Forma móvel e terminações de palavra
na composição de indigenismos

Luiz Antônio Lindo (USP)

 

“Prezados companheiros, trabalhemos em favor da nossa América e, no que for possível, não percamos de vista os problemas de ordem geral, que também esperam nossa contribuição”. (Nascentes, 1969)

As palavras ameríndias no seu conjunto representam a última grande torrente de criação lexical vertida sobre o domínio lingüístico românico, cujas bases assentam na necessidade de refletir um encontro multifacetado de culturas relativa ou absolutamente díspares entre si. Em nenhum outro momento da história moderna das línguas espanhola e portuguesa se viu formar e irradiar um tão vasto repertório de vocábulos imprescindíveis à ordenação de um novo cosmion cultural como na primeira fase da onda amerigenista iniciada no fim do século XV. A descoberta da americanidade expressa e significada através dessa recomposição do léxico consignou uma segunda descoberta a par da geográfica. No princípio, caracterizadas na sua maioria por uma alusão à flora e à fauna, como “cacau” e “mandioca”, “tubarão” e “baiacu”, “sabiá” e “seriema”, as palavras ameríndias servem concretamente à descrição da natureza do novo continente. A isto somam-se inúmeros topônimos e gentílicos, referentes aos acidentes geográficos e aos agrupamentos aborígenes. Considerando a diversidade e extensão física do meio, a variedade dos grupos étnicos fornecedores de nomes para as coisas naturais e humanas e a multiplicidade dos assentamentos, pode-se ter uma idéia da dimensão do primeiro inventário lexical americanista, o qual se colhe em todo o seu frescor nas obras dos primeiros cronistas espanhóis e portugueses. Assim, se o enriquecimento lexical tem por base o desenvolvimento da história americana, pode-se dizer que os modos de viver representativos desta são percebidos em toda a sua intimidade e valor somente levando em conta a significação que de uma maneira ou de outra remete à história específica dos indigenismos. Formados no convívio, hoje secular, com os aborígenes, os “americanos” propriamente ditos, reunidos numa típica comunidade na diversidade, desenvolvem-se detendo a posse de uma linguagem que não se pode considerar verdadeiramente sua se nela faltar essa classe de elementos lingüísticos. Vale lembrar que essa dinâmica cultural-lingüística operou exclusivamente nos núcleos civilizadores do cosmion latino-americano, faltando no lado anglo-saxão da América as condições para a eclosão de um processo similar, tendo em vista a guerra de caráter sistemático que ali estalou entre instituições e grupos brancos, de um lado, e aborígenes, de outro.

A filologia ensina que a incorporação de vocábulos de uma língua antípoda implica a adaptação das suas formas peculiares às formas usuais da língua tomadora, sem o que provavelmente os falantes desta se “sentiriam” permanentemente incomodados por conviverem com elementos desconformes aos hábitos lingüísticos e por conseguinte aos valores culturais e ao gosto predominantes. A adaptação morfológica e fonemática dos indigenismos constitui um capítulo especial das derivações lingüísticas que têm caracterizado o enriquecimento das línguas ibéricas ao longo de sua história. Como se pode verificar, foi feito neste caso o possível para revestir os fonemas e formas aborígenes com os traços tradicionais destes idiomas. O resultado como um todo traduz a casuística morfológica e fonemática dos indigenismos. É curioso notar que em geral se trata de formas robustas, com farto preenchimento vocálico e extremidades nítidas, o que sugere os remates artesanais de rendaria ou bordadura sobre tecido. Trechos descritivos típicos de Gabriel Soares de Sousa, por exemplo, costumam suscitar empatia, em parte pelo poder pictórico exercido por certos vocábulos ameríndios que neles entram, como se o sentido por eles comunicado se fizesse acompanhar de uma representação vívida das cores locais. Essa “aparência” dos americanismos serve portanto para anunciar o afeto acerca das coisas da terra, ainda mais em textos prezados por si mesmos como os dos cronistas, em que o agrado geral é um aliado da esteticidade.

