CLÍTICOS ACUSATIVO E DATIVO EM PORTUGUÊS E O CONTÍNUO ORALIDADE-LETRAMENTO

Gilson Costa Freire (UFRJ)

 

INTRODUÇÃO

Estudos sobre o português falado no Brasil (PB) vêm demonstrando um significativo decréscimo no uso dos clíticos acusativo e dativo de terceira pessoa, substituídos por outras variantes, tais como pronomes tônicos, SNs anafóricos ou SPs, e por uma categoria vazia. O português europeu (PE), por outro lado, exibe um sistema rico de clíticos de terceira pessoa. Este trabalho procura verificar como se dá a recuperação desses clíticos na escrita brasileira em comparação com sua ocorrência na escrita lusitana, com base em uma amostra constituída de diferentes gêneros textuais das duas variedades, distribuídos ao longo de um contínuo oralidade-letramento.

Ao levantar as diferenças entre as duas variedades no que diz respeito ao uso dos clíticos acusativo e dativo na escrita, este trabalho aponta aspectos característicos da gramática do letrado brasileiro e permite algumas reflexões sobre o papel da escola na tarefa de ensinar formas ainda presentes na escrita embora ausentes da fala.

 

ANÁLISE DOS DADOS

Foram selecionadas duas amostras, uma para o PB e outra para o PE, a partir de textos de jornais e de seus respectivos suplementos, representativos do Rio de Janeiro e de Lisboa, além de histórias em quadrinhos de gibis que circulam nas bancas dessas cidades.

Os diferentes gêneros textuais da amostra brasileira foram produzidos entre os anos de 1995 e 2004, tendo sido colhidos aleatoriamente a partir dos seguintes veículos: Jornal do Brasil, O Globo, gibis da Turma da Mônica e gibis da Disney. Quanto à amostra portuguesa, os textos datam do período entre 1998 e 2004 e foram colhidos aleatoriamente a partir dos seguintes veículos: Diário de Notícias, Expresso, Público e gibis da Disney.

Os dados de escrita de cada amostra foram organizados num contínuo, seguindo a metodologia proposta por Bortoni-Ricardo (2004), segundo a qual o fenômeno da variação lingüística pode ser compreendido a partir de um contínuo oralidade-letramento: num extremo, estão os dados cuja produção é mediada pela língua escrita, sendo esta entendida como um padrão de comunicação sistematizado pela tradição literária e altamente prestigiado nas camadas sociais letradas; no outro extremo, estão aqueles cuja produção busca certa transposição da fala para a escrita. Considerando a mediação da língua escrita, nos termos propostos pela autora supracitada, os gêneros textuais presentes nas duas amostras foram distribuídos em três grupos no contínuo:

a) [+ oralidade/ – letramento]: tiras e histórias em quadrinhos;

b) [+ oralidade/ + letramento]: crônicas, trechos de fala transcrita em reportagens e entrevistas transcritas;

c) [– oralidade/ + letramento]: reportagens, editoriais, críticas de livro/filme e artigos de opinião.

A partir desse contínuo, foram examinadas as ocorrências dos clíticos e das demais variantes que com eles competem na representação do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa, a fim de avaliar o grau de implementação das formas alternativas aos clíticos de terceira pessoa na escrita brasileira e na portuguesa. Pretendeu-se com isso alcançar dois propósitos: (a) verificar, especialmente no PB, até que ponto os clíticos das duas funções, praticamente extintos na fala, são recuperados na modalidade escrita; (b) contemplar as diferenças de ocorrência desses mesmos itens lingüísticos nas duas variedades, o que permitiu evidenciar as características da escrita do letrado adulto brasileiro em contraste com a do letrado português.

A seguir, são expostos os resultados obtidos em cada função.

 

Função acusativa

Diferentes trabalhos realizados sobre o português falado no Brasil (cf. Duarte, 1986; Freire, 2000) apontam a ocorrência de três outras estratégias de realização do acusativo correferente com um SN mencionado no discurso (acusativo anafórico de terceira pessoa) em progressiva substituição ao clítico de terceira pessoa: o pronome lexical (forma nominativa em função acusativa), os SNs anafóricos e o objeto nulo.

