HISTORICIDADE DA COMPLEMENTAÇÃO VERBAL
NO PORTUGUÊS DO BRASIL

Fabiandos Anjos (UERJ)

 

INTRODUÇÃO

A memória é a gaveta dos guardados, repito para sublinhar. Também é interrogação. (...) A memória pertence ao passado. É um registro. Sempre que a evocamos, se faz presente, mas permanece intocável, como um sonho. (Iberê Camargo, apud Nestrovski, 2001).

Quando pensamos na palavra memória, logo nos surgem eventos vinculados à idéia de lembrança: um episódio marcante de infância, o primeiro dia na escola, ou um pedido de casamento. Fatos que permeiam nossas mentes, as “gavetas dos guardados”, e que nos trazem em seu bojo o resgate da história de nossas vidas. Ao repetirmos o mesmo exercício – só que desta vez não escolhendo um evento, mas uma só palavra que podemos associar à “memória” – obviamente, pelo menos em um primeiro momento, pronunciaríamos termos como “lembrança”, “recordação”, “passado” e muitos outros que carreguem um sentido parecido com os das palavras-exemplo. Entretanto, é pouco provável que o termo “esquecimento” desponte em nossa mente como similar à idéia de memória. Ao contrário, o esquecimento nos parece justamente o oposto de memória.

Essa aparente brincadeira de associar eventos e palavras ao conceito mais usual de memória – faculdade de conservar e reproduzir as idéias, imagens ou conhecimentos anteriormente adquiridos –, serve-nos de âncora para a seguinte discussão: é o esquecimento, no caso de nosso estudo, que produz efeitos de sentido, que serão o ponto de partida para construirmos a nossa memória, preencher nossas gavetas. Memória, então, deve ser entendida aqui não no sentido como geralmente os falantes a concebem, mas sim como a materialidade discursiva de acontecimentos diversos, a qual pode ser ressignificada, reconstruída, apagada e, sobretudo:

(...) estendida em uma dialética da repetição e da regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer dizer tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível. (Pechêux, 1999: 52)

Os implícitos que desejamos resgatar dizem respeito às diversas paráfrases e contra-discursos suscitados acerca do conflito entre complementos e adjuntos do verbo, que foi apagado devido à opacidade que se instaurou após o advento da N.G.B. O simples fato de encontrarmos, atualmente, nas gramáticas e manuais de ensino “objetos indiretos” e “adjuntos adverbiais” descritos como termos integrantes e acessórios, respectivamente, mascara uma situação, como se sempre os estudos gramaticais tratassem dessa forma os termos referentes ao verbo. Excetuando a ambiência acadêmica, muitos alunos (e até professores!) se esquecem de que, nos bastidores das produções gramaticais do Brasil, há uma história que vem justificar as origens da complementação e da adjunção verbal e o berço de suas intermináveis análises comparativas.

O esquecimento da origem dessa questão nos motivou a embarcar nos trilhos da gramatização brasileira, nos termos de Guimarães (Guimarães, 2004), para investigarmos quais conceitos da sintaxe motivam as diversas formulações da concepção de complemento. Segundo esse autor, citando Auroux:

Por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares do nosso saber metalingüístico: a gramática e o dicionário. Este é o momento em que as gramáticas e dicionários se fazem tendo em vista a questão da língua no Brasil. (Auroux, apud Guimarães, 1994: 16)

São as gramáticas, portanto, registros da nossa história lingüística, que embasam a estruturação de uma provável historicidade da complementação verbal, para a revisão dos conceitos de complemento e da investigação da batalha entre estes e os adjuntos. Cabe ressaltar que a nossa breve incursão na produção gramatical brasileira elege o século XIX, mais precisamente a segunda metade, por ser essa a época em que o processo de gramatização é remodelado, caracterizando-se, de um lado, pela busca da autonomia lingüística do Brasil em relação a Portugal, com a influência de idéias científicas de outros países europeus (sem a exclusividade da antiga Metrópole); e, por outro lado, pela instituição escolar brasileira, com a fundação do Colégio Pedro II.

Verificaremos, então, como a produção de conhecimento sobre a língua, vinculada à produção de conhecimento escolar, influenciam na elaboração das gramáticas e, conseqüentemente, na formação do conceito de complementação.