Entretanto, à parte certos traços estéticos notórios, as palavras indígenas em nada se diferenciam de outras aquisições similares havidas no passado. Para ilustrar este ponto vejamos a solução dada ao problema da terminação de vocábulos derivados das línguas indígenas, em comparação com outras línguas que forneceram vocábulos às línguas ibéricas.

Eis alguns exemplos tomados de Gabriel Soares de Sousa (Tratado Descritivo do Brasil):

Começando com a letra B: beiju, beribeba, boiubu, buri.

Com a letra C: caju, cará, Caramuru, carimã, catinga, comendá, Cotejipe, cuiepiá.

Com a letra J: jaborandi, jaracatiá, jerimu, jeticuçu, Juquirijape.

Com a letra U: ubirarema, ubirataia, uraçu, uratinga, urucurana.

Exemplos tirados de Plínio Ayrosa (Termos Tupis no Português do Brasil):

Começando com a letra G: guiurá, guirapoca.

Com a letra M: manaíba, mandioca, maranã.

Com a letra P: pará, paranã, parati, perereca, peteca, pinda, Piratininga.

Exemplos tirados de M. A. Morínigo (Las Voces Guaraníes del Diccionario Académico):

Começando com a letra S: sarandí, sariama.

Com a letra T: tacuara, tacuru, tapera, tapioca, tataré.

Exemplos tirados de Francisco Xavier Clavijero (Reglas de la Lengua Mexicana con un Vocabulario):

Começando com a letra E: ehèca, elcini, ellotica, elpantli, eticamati.

Com a letra H: hualzohua, huapalli, huehuetzca, huei.

Exemplos tirados de Manuel Alvar (Americanismos en la Historia de Bernal Díaz del Castillo):

Começando com a letra I: iguana.

Com a letra N: naboría, nagua.

Com a letra O: ocote.

Exemplos de Jesús Lara (Diccionario Qheshwa-Castellano, Castellano-Qheshwa):

Começando com a letra A: aycha, aymara, ayllinku.

Com a letra CH: chajnana, chapara, Chimu.

Exemplos como os acima podem ser multiplicados à vontade. Há um paralelo na história das mesmas línguas ibéricas em relação aos seus arabismos. Confrontem-se os exemplos de americanismos com os de arabismos relacionados por José Pedro Machado (Influência Arábica no Vocabulário Português):

Começando com a letra B: beduíno, Beja, Beirute.

Com a letra E: enxoval, escabeche.

Com a letra M: mafoma, magarefe, maluco, múmia.

Como se pode ver, os exemplos acima mostram o tratamento claramente ibero-românico para o arranjo de consoantes e vogais, sobretudo na extremidade final. No entanto, nem as línguas indígenas da América, nem o árabe são avessos a terminações “duras”, isto é, não soantes.

O árabe, por exemplo, admite todo tipo de terminação oclusiva (Gaudefroy-Demombynes; Blachère, 1952: 18 ss.).

O quéchua também admite terminações com a oclusiva [k] (Quispe Guzmán, 2002).

O tupi-guarani, desde as lições de Anchieta, embora tenda a adotar medidas de suavização da dicção e tenha, em alguns casos, cuidados especiais para com a terminação em oclusiva, não deixa de usá-la com regularidade (Anchieta, 1980: 1-2).

Especificamente na América do Sul, o tronco Macro-Jê, as famílias Karib, Aruak e as de menor presença a estas relacionadas igualmente conhecem finais em oclusivas. O mesmo vale para as famílias Tukano, Maku e Yanomami. E ainda para as chamadas línguas indígenas isoladas, sem parentesco com as demais citadas (Rodrigues, 1986: cap. 4 a 9).

O náuatle, que apresenta caracteristicamente a terminação singular tl, se inclui também na lista das línguas que acomodam as oclusivas finais (Xavier Clavijero, 1974).