O exame da distribuição dessas variantes através do contínuo oralidade-letramento pode contribuir para explicitar as diferenças quantitativas e qualitativas entre elas nas duas variedades do português. Observe-se a tabela com a distribuição do número de ocorrências, seguida dos exemplos das variantes em cada nível do contínuo:

 

Tabela 1.1. Distribuição das variantes no contínuo oralidade-letramento

PB

Clítico

Pron. lexical

SN anafórico

Objeto nulo

[+ oralidade/ – letramento]

15/103

22/103

20/103

46/103

[+ oralidade/ + letramento]

70/161

10/161

24/161

57/161

[– oralidade/ + letramento]

104/142

14/142

24/142

PE

Clítico

Pron. lexical

SN anafórico

Objeto nulo

[+ oralidade/ – letramento]

86/132

23/132

23/132

[+ oralidade/ + letramento]

109//134

11/134

14/134

[– oralidade/ + letramento]

87/100

6/100

7/100

 

a) [+ oralidade/ – letramento]

                (i) clítico

(01)         O Cebolinha vai adorar o computador! Só preciso dar um jeito dele não quebrá-lo em dois minutos! (PB: Almanaque do Cebolinha, n.º 77, outubro de 2003 – História em quadrinhos)[1]

(02)         Sujou as jóias de propósito para as distinguir! (PE: Série Ouro Disney, n.º 35, junho de 2001 – História em quadrinhos)

 

                (ii) pronome lexical

(03)         Eu também já tive o meu bonequinho! Era o ursinho Bilu! Pra onde eu ia, sempre levava ele! Na escola, no parque, no cinema… (PB: Almanacão de férias da Turma da Mônica, n.º 36, 2002 – História em quadrinhos)


 

                (iii) SN anafórico

(04)         Então quem aterrorizava as fábricas do tio Patinhas no Canadá não eram os wendigos, e sim os índios nanicós! E eles raptaram o tio Patinhas! (PB: Tio Patinhas, n.º 471, outubro de 2004 – História em quadrinhos)

(05)         Quando ele morreu, o seu fantasma passou a sair à meia noite para procurar a gaita de foles pelo castelo! E agora, graças a vocês, o fantasma recuperou a sua gaita de foles! (PE: Disney Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)

 

                (iv) objeto nulo

(06)         Quase pronta, mãe! Só vou deixar um bilhete para o Zé. Tenho que deixar __ onde ele não deixe de ver __! (PB: Zé do Boné em O Globo, 17-06-2004 – Tira em quadrinhos)

(07)         “Excêntrico é pouco! Disse-me que um fantasma anda a roubar-lhe coisas do castelo e exige que eu investigue o caso!” “E o senhor vai investigar __?” (PE: Disney Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)

 

b) [+ oralidade/ + letramento]

                (i) clítico

(08)         Você ainda não se libertou nem vai se libertar nunca. Mas você pode porque seus fantasmas são a matéria-prima com que trabalha. Os meus só me rendem alucinações e não sei aproveitá-los literariamente, artisticamente. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 28-03-1999 – Entrevista)

(09)         […] não posso comprar detergente suave para lavar as minhas duas únicas camisas, mantenho-as bem limpas com sabão azul. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Crônica)

 

                (ii) pronome lexical

(10)         Enfim, como toda heroína de novela, Maria Clara é ingênua. Deixa ela pensar que vai se dar bem com essa bobagem. (PB: Segundo Caderno de O Globo, 16-06-2004 – Crônica)

 

                (iii) SN anafórico

(11)         O acidente do Rubinho na sexta-feira foi horrível. Ele quis ver o Rubinho no hospital de Ímola. (PB: Seção de Esportes do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Entrevista)

(12)         Eu não tinha noção nenhuma de composição ou de enquadramento e foram eles que me ensinaram esses pormenores. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-2000 – Entrevista)

 

                (iv) objeto nulo

(13)         Tinha uma leiteira de alumínio que pertenceu à minha avó, mas acabei dando __ para uma grande amiga. (PB: Suplemento Casa & Decoração do Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Entrevista)

(14)         Quando digo isto parece que vou comer lagostas todos os dias e que tenho carros de 18 mil contos. Não tenho __. Nem ambiciono __. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-2000 – Entrevista)

 

c) [– oralidade/ + letramento]

                (i) clítico

(15)         O presidente recebia ovações matinais e no fim do dia as pesquisas o louvavam. (PB: Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Artigo de opinião)