 

Primeira época: a modernidade
e o estudo da complementação verbal

Tanto na periodização de Guimarães (Guimarães, 2004), quanto na de Nascentes (Nascentes, 1939), a Grammatica Portugueza, de Júlio Ribeiro (1881), é mencionada como marco dos estudos da língua do Brasil. E desde essa obra, percebemos que os termos preposicionados ligados ao verbo têm recebido nomenclaturas distintas e têm sido descritos sob diferentes conceitos de complemento, devido à interpretação de cada autor.

Essa enxurrada de nomes se deve às confusões que se estabelecem entre as distintas conceituações de transitividade e o conceito de regência verbal. Transitividade e regência, portanto, seriam os pilares da formação do sentido de complemento, que varia de gramática para gramática. Alguns compêndios gramaticais operam com a noção de transitividade como a propriedade de o verbo poder “transitar” da voz ativa para a passiva (nomeada por nós “transitividade 1”); outros, porém, apresentam inclinação ao conceito de transitividade (aqui, “transitividade 2”) como a propriedade de o núcleo verbal “exigir” ou não um complemento: um verbo seria intransitivo quando constatado o seu “sentido completo”, ao passo que o transitivo “pediria” um objeto, necessário à integridade da semântica verbal. Já a regência é a propriedade de o verbo “exigir” (ou não) não mais um complemento, mas sim uma preposição para encabeçar o objeto. Alguns verbos selecionariam, por exemplo, a preposição DE, em empregos como a aluna duvidou da explicação do professor; já outros “pediriam” A, em assistiu ao jogo no último sábado. Tais confusões, com as diversas conceituações em nossas gramáticas, encontram explicações nos seguintes fatores da gramatização brasileira:

·   A influência das doutrinas modernas e do método histórico-comparativo, como novos norteadores para as idéias lingüísticas no Brasil, em autonomia à descrição lusitana;

·   A criação, em 1887, do programa de português para os exames preparatórios e concursos públicos, organizados por Fausto Barreto, segundo o diretor geral da Instituição Pública, Emídio Vitório.

Podemos segmentar duas orientações dos gramáticos no tocante à questão da complementação: a de tendência libertária, defensora da inclusão do método histórico-comparativo; e a de tendência purista, de resgate à tradição clássica latina.

 

Autores de vertente libertária

Os autores dessa vertente apresentam uma distinção entre complementos e adjuntos, em decorrência do trabalho com os dois conceitos de transitividade, o que provoca divergentes interpretações nessas gramáticas brasileiras. Na Grammatica Portugueza (1881), Júlio Ribeiro, ao considerar transitivo o verbo que transita para a voz passiva, determina o termo paciente que o acompanha o seu complemento. Com essa interpretação, verificamos que apenas o que conhecemos hoje como “objeto direto” realiza a função sintática da complementação, cabendo aos demais termos ─ os atuais objeto indireto, complemento nominal, agente da passiva e os elementos circunstanciais ─ o título “adjuntos”:

A relação objetiva é a relação em que está para com um verbo de acção transitiva o objecto a que se dirige, ou sobre que se exerce essa acção nesta sentença: o cão levantou a cabeça. O substantivo está em relação objectiva para com o verbo levantou. a palavra que está em relação objectiva para com verbo chama-se objecto ou paciente desse verbo. A relação objectiva não é indicada pela preposição a: Enéias veio a turno. (Ribeiro: 1881: 226)

Apesar da inclinação ao critério clássico, operando com o primeiro conceito de transitividade, Ribeiro deixa claro que a distinção entre complementos e adjuntos tem como alicerce não só o aspecto formal, mas também o valor semântico que eles expressam nas orações que integram, constituindo relações:

Relação adverbial é a relação em que está para com um adjectivo, verbo ou advérbio, a palavra phrase ou clausula que qualifique esse adjetivo, verbo, advérbio, ou cláusula. A relação é expressa:

1) Por advérbio: Ele combateu esforçadamente.

2) Por substantivo precedido de preposição: Paulo gosta de fructas; Pedro escreve com gosto; César foi louvado por Cícero. (Ribeiro: 1881: 226)

Nos termos de Ribeiro,

Transitividade 1:

·    Complementos: OD

·   Adjuntos: tradicionais: demais termos relativos ao verbo.