Esses exemplos permitem ver como usuários integrados ao contexto social servido por uma língua específica adotam medidas racionais de estruturação lingüística, ao procederem à incorporação de vocábulos originalmente formados à revelia das tendências que presidem à adaptação. Os usuários, conscientemente ou não, ao darem curso à língua “de todos” alinham-se em parte pelos ideais dos articuladores das regras tendentes a uma sistematização rigorosa do idioma, ou seja, quando é o caso, seguem as diretrizes dadas por gramáticos normativos e técnicos lingüísticos. Por isso, para entender melhor o processo, deve-se levar em conta que uma divisão de trabalho se estabelece na elaboração e sustentação das línguas de cultura. Deve-se então considerar que, além dos planejadores da mecânica gramatical, há os práticos da língua, situados em posição relevante, tais como escritores, amanuenses e oradores, os quais, de maneira mais ou menos consciente, em geral são os principais consumidores das soluções gramaticais oferecidas pelos primeiros. Acredita-se que por meio de nexos hierarquicamente dispostos nesses moldes se tem um corpo orgânico de usuários, o qual, por incluir ainda os demais falantes e ouvintes educados continuamente para a aquisição da competência requerida na comunicação, constitui o conjunto de responsáveis agindo, isto é, falando e escrevendo, dentro dos quadros organizados da língua convencional. O que essa organização mostra é que a normatização e o usufruto da linguagem se divide de acordo com a posição ocupada de um lado pela autoridade ordenadora e, de outro, pelo usuário, na medida em que se trata, ao menos em tese, de promover a institucionalização de uma língua padrão. Os grupos em questão colocam-se afinal um em face do outro, cada qual dominando uma esfera de atuação própria, separados pelas funções lingüísticas que lhes são próprias. De maneira geral, o mais próximo da posição de usuário da linguagem situa-se no interior do processo linguageiro, mas o especialista, enquanto tal, no exterior desse mesmo processo, sobre o qual é chamado a intervir com o seu saber e ações prescritivas. Daí se vê que a linguagem não coincide com o instituto linguageiro, no sentido de que este não abriga as funções propriamente lingüísticas, mas apenas as de organização da linguagem concebida como instituto, isto é, destinada a funcionar como tal, ou, se se preferir, como língua convencional ou de comunicação. Nesse quadro, a atuação particular de cada grupo dentro do espaço que lhe é reservado em nome da salvaguarda e usufruto da língua convencional se combina para formar uma unidade identificada com o instituto. Todavia, no plano real, para o qual convergem todas as possibilidades de expressão, os usuários da língua se mostram caudatários do especialista apenas em situações específicas, por concordância às regras vigentes e para facilitar o intercâmbio de significados levado a efeito em certos atos comunicacionais tendentes a ser tornar rotineiros.

Nesse ponto, para bem entender as soluções adotadas em relação ao ductus da palavra ibérica, é preciso distinguir o que prescreve o lingüista situado no âmbito externo e o que provém da experiência interna com a linguagem. Admitir a experiência como um fato significativo na realização do ato lingüístico é atribuir ao comportamento, ou seja, à atividade de se expressar pela linguagem, no seu sentido dinâmico, em oposição ao de hábito estereotipado, a possibilidade de proceder a uma constante adaptação, de acordo com as necessidades e o gosto. Ao contrário, enxergar a linguagem estritamente como um conjunto de regras, ainda que flexibilizadas por meio de um mecanismo de retroalimentação, e ainda mais, atribuir às formas características de uma língua um sentido de fixidez tomado como paradigma ditado pela noção de sistema, constitui em última análise uma justificativa para levar adiante um programa de intervenção baseado em atos prescritivos, cuja prática condiz com a atitude do tecnocrata situado externamente à linguagem.

