática recomenda, contribui de forma singular para a produção de sentido. Um primeiro exemplo encontra-se na seguinte passagem: “ Um mês. Dois, três, quatro... cinco......seis...” (p. 39)

Com relação às reticências, observam-se procedimentos interessantes. Na enumeração correspondente à passagem de tempo, o referido sinal colocado antes e depois da palavra “seis” atua como intensificador da lenta passagem de tempo, traço que não encontramos nas regras que orientam o uso desse sinal. Trata-se, pois, de um emprego discursivo, buscando relacionar o escrito e o ritmo lento que a fala adquire quando esse é o intuito de quem se expressa.

Outro emprego criativo ocorre nas passagens em que a pontuação marca a interrupção do discurso do eu, propiciando a entrada do discurso citado, sob a forma de discurso direto, e novamente as reticências, dando continuidade ao que fora interrompido, funcionando como elo, como elemento de coesão: “...notícias do caso... ().... eu saía pela tangente” (p. 40). Na língua falada, não são raros os momentos em que construções desse tipo ocorrem; muitas vezes a mudança do tom da voz do enunciador explicita para o interlocutor a mudança de agente da expressão. No texto escrito, Lygia usa a pontuação como recurso de interrupção e de retomada.

Quanto aos dois-pontos, a autora emprega-os cm freqüência, antecedendo construções nas quais a gramática recomendaria o ponto-e-vírgula. Ao lado de anteceder explicações, conforme orientação gramatical, encontramos casos em que a ruptura do padrão se dá por conta da estruturação sintática na qual o sinal é utilizado. O trecho “Não: é ela: a saudade.” (p. 40) confirma essa afirmação.

Esse novo emprego dos sinais gráficos, afastado do modelo lógico-gramatical, constitui uma busca de trazer, para o escrito, procedimentos da fala. Desse modo, confirma-se a idéia de que apresentar o emprego da pontuação seguindo exclusivamente a orientação constante das gramáticas impede que o aluno reconheça a riqueza que o referido recurso empresta ao texto, especificamente ao literário. Portanto, cabe ao professor discutir com seus alunos essas questões.

Muito mais seria possível e interessante de ser explorado na linguagem de Lygia Bojunga. A riqueza da criação, decorrente do domínio efetivo do material lingüístico, revelou-se, na sala de aula, um excelente material de trabalho com o qual os alunos gostaram de trabalhar. A reação que esses manifestaram foi extremamente positiva. Se o prazer deve ser uma forma de desenvolver o conhecimento, acreditamos que os textos de Lygia Bojunga são capazes de propiciar essa realidade. Cabe, pois, ao professor a habilidade de envolver seus alunos de maneira tal, que o resultado possa ser este: reconhecer na literatura o espaço em que tudo é permitido acontecer.

 

Referências BIBLIOGRÁFICAS

BOJUNGA, Lygia. O Rio e eu. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.

CAMARA, Tania M.N.L. Pontuação: perspectivas e ensino. Tese de Doutorado em Letras (UERJ), 2006.

SILVA, Vera M. T. Nas malhas da rede narrativa: estudos sobre Lygia Bojunga Nunes. Goiânia: Cânone, 2002.