Descrições diferentes nos apresentam A Grammatica Portugueza: curso superior, de 1884, essa com autoria de João Ribeiro e a Grammatica Analiptica, escrita por Maximino Maciel em 1887[1]. Segundo essas produções, o complemento é a nomenclatura propícia ao elemento que torna pleno o sentido de um verbo transitivo, de sentido incompleto. Verificamos a tendência ao critério semântico, apesar de algumas considerações diferentes de cada autor. Francisco da Silveira Bueno já adiantaria na sua Gramática Normativa, em 1957, que seria Maciel o “orientador” dos estudos científicos; de fato, verificamos que o autor da Grammatica Analítica reorganiza as obscuridades encontradas em João Ribeiro: no capítulo sobre análise lógica, adverte Ribeiro que, na relação adverbial, está incluso “um caso especial, digno de nota, a relação objetiva, que também modifica o verbo [como os adjuntos]” (Ribeiro: 1887: 382). Tal advertência viria reforçar, a afirmação que já constava no capítulo “syntaxe”, sendo os complementos identificados como “elementos secundários, dispensáveis e que nem sempre ocorrem no período.” (idem, 233). Muitas confusões terminológicas insistem em permanecer, inclusive a respeito do verbo intransitivo o qual exprime “predicação por si só completa ou com complemento indirecto: durmo; vou a Roma.” (idem, ibidem).

Se o OI[2] representa semanticamente o beneficiado ou prejudicado pela ação verbal, a expressão “a Roma” não caberia como exemplificação do conceito de “complemento indireto” e sim “circunstancial”. A exposição de João Ribeiro, ao que parece, nos oferece mais obscuridades do que esclarecimentos. Em suma, podemos esquematizá-la da seguinte forma:


 

 


 

Transitividade 2:

·    complemento: termo que complementa o sentido de um verbo transitivo e intransitivo; é dispensável e secundário – OD, OI, COMPLEMENTO ATRIBUTIVO,[3] COMPLEMENTO CIRCUNSTANCIAL (“saiu com os outros”, “desmoronou com a chuva”- p. 236). Relação objetiva (caso especial de relação adverbial).

·   adjunto: termo que modifica o verbo e o advérbio – ADJUNTO ADVERBIAL. (“Partirei amanhã”, “partirei no dia seguinte”- p. 383). Relação adverbial.

 

Autores de vertente purista

As obras de vertente purista recuperam a orientação das antigas gramáticas filosóficas, principalmente pela determinação do programa de português, elaborado por Fausto Barreto. Destacamos o trabalho de Eduardo Carlos Pereira (1907), que expõe uma releitura das contribuições de Jerônimo Soares Barbosa (1881). Como a gramática de Pereira trabalha com a mesma orientação da de Barbosa, recorremos a este último para revelarmos interessantes informações a respeito dos complementos.

Na Grammatica Philosophica da Língua Portugueza, ou principios da gramatica geral aplicados a nossa linguagem (1881), Barbosa, no capítulo destinado à sintaxe, introduz uma larga explicação sobre a “syntaxe de regência”, em que esclarece: “reger quer dizer determinar e demandar alguma coisa (...). Onde há regência necessariamente há de haver partes regentes e partes regidas.” (Barbosa, 1881: 275). A partir de então, encontramos a ênfase na terceira base do conceito de complemento – a concepção de regência. O que muda ao embasar as considerações da complementação sob este alicerce é atribuir à preposição um valor importante na junção de palavras. Ao considerar a regência, o que passamos a ter é o verbo que “pede” ou não uma preposição. Constitui, o nexo prepositivo, um fator determinante na identificação da função sintática examinada. Lembra o autor que as línguas gregas e latinas mostravam as diferentes relações sintáticas por meio do sistema de casos: “o que elles faziam pelas terminações acrescentadas nos fins do nome, fazemos nós pelas preposições.” (Idem, 276). No víeis desse raciocínio, formulamos um esquema de complementação, com base na concepção de regência, que nos assemelha ao sistema de casos da análise clássica- é a vertente purista oferecendo uma visão diferente da complementação. Segue o esquema da complementação reorganizado por nós:

 

 

 

Chamamos atenção para o fato de que não há a menção à nomenclatura “adjunto”; ademais salientemos que o complemento terminativo, compreendem somente as palavras associadas às preposições a, para, por, de, com, contra, segundo o autor, e circunstancial, abrange “qualquer palavra ou oração precedida de preposição, qualquer que esta seja, e junta a qualquer verbo ou adjetivo sem ser pedida pela sua significação.” (Idem, ibidem). Cumpre ressaltar que Barbosa, além de empregar predominantemente a noção de regência para propor uma unificação do conceito de complemento, usa também a noção de “transitividade 2”, já que o complemento corresponde a um termo que pode ser exigido ou não pela significação verbal.