Em vista disso, como deveríamos tratar consistentemente o problema das terminações oclusivas repelidas pelas línguas ibéricas? Deveríamos seguir A. Meillet e responder que a morfologia delas obedece a uma tradição una, dentro da qual as divergências devem ser acomodadas (Meillet, [s.d.]: 83)? Se assim for, que tradição seguir? A do indo-europeu hipotético que via como possível a terminação em oclusivas surdas ou a do “sistema” dito românico, ambas igualmente fundantes dos fatos de língua em questão? Em relação aos supostos preceitos do primeiro, vale notar que já o grego os abandonara, embora não inteiramente o latim, que atenuava a surda em dental sonora, desde que cabível[1]. Em relação aos do segundo, que poderia haver neles de “sistemático” ou mesmo de homogêneo, quando se sabe que embora de modo geral nas línguas românicas subsista o mesmo horror vacui pela terminação consonantal que nos falantes do latim, intensificado no maior grau no italiano, seguido de perto pelo espanhol e pelo português (Lausberg, 1963, § 526-573), nos quadros do latim popular ou vulgar, arrastado talvez pelo caos produzido no interior desta espécie de maris motus linguageiro, os falantes continuavam a insistir na oclusão final?

Mas como uma tendência para atuar nas terminações das palavras ibéricas acabou marcando esta classe de línguas neolatinas? Podemos associar o fenômeno à existência de uma força que as arrastava inelutavelmente para isso? Como vimos, subsistem motivos tanto para acreditarmos no paradigma do indo-europeu, com a sua liberdade para terminar as palavras com elementos consonânticos, quanto no do patamar românico tardio, onde se repele esse tipo de terminação como estranho em espírito e corpo. Se adotássemos como válida a primeira alternativa, a recusa em adotar o costume geral das línguas indígenas de concluir as palavras com oclusivas surdas não teria uma razão de ser, pelos termos implícitos na tese. Pode-se dizer que os estudiosos veristas de línguas autóctones, ao seguirem o disposto nestas últimas, coincidem nisto com a diretiva indo-européia, independentemente de terem ou não consciência das supostas regras da protolíngua. Para eles, é natural grafar a língua autóctone com as cargas oclusivas que se fizerem necessárias para preservar a integridade do vocábulo. Neste caso, tudo não passa de uma questão de perspectiva e de fidelidade à letra indígena. Por outro lado, se adotássemos como válida a segunda alternativa, ainda dando primazia à noção de sistema lingüístico, tendo em vista a intenção de preservar a língua de chegada, seria natural fazer as devidas correções e escoimar o ductus vocabular de toda impureza. Isso já foi feito em várias ocasiões e continua sendo feito por “guardiães” da língua, entre os quais todos de alguma maneira nos incluímos. Quando se assume esse parti pris, a terminação consonântica surda acaba sendo vista como um fenômeno antinatural, para o qual se deveria buscar uma “cura”. Um indício de que se está pronto a adotar procedimentos terapêuticos é o uso de recursos que permitam resolver o “problema”, servindo nesta circunstância o já conhecido da “paragoge” saneadora.