(16)         Mas a Câmara, de maioria republicana, rejeitou o artigo que acusava Clinton de abuso de poder, e também o que o acusava de perjúrio no testemunho sobre o caso Paula Jones. (PE: Diário de Notícias, 20-12-1998 – Reportagem)

 

                (ii) SN anafórico

(17)         A nova lei permite que os pequenos partidos formem uma “federação”. Esse ponto garante que cada um mantenha sua própria organização ao mesmo tempo que permite a eles disputar as eleições sob uma mesma sigla partidária. Esta fórmula ajuda os pequenos partidos a atingirem a cláusula do desempenho. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Reportagem)

(18)         Na verdade, a situação específica daquela mulher prendia-se, numa leitura mais imediata, com questões económicas pelo simples facto de ser dona de casa sem proventos e, desta forma, com a capacidade de decisão diminuída. Dentro deste cenário, é possível explicar uma parte substancial que levou aquela mulher a suportar tortura psicológica e física por parte do marido. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 11-03-2000 – Artigo de opinião)

 

                (iii) objeto nulo

(19)         Esses dólares são taxados em 15% de imposto na hora da remessa, mas não integram o artigo 3 do projeto da nova lei do audiovisual. Poderiam integrar __. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Artigo de opinião)

(20)         Mesmo o Partido dos Trabalhadores (PT, oposição) contribuiu, não obstruindo as votações, como sempre faz __. (PE: Expresso, 16-01-1999 – Reportagem)

A seguir são exibidos os percentuais de ocorrência das variantes candidatas à realização do acusativo anafórico de terceira pessoa ao longo do contínuo, o que permitirá esboçar a tendência de uso dessas formas dentro da modalidade escrita do PB e do PE:

Tabela 1.2. Percentual de cada variante através do contínuo nas duas variedades

Português Brasileiro

[+ oral./ – letr.]

[+ oral./ + letr.]

[– oral./ + letr.]

Clítico

15%

44%

73%

Pronome lexical

21%

6%

0%

SN anafórico

19%

15%

10%

Objeto nulo

45%

35%

17%

Português Europeu

[+ oral./ – letr.]

[+ oral./ + letr.]

[– oral./ + letr.]

Clítico

66%

82%

87%

SN anafórico

17%

8%

6%

Objeto nulo

17%

10%

7%

Sobre o PB, a tabela evidencia que, nos textos que se situam nos dois primeiros níveis do contínuo, as características da fala apontadas nos trabalhos lingüísticos se mantêm, isto é, o clítico aparece em desvantagem em relação à soma das demais estratégias na representação do acusativo anafórico de terceira pessoa, sobretudo no extremo [+ oralidade/ – letramento], em que ele é a variante menos freqüente de todas. Em contrapartida, parece ser justamente no extremo [– oralidade/ + letramento] que a variante prestigiada pela escola se apresenta como a forma mais produtiva de realização da variável em foco. No entanto, tal constatação não causa surpresa alguma, já que era natural esperar que os textos representantes desse nível do contínuo tivessem um compromisso maior com a tradição literária e gramatical: conforme lembra Bortoni-Ricardo (2004: 52), a imprensa é uma das “agências padronizadoras”, responsáveis por codificar a língua numa cultura de letramento. Por conseguinte, aquilo que prescreve a tradição deverá aparecer com mais força numa das extremidades do contínuo. Não obstante isso, os dados relativos à variedade brasileira mostraram que nem no extremo [– oralidade/ + letramento] essa mesma tradição é absoluta, porquanto até nesse ponto do contínuo o clítico está em competição com outras variantes, que juntas chegam a constituir quase 30% das ocorrências.

Quanto ao PE, verifica-se que o clítico desponta em todos os pontos do contínuo como a variante majoritária, exibindo larga vantagem sobre as demais. No que diz respeito a estas, nota-se que ocorrem equilibradas entre si e, apesar de quantitativamente inferiores ao clítico, mantêm uma freqüência estável ao longo do contínuo. Do mesmo modo, percebe-se que essas mesmas variantes se mostram mais expressivas no extremo [+ oralidade/ – letramento], uma vez que somadas constituem 34% das ocorrências. Guardando as devidas proporções, esse ponto do contínuo mostra certa similaridade com a língua oral: nos dados de Freire (2000) sobre a fala de informantes portugueses com nível superior completo, o SN anafórico (25%) e o objeto nulo (31%), se considerados separadamente, ficavam abaixo do índice do clítico (44%), mas juntos conseguiam uma pequena vantagem sobre este último, deixando equilibrada a disputa pelo número de ocorrências.