Na Gramática Expositiva: curso superior (1907), Eduardo Pereira continua propor a nomenclatura única “complementos”. Apesar da tendência purista, o autor tenta inserir e reordenar algumas influências relevantes das doutrinas da época, sendo, por esse motivo, o gramático mais consultado após a elaboração do programa para o exame do português, pois revitaliza certas orientações da tradição, sem recusar as contribuições de então. Percebemos um detalhamento muito extenso em relação aos tipos de complementos, fator que contribui para o aspecto impreciso da complementação verbal nesta gramática. Apesar de pequenas diferenças entre os dois autores, verificamos que a segmentação entre complementos, sob víeis semântico insiste em prevalecer.

Barbosa, portanto, apresenta apenas uma delimitação nos grupos dos complementos, segundo o quesito semântico de “opcional” e “não-opcional”. Eduardo Carlos Pereira já oferece uma sistematização mais acurada desse ensinamento, expondo mais tipos de complementos. Embora considere que as distintas nomenclaturas “complemento”, “completivo” e “adjunto” nomeiam a mesma função sintática, explica Pereira que os dois últimos nomes já foram empregados para descrições diferenciadas:

O termo adjunto é de moderna importação, porém vai-se generalizando o seu uso; vem do particípio irregular do verbo adjungir = jungir a. Traz a idéia de palavra que se prende a outra, como os adjetivos e advérbios para modificar-lhes o sentido. É mais aplicado às funções atributivas e adverbiais. Complemento ou regime são expressões mais antigas e aplicam-se comumente ao objeto e às expressões ligadas por preposições. (Pereira, 1940: 219)

A Gramática Expositiva foi uma das mais difundidas e utilizadas por professores e alunos em decorrência de seu caráter didático, voltado para o curso ginasial, com fins exclusivos aos concursos e exames preparatórios. Nos anos que se seguem, entretanto, professores continuam a publicar obras no sentido de alcançar a uma sistematização mais adequada, que atendesse tanto aos exames quanto ao desenvolvimento dos estudos de Língua Portuguesa no Brasil.

 

Segunda época:
das produções normativas à N.G.B

As gramáticas normativas

Os anos iniciais e finais deste período são decisivos para a história da complementação verbal. Não podemos deixar de mencionar, no entanto, os últimos anos da década de 30, mais precisamente os anos de 1934 e 39, quando são implantados os primeiros cursos de Letras na USP e na Universidade do Brasil, respectivamente, estimulando uma nova visão sobre os estudos da língua do Brasil, já que esta passa a ser alvo de pesquisas, não sendo reconhecida essencialmente como a língua de uma nação. As gramáticas passam a mostrar uma certa preocupação em sistematizar as descrições e normas do português, dentre elas citamos a Gramática Normativa da Língua Portuguesa, publicada pelo professor Rocha Lima em 1957, tomada como inspiração para o estabelecimento da Nomenclatura Gramatical Brasileira, em 1959. Esta época nos permite colher informações referentes às novas funções reconhecidas dentre a categoria dos objetos indiretos, presentes nas obras anteriores à nomenclatura.

As gramáticas normativas merecem relevo nessa época, oferecendo uma descrição mais encorpada e sistemática da língua, de forma que não perdesse o caráter didático, mas que não se restringisse apenas ao público ginasial, sendo útil aos alunos e professores de cursos superiores. Rocha Lima afirma a distinção entre ADV e OI e ainda preserva, sob reordenação diferenciada da de Eduardo Pereira as segmentações dos termos preposicionados em complementos circunstanciais (antigos complementos indiretos de direção e origem); complementos relativos (antigos complementos de relação, só que sob essa nova versão, destina-se exclusivamente aos verbos); e objeto indireto (antigo complemento de atribuição). Cumpre lembrar que, apesar das distinções entre as produções normativas da época, somente foi a Gramática Normativa da Língua Portuguesa, que serviu de base à elaboração do Anteprojeto da N.G.B, por apresentar um reestudo dos fatos gramaticais de forma sistematizada e clara e substancial, atendendo a todos os níveis de ensino. A proposta de Lima, está ordenada da seguinte forma:

  

  