Rafael Lapesa, ao estudar o caso clássico da apócope na língua espanhola, traz esclarecimentos que julgamos imprescindíveis para a resolução do problema que estamos tratando. Já no início do ensaio encontramos informações importantes. Eis o que ele diz: “Al leer un texto español de los siglos XII o XIII, el hispanohablante actual se siente sorprendido, entre otras cosas, por la abundancia de palabras que terminan en consonantes y grupos consonánticos no tolerados más tarde como finales: por ejemplo, prinçep, quiçab, naf, dix, noch, mill, Diac, cort, present, end, romanz. El lingüista está familiarizado con finales de este tipo, y sabe que la desaparición de ellos marca una divisoria capital en la historia de nuestro idioma.” (Lapesa, 1985) O fenômeno apontado por ele se generalizou nos séculos XII e XIII, como mostram os textos tabelionescos e literários da época, tendo cessado no século XIV. Lapesa cita as várias opiniões de especialistas que tentaram explicar as suas causas, sublinhando a que pende para a da larga influência exercida sobre o castelhano pelo provençal. Ele individualmente se inclina para uma explicação de natureza histórica, porque “el lenguaje emana de la vida total del hombre: por tanto, se nos impone la tarea de desvelar, tras cada símbolo lingüístico del pasado, los móviles y preocupaciones a que en su tiempo respondió” (Idem, p. 169.). Por essa linha de raciocínio, o processo consistiria em seguir a norma no começo, com a preservação ou inclusão paragógica da vogal final, particularmente nos séculos X e XI; em seguida, vem a fase da violação das normas, até o seu relaxamento nos casos de terminação em oclusiva surda, por influência do árabe andaluz, particularmente entre os moçárabes mais próximos desse elemento estrangeiro; para lá desse ponto, a infração segue seu curso influenciada pela convivência íntima do castelhano com os franceses e seu idioma. “Las diversas corrientes lingüísticas y demográficas que actuaban en Castilla durante el siglo XII y principios del XIII parecían conjuradas contra la subsistencia de la vocal final e y, en menor escala, de la o,”, escreve Lapesa. (Idem, p. 180) Somente quando a influência política francesa diminui, no século XIII, tem início a marcha rumo à reparação, intensificada no tempo de Alfonso X (1252-1284), quando “las formas con e final se sobreponían netamente a las apocopadas en Ávila, Toledo, Plasencia y Burgos; y las superaban también, aunque sin tanto exceso, en Andalucía, en Murcía – a pesar de los muchos reconquistadores catalanes – y hasta en la Rioja, tan fuertemente inclinada a la apócope en los decenios anteriores. El dominio de la apócope se reducía a las regiones situadas al norte de Burgos.” (Idem, p. 190) Foi pois no tempo do rei sábio que se restabeleceu a “ordem” nas extremidades do ductus de palavra espanhol. Alfonso X decide uma questão capital para o futuro do conceito de hispanidade lingüística, como lembra Lapesa, “al escoger como tipo de lenguaje literario el ‘castellano drecho’, sin apócope extrema, en vez del gusto extranjerizante que había privado hasta entonces” (Idem, p. 197). Ao ler Lapesa, nota-se claramente que o restabelecimento das terminações com vogal foi feito de caso pensado, por intelectuais preocupados em ordenar a língua. Mas não dependeu de se seguirem rigorosamente as lições da tradição, ditadas pelas “leis” do “sistema” indo-europeu ou românico, conquanto os seus propugnadores possam ter-se inspirado em alguns de seus dispositivos gramaticais construídos ao longo do tempo. Na verdade, a correção ibérica tardia das terminações, por um certo ângulo de visada, significa uma infração a certos preceitos vigentes em qualquer um dos supostos “sistemas” anteriores. Daí ser difícil afirmar que subsistem razões científicas, tais como as que são às vezes defendidas por partidários da visão sistêmica da língua, para a adoção da regra da vogal final que passou a prevalecer desde então. Nesse sentido, a intervenção dos mestres alfonsinos revelou-se uma inovação, não sem razão ocorrida na fase de afirmação ao mesmo tempo política e cultural da Península. Possivelmente, tratou-se de uma medida com muitas razões aptas a justificá-la, desde a estética, de vez que o resultado pretendido era a exposição de formas, como ocorre na natureza e na arte tantas vezes com os seus respectivos objetos naturais e artísticos; passando pela política e pela ética, por se procurar dar ao objeto lingüístico o sentido de coisa prática com valor útil universal; até a científica, consistente na intenção de apresentar um modelo seguro e eficiente de língua, capaz de durar e auto-regenerar-se daí por diante.