 

Função dativa

Os trabalhos sobre a realização do objeto indireto correferente com um SN presente no discurso (dativo anafórico de terceira pessoa) no PB registram a ocorrência das seguintes variantes usadas em substituição ao clítico: categoria vazia e SP anafórico, sendo este com a forma tônica do pronome ou com SN pleno (cf. Gomes, 1999; Silveira, 2000; Freire, 2000). Tal como na função acusativa, procedeu-se à análise da ocorrência dessas variantes no contínuo oralidade-letramento. Observe-se a tabela com a distribuição do número de ocorrências, seguida dos exemplos das variantes em cada nível do contínuo:

 


 

Tabela 2.1. Distribuição das variantes no contínuo oralidade-letramento

PB

Clítico

SP anafórico

Objeto nulo

[+ oralidade/ – letramento]

1/28

21/28

6/28

[+ oralidade/ + letramento]

8/51

22/51

21/51

[– oralidade/ + letramento]

32/76

22/76

22/76

PE

Clítico

SP anafórico

Objeto nulo

[+ oralidade/ – letramento]

18/27

1/27

8/27

[+ oralidade/ + letramento]

43/46

3/46

[– oralidade/ + letramento]

29/35

2/35

4/35

a) [+ oralidade/ – letramento]

                (i) clítico

(21)         Minha filha ainda cabe no meu colo… E gosta de ouvir canções de ninar… E gosta de chocalho… E chupeta… E de comer a papinha que eu lhe dou… (PB: Almanaque do Cebolinha, n.º 78, dezembro de 2003 – História em quadrinhos)

(22)         “Acredita em mim, Brigite! O Patacôncio quer apenas a tua receita!” “Eu sei! Só lhe dei atenção para te provocar ciúmes! A receita foi sempre tua!” (PE: Tio Patinhas, n.º 224, agosto de 2004 – História em quadrinhos)

                (ii) SP anafórico

(23)         O Cebolinha vai adorar o computador! […] Vou aproveitar que ele está dormindo pra montá-lo e dar uma boa lida no manual! E amanhã cedo ensino tudo direitinho pra ele! (PB: Almanaque do Cebolinha, n.º 77, outubro de 2003 – História em quadrinhos)

(24)         Regulei o relógio para atirar uma pedra ao telhado dos porquinhos de cinco em cinco minutos… a noite toda! Acho que vou dar àqueles gorduchos uma amostra do que está para acontecer! (PB: Disney Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)

 

                (iii) objeto nulo

(25)         A mamãe gastou um tempão preparando refeição para nós! Tudo o que tinha a dizer __ era um “obrigado”… e não “como estão seus pulsos depois de abrir todas essas latas?” (PB: Zé do Boné em O Globo, 04-08-2004 – Tira em quadrinhos)

(26)         “Já sei! É o tio Donald que ainda está a tocar!” “Acho que fomos malvados ao deixá-lo sozinho!” “Vamos dizer __ que agimos mal!” (PE: Disney Especial, n.º 222, outubro de 2004 – História em quadrinhos)


 

b) [+ oralidade/ + letramento]

                (i) clítico

(27)         São divertidos os candidatos: querem que os eleitores lhes confiem a gestão dos impostos que pagam […] (PB: O Globo, 12-09-2004 – Crônica)

(28)         Mas também já pensei que não me vou realizar através da minha filha. […] Preocupa-me, não, tenho essa atenção: transmitir-lhe uma série de valores que muitas vezes estão em desuso, mas que não consigo não ter. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-2000 – Entrevista)

 

                (ii) SP anafórico

(29)         Fiz essa música belíssima em especial para Roberto, mandei para ele, mas não foi possível para ele gravar. (PB: Revista Domingo do Jornal do Brasil, 03-10-1999 – Entrevista)

 

                (iii) objeto nulo

(30)         O atendimento é sofrível. Já avisei ao gerente e dei __ um prazo para que o atendimento melhore. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Trecho de fala em reportagem)