Diante de aspectos positivos e negativos dessa segmentação, temos a certeza de que ela constitui um divisor de águas para o estudo da complementação, já que apresentou uma reorientação dos ensinamentos das gramáticas de influência filosófica, como a de Eduardo Carlos Pereira, de forma aceitável dentro e fora dos meios acadêmico, sem desconsiderar certas contribuições modernas: 1) estabelece igualdade entre o OD e o complemento relativo; 2) estabelece segmentações semânticas entre as categorias circunstanciais, que ora podem ser complementos, ora adjuntos; 3) reafirma o poder das preposições na determinação da predicação verbal, apoiando-se no conceito de transitividade 2 e de regência para compor a noção de complemento; 4) determina a função dos complementos relativos apenas a verbos.

 

A Nomenclatura Gramatical Brasileira

Tornada oficial através de uma portaria ministerial de 28 de janeiro de 1959, a N.G.B teria a missão de solucionar o caos gerado em torno de “dar muitos nomes para a mesma coisa”. Elaborada por uma comissão composta por renomados professores, como Cândido Jucá (filho), Carlos Henrique da Rocha Lima, Celso Cunha e Clóvis Monteiro, além dos assessores José Chediack, Serafim da Silva Neto e Silvio Elia, a nomenclatura orienta as produções gramaticais até os dias de hoje. Mas a verdade é que muitos professores dificilmente têm acesso aos textos do anteprojeto ou a própria N.G.B, e os alunos praticamente as desconhecem. O não lembrado, justamente por sua característica fantasmagórica, suscita metatextos, que ora reclamam a necessidade de uma nova nomenclatura, ora interpretam a vigente, ora a criticam, ora a comentam. Se no nível médio há o quase-total apagamento da questão, em meios acadêmicos a N.G.B. nunca fôra tão lembrada. Eni Orlandi (1998), por esse motivo, menciona ser a nomenclatura mais que o produto resultante da tentativa de uma unificação, ou depositário de nomes. Constitui-se um discurso-fundador:

A N.G.B passa ser a “Gramática” e não o projeto de uma comissão seguidamente interpretado. O apagamento das referências a N.G.B nas gramáticas mais distantes a 59 evidenciam esse processo, pelo qual um objeto histórico, se torna a-histórico. (Orlandi, 1998: 103)

No âmbito da complementação, o esquecimento de um lado, conduz o público de nível médio a um conhecimento simplista da questão, a qual se resume apenas aos “macetes” para distinguir OIs de ADVs; por outro lado, vários textos sobre a N.G.B nos informam que ela atende às antigas às heranças da “análise lógica”, mas precisa acompanhar os estudos atuais, em que se verificam uma larga evolução da Pragmática, da teoria do texto e da própria Análise do Discurso. Reconhecemos que, para efeitos pedagógicos, a N.G.B teve a sua importância, como menciona Bechara, citando Hugo Schuchcrardit: “ a nomenclatura estava para o cientista, assim como o farol para o marinheiro: aplaina-lhe a estrada e o conduz ao bom porto.” (Bechara: 2001, 34). A nomenclatura, contudo, precisa de mudanças, para que ande nos mesmos trilhos da evolução dos estudos lingüísticos. Caso um aluno de nossa primeira época (século XIX – 2ª metade; século XX – primeira metade) se dispusesse a analisar e nomear o termo destacado no exemplo a seguir, encontraria as seguintes possibilidades - A professora precisa de recursos:

1) Adjunto adverbial; 2) Objeto indireto em função adverbial; 3) Complemento terminativo de relação; 4) Complemento terminativo; 5) Objeto direto; 6) Atributivo do objeto direto; 8) Complemento indireto; 9) Complemento objetivo indireto; 10) Complemento relativo; 11) Complemento preposicionado do verbo.

Nos dias de 2006, com base na nomenclatura vigente (de 1959!):

“I- Da oração.

1.  Termos integrantes da oração: a) complemento nominal; b) complemento verbal: objeto (direto e indireto); c) agente da passiva.