Esse conjunto de valores expresso numa diretriz medieval em matéria de língua, com objetivos marcadamente artístico-nacionalis-tas, continuou viva quando, no século XVI, começaram a entrar no espanhol e no português os americanismos léxicos de tão variadas origens. Basta olhar para os inúmeros exemplos espalhados pelos textos dos cronistas para ver a solução “alfonsina” ressuscitada e agindo sobre as palavras novas. Um ou outro depósito deu um trabalho extra, como o náuatle, cujos vocábulos às vezes foneticamente extravagantes para o gosto novirromânico mereceram no entanto, ao menos de alguns de seus primeiros conhecedores, uma transcrição relativamente fiel. Tal como se vê em Hernán Cortés, quando escreveu Cuahunauac (em sua segunda Carta de Relación), e em Frei Alonso de Molina: Quauhnauac (no Vocabulario en Lengua Castellana y Mexicana), para se referirem a Cuauhnáuac (de cuáhuitl “árvore” e náhuac “junto, cercado ou rodeado”), fonte do topônimo Cuernavaca, que em contraste foi grafado em estranho espanhol e péssimo mexicano (Molina, 1995-1996: 231). Um pormenor curioso nesta língua, a segunda no número e na importância dos vocábulos ameríndios fornecidos ao espanhol, diz respeito à seqüência tl, lateral africada surda muito característica e já representada nos documentos cortesianos e na Arte Para Aprender la Lengua Mexicana, do Frei Andrés de Olmos, publicada em 1547 (V. Lope Blanch, op. cit., p. 233). O pronto registro de aztequismos grafados com o ubíquo tl por autores do período mostrou-se eficaz, pois as mesmas medidas que adotaram foram seguidas daí para a frente. Cortés tem três maneiras de escrevê-lo: –tl-, -t- e -l-. Diego de Ordaz (nas Cartas) simplifica apenas em -t-. Surpreendentemente, como mostra Lope Blanch, não há equívoco nessa oscilação, pois a própria língua náuatle a autoriza, já que no seu seio se registra variação dialetal em torno do fonema.

Há outros casos difíceis enfrentados pelos espanhóis que procuravam assimilar a fonologia mexicana, como a sonorização do -k- antes da soante -n- e o tratamento do -k final, transcrito ora –que, ora –c (os conhecidos topônimos em –c ou –que). Na verdade, as disparidades fonológicas, quando requerem uma solução, sempre exigem um grande cuidado na descrição e um grande esforço na explicação, conquanto sejam resolvidas de maneira espontânea e mesmo intuitiva pelos falantes no ato comunicacional. Essa orientação pode mudar, porém, quando o problema é tratado na escrivaninha do gramático ou literato. Maurice Grammont observou a propósito, em relação à terminação em consoante, que a expertise é a principal causa da manutenção de protuberâncias na língua. “Le français, afirma ele, n’aime pas à charger la fin des mots d’éléments consonantiques. En principe les consonnes finales ne se prononcent pas dans les mots vraiment populaires et très usitès; plus un mot est savant ou rare, plus il y a de chances pour que ses consonnes finales qui ne se prononçaient pas anciennement se prononcent aujourd’hui, sous l’influence de l’orthographe et de son enseignement à outrance.” (Grammont, 1951: 93) Vistas as coisas assim, as possíveis distorções devidas à ação preceptiva seria algo que acometeria de preferência a língua erudita. Na medida em que a linguagem é uma atividade de algum modo social, admite-se que as hesitações em torno do significado ou da melhor forma a empregar em respeito à tradição ou às normas reivindicadas possam ser objeto de exame científico. Mas a ação assim orientada, como está claro, encontra um estado de coisas infinitamente móvel e caracterizado essencialmente pela criação individual, a qual rege efetivamente a língua no momento da enunciação. Em relação a este estado de coisas a intervenção estruturante não passa de um esforço por chegar ao útil, às vezes eficaz, outras vezes desvirtuado, como frisou Grammont, já que não chega a contar entre as causas decisivas. Isso está exemplificado no caso da adoção dos americanismos léxicos, cujas distorções gramaticais foram em várias ocasiões solucionadas por especialistas, por exemplo em relação às terminações, como vimos tratando. Entretanto, é curioso notar que estes nem sempre eram, num primeiro momento, originários do meio social da língua adotante, mas, como se pode imaginar, uma vez as questões colocadas, por exemplo sobre qual fosse a referência exata de certas palavras indígenas obscuras, a solução era comum e até aconselhável que viesse dos próprios índios. Deste modo, as línguas européias só puderam se aperfeiçoar em matéria de semântica faunística, florística e humana na América graças às lições tomadas em parte aos habitantes da terra. Se não fosse assim, como um pe. Anchieta poderia ter escrito a sua Gramática? Dificuldades em decidir qual seria o referente exato de certos termos e até a sua etimologia sempre chamaram a atenção de estudiosos, como Ureña, que narrou os percalços que tiveram de enfrentar os lexicógrafos amadores e profissionais em torno da definição das aparentemente singelas “batata” e “papa”, além da de outras espécies da terra[2].