(31)         O jovem interno, através do mesmo sistema computadorizado, intercalou a informação escrita e os gráficos acompanhantes, de uma forma digna de um Spielberg, fazendo mesmo aparecer pequenos excertos de intervenções cirúrgicas. Fiquei de tal modo encantado com a tecnologia que tive de pedir __ uma repetição para me concentrar apenas na crítica científica. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-2000 – Crônica)

 

c) [– oralidade/ + letramento]

                (i) clítico

(32)         Hoje Ricardo tem uma pequena agência de publicidade e só aceita a quantidade de clientes que lhe permita trabalhar direito e sem estresse. (PB: Jornal da Família de O Globo, 16-05-2004 – Reportagem)

(33)         Margarida Marinho tem 37 anos, um filho chamado Manuel, um amor pelo teatro, uma paixão pela escrita, um medo invulgar da morte, e uma lucidez que lhe permite afirmar, peremptoriamente, não saber onde vai “montar a tenda amanhã”. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 19-02-2000 – Reportagem)


 

                (ii) SP anafórico

(34)         A nova lei permite que os pequenos partidos formem uma “federação”. Esse ponto garante que cada um mantenha sua própria organização, ao mesmo tempo que permite a eles disputar as eleições sob uma mesma sigla partidária. (PB: O Globo, 12-09-2004 – Reportagem)

(35)         Rui Sá não está disposto a permitir que a Câmara do Porto lave as mãos das responsabilidades quanto ao destino dos inquilinos privados que foram ou estão em vias de ser despejados devido ao risco de ruína dos prédios em que vivem. Na reunião camarária de ontem, o comunista apresentou uma proposta, a votar na reunião da próxima semana, em que recomenda que a autarquia assegure um tecto a esses inquilinos, imputando aos senhorios o custo desse mesmo realojamento. (PE: Público, 10-11-2004 – Reportagem)

 

                (iii) objeto nulo

(36)         Em seus ensinamentos ao Príncipe, Maquiavel recomendou __ que más notícias e decisões amargas sejam anunciadas de uma vez só. (PB: Jornal do Brasil, 25-04-2004 – Editorial)

(37)         Lá em baixo, no palco, os estudantes de Direito faziam uma espécie de aquecimento (…) Pedro Wilson olhava para eles, mandava __ uma piada, respondia às provocações bem humoradas de um elemento da produção ou de um actor. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias – 08-04-2000 – Reportagem)

A tabela seguinte apresenta os percentuais de cada variante ao longo do contínuo nas duas variedades:

Tabela 2.2. Percentual de cada variante através do contínuo nas duas variedades

Português Brasileiro

[+ oral./ – letr.]

[+ oral./ + letr.]

[– oral./ + letr.]

Clítico

3,5%

16%

42%

SP anafórico

75%

43%

29%

Objeto nulo

21,5%

41%

29%

Português Europeu

[+ oral./ – letr.]

[+ oral./ + letr.]

[– oral./ + letr.]

Clítico

67%

93%

83%

SP anafórico

3,5%

0%

6%

Objeto nulo

29,5%

7%

11%

A respeito do PB, a tabela evidencia que a freqüência do clítico dativo na escrita está diretamente relacionada a eventos de comunicação que se aproximem do extremo de [+ letramento]. Por outro lado, nos dois primeiros pontos do contínuo, sobretudo no extremo [+ oralidade/ – letramento], mantêm-se as características da fala descritas pelos trabalhos lingüísticos sobre a função dativa, isto é, o abandono progressivo da variante prescrita pela tradição em favor do SP anafórico e do objeto nulo. Além disso, mesmo no extremo [– oralidade/ + letramento], constatou-se que o clítico dativo está longe de ser uma variante dominante, uma vez que ainda tem de competir duramente com as duas outras estratégias de realização do dativo anafórico de terceira pessoa, que juntas constituem mais da metade dos dados levantados.