Mas o fato que a não obrigatoriedade da existência de especialistas ensina, quando se trata de enfocar a estética da língua, ou seja, a criação e manutenção de vocábulos aptos à comunicação que sejam ao mesmo tempo vívidos, é que as formas não obedecem de maneira essencial nem a um conjunto de regras fonológicas e morfológicas previamente estabelecido, nem a uma tradição fixa. Conquanto o funcionamento da língua como meio de comunicação possa ser entendido em parte como dependente de um conjunto de regras sintáticas e semânticas, sem o qual não pode haver o compartilhamento da linguagem, são os elementos aparentemente desconexos, os resíduos, as interferências de toda sorte que de fato revelam a dinâmica da linguagem. O latim vulgar, o que quer que ele tenha sido, teve sobre o literário esta vantagem: manifestava cada vez mais a vida da linguagem, enquanto o outro se tornava um corpo embalsamado, o protótipo da língua-sistema, ainda que restasse impregnado de perfumes (não inteiramente morto, portanto, sobretudo para os que sabem fazer reviver os seus eternos encantos). A esse propósito, os americanismos léxicos são ingredientes novos que deram e dão vida nova à fala e à literatura da América e duma parte do mundo que com elas têm contato. A sua maneira de aguçar a nossa sensibilidade é surpreendendo-a em sua contínua atividade. E um traço notável neles é o de fazer aumentar a nossa percepção de que as línguas de certo modo são estranhas a si mesmas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Grammont, M. Traité pratique de prononciation française. Paris, 1951.

Henríquez Ureña, Pedro. In: Para la historia de los indigenismos. Buenos Aires, 1938.

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Meillet, A.; Vendryes, J. Traité de grammaire comparée des langues classiques. Paris, 1924.

Molina, Frei Alonso de. La toponimia amerindia en el habla de Hernán Cortés, de Juan M. Lope Blanch. Boletín de Filología, XXXV, 1995-1996, p. 231.

Nascentes, Antenor. Discurso proferido no II Congresso Internacional da Associação de Lingüística e Filologia da América Latina, USP, 1969

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Quispe Guzmán, E. Elementos de gramática quechua. Potosí, 2002.

Rodrigues, Aryon Dall’Igna. Línguas brasileiras para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo, 1986.

Xavier Clavijero, F. Reglas de la lengua mexicana con un vocabulario. México, 1974.


 


 

[1] Cf.. Meillet e Vendryes, 1924, § 210 (para o grego) e § 214 e 226 (para o latim). Cf. ainda Pisani, 1948: 68 ss.

[2] Cf. Ureña (1938). Este livro precioso trata em grande parte das impropriedades no emprego de termos aborígenes, geralmente pela dificuldade em estabelecer o referente exato. Nessa matéria, os aborígenes são os verdadeiros mestres.