Acerca do PE, percebe-se de imediato que não há diferenças substanciais entre os extremos do contínuo, porquanto o clítico sempre aparece como a variante majoritária, superando com larga vantagem as demais estratégias em todos os pontos do contínuo, o que vem corroborar a afirmação de Berlinck (1996), segundo a qual a expressão do dativo anafórico de terceira pessoa na variedade lusitana corresponde ao paradigma proposto para a língua padrão nas gramáticas que servem de base ao ensino de português no Brasil, isto é, o uso da forma lhe(s). Isso é revelador quando se pensa na imensa distância entre a prescrição gramatical e o uso brasileiro. Com relação às demais variantes, chama a atenção o SP anafórico que, em contraste com o largo uso encontrado na variedade brasileira, fica ausente num dos pontos do contínuo. Já o objeto nulo, apesar de quantitativamente inferior ao clítico, manifesta-se ao longo de todo o contínuo, exibindo índices mais expressivos que o SP anafórico, particularmente no extremo [+ oralidade/ – letramento]. Por fim, observa-se que é nesse mesmo extremo que a escrita portuguesa manifesta uma variação maior na realização do dativo anafórico de terceira pessoa, visto que as estratégias alternativas ao clítico somadas constituem 33% do total de dados desse ponto do contínuo, o que obviamente não chega a ameaçar a hegemonia do pronome dativo.

 

CONCLUSÃO

A análise da freqüência dos clíticos e das variantes que com eles competem na representação do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa através do contínuo oralidade-letramento permitiu observar diferenças fundamentais entre as duas variedades do português.

Enquanto no PE os clíticos são bastante robustos e sobrepujam as demais variantes ao longo de todo o contínuo, no PB eles só alcançam semelhante condição na extremidade [– oralidade/ + letramento], cuja configuração é muito similar ao quadro geral do PE, haja vista a ausência do pronome lexical em função acusativa nesse extremo do contínuo e o índice mais baixo de ocorrência das demais variantes em favor dos clíticos. Essa similaridade se deve muito provavelmente ao fato de o modelo de língua considerada culta no Brasil ter sido estabelecido, como mostra Pagoto (1999), “à imagem e semelhança” do português europeu moderno. Por esse motivo, a tradição escolar, codificada nas gramáticas que servem de base ao ensino do português, estabelece os clíticos <o> e <lhe> como únicas estratégias legítimas de representação do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa, entre outras tantas prescrições. Contudo, a julgar pela distribuição desses elementos no contínuo oralidade-letramento do PB, essa tradição parece obter certo êxito somente num dos extremos, o que indica não ser o uso dos clíticos uma opção que se possa considerar espontânea na variedade brasileira para a representação do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa, visto tal uso estar fortemente relacionado a eventos de comunicação que contenham traços de [+ letramento], que estão sujeitos, portanto, à pressão da tradição escolar ou, como prefere Bortoni-Ricardo (2004), da cultura de letramento.

Em suma, a análise ora empreendida revelou que as diferenças encontradas na língua falada entre as duas variedades sobre o uso dos clíticos nas funções acusativa e dativa também se manifestam na escrita: enquanto no PB esses elementos aparecem preferencialmente em eventos de letramento mas ainda em competição com outras variantes, no PE eles se mostram sempre estáveis, muito robustos e independem do grau de letramento, o que certamente constitui uma forte evidência de que a escrita do adulto brasileiro letrado não é a mesma do letrado português.

 


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERLINCK, Rosane de Andrade. “The Portuguese dative.” In: BELLE, W. & LANGENDONCK, W. (eds.) The dative: Descriptive studies, vol. 1. Amsterdam/ Phidadelphia, John Benjamins Publishing Company, 1996, p. 119-149.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.

DUARTE, M. Eugênia Lamoglia. Variação e sintaxe: clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no português do Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo, PUCSP, 1986.

FREIRE, Gilson Costa. Os clíticos de terceira pessoa e as estratégias para sua substituição na fala culta brasileira e lusitana. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ, 2000.

––––––. A realização do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa na escrita brasileira e lusitana. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.

GOMES, Christina Abreu. Embedded processes in dative alternation: a comparative study about three contemporary varieties of Portuguese. NWAV(E) 28. Toronto: Canadá, 1999. Digitado.

PAGOTTO, Emílio Gozze. “Norma e condescendência; ciência e pureza.” Comunicação apresentada no I Congresso Internacional da ABRALIN, UFBA, 1999. Digitado.

SILVEIRA, Gessilene. “A realização variável do objeto indireto (dativo) na fala de Florianópolis.” Letras de Hoje, v. 35, n.º 1, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 189-207.


 

[1] Nos exemplos das amostras, a variante focalizada aparece sempre em negrito e em itálico, com o seu antecedente sublinhado. Além disso, são identificados entre parênteses a variedade do português, o veículo, a data da publicação e o tipo de texto.