2.  Termos acessórios da oração: a) adjunto adnominal; b) adnominal; c) adjunto adverbial; aposto.

3.  Vocativo.” (Bechara, 2001)

Encontraríamos apenas como resposta “objeto indireto” ou então não encontraríamos resposta alguma, já que os exames atuais, concursos públicos e vestibulares tratam dessa questão em nível textual, dificilmente exigindo nomes como resposta ao candidato. De todos os trabalhos referentes às prováveis lacunas da NGB e de seu anteprojeto, como as 132 restrições ao Anteprojeto de Simplificação e Unificação da Nomenclatura Gramatical Brasileira, elaborado por Cândido Jucá (filho), não encontramos menções aos problemas que a unificação trouxe à classe “adjunto adverbial”. A respeito de complementos e adjuntos do nome, falam professores e estudiosos e até o anteprojeto expõe a relação entre nomes que “pedem” o complemento nominal e certos verbos. Em relação aos objetos indiretos e adjuntos do verbo? Um abismo de dúvidas, incertezas, esquecimentos. Por essas incongruências, que a minimalização provoca, excluindo os chamados “contra-exemplos” das gramáticas, é que defendemos tanto a união entre o que há de melhor no estudo da estrutura e as contribuições das teorias textuais, para que possamos caminhar no sentido de acabar com os esquecimentos e produzir memórias sobre essa questão.

 

CONCLUSÃO

Ao traçarmos essa breve historicidade da complementação verbal nas gramáticas anteriores à N.G.B, construímos uma memória sobre essa noção, há tempos tão diminuída, quase esquecida e limitada ao conflito ADVs x CVs. Constatamos que o conflito entre ADVs e CVs teve início com uma confusão de influências aos estudos do português: francesas, inglesas, alemãs − o resultado foi uma miscelânea de nomes, funções e descrições. O confronto apenas foi uma conseqüência histórica da evolução da gramática do português para a gramática do português do Brasil.

Essa breve viagem nos permite alcançar a conclusão parcial de que o complemento é um termo que pode ser admitido, porém não exigido pelo léxico verbal, mas que são as condições pragmáticas e textuais que motivam ou não a ocorrência destes.

Por fim, retomamos as palavras do escritor com quem introduzimos o artigo, para reafirmar a necessidade de se buscar a historicidade do saber lingüístico; mostrar que os novos caminhos se constroem com os guardados do passado, que podem incessantemente ser silenciados, renascidos e reconstruídos, somando novos guardados de saberes futuros: “Mas como os instantes se sucedem feito os tique-taques do relógio, eles vão se transformando em passado, em memória, e isso é tão inaferrável como um instante nos confins do tempo.” (Camargo, 2001)


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Jerônimo Soares. Grammatica Philosophica da Língua Portugueza ou principios da gramatica geral aplicados a nossa linguagem. 6ª ed. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1881.

BECHARA, Evanildo. “Nomenclatura Gramatical Brasileira: um necessário passo à frente”. In: Cláudio Cezar Henriques (org.), Caderno de Língua Portuguesa, Especial 40 anos de nomenclatura Gramatical Brasileira. Rio de Janeiro: UERJ – Instituto de Letras, 2001.

GUIMARÃES, Eduardo. Sinopse dos estudos do português no Brasil: a gramatização brasileira. Língua e Cidadania. Campinas, Pontes, 1994.

––––––. História da semântica: Sujeito, sentido e gramática no Brasil. Campinas: Pontes, 2004.

––––––. Sinopse dos Estudos do Português no Brasil: a Gramatização Brasileira”. In: GUIMARÃES, Eduardo & ORLANDI, Eni (orgs.), Língua e cidadania. Campinas: Pontes, 1994.

HENRIQUES, Cláudio Cezar. Nomenclatura Hoje. In: HENRIQUES, Claudio Cezar (org.), Caderno de língua portuguesa: Especial 40 anos de Nomenclatura Gramatical Brasileira. Rio de Janeiro: UERJ – Instituto de Letras, 2001.

LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1976.

NESTROVSKI, Arthur (Org.). Figuras do Brasil: 80 autores em 80 anos de Folha. São Paulo: Publifolha, 2001.

ORLANDI, Eni. Crônicas e controvérsias. In: Revista Língua e Instrumentos Lingüísticos. Campinas: Pontes, nº 1, 1998.

PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre (et al). Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999.

––––––. Gramática Descritiva do Português. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1996.

RIBEIRO, João. Grammatica Portugueza (21 ed.). Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1930.

RIBEIRO, Júlio. Grammatica Portugueza: curso superior (11 ed.). Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1913.


 

[1] Reeditada sob título Grammatica Descriptiva, em 1894.

[2] OI- objetos indiretos; ADV- adjuntos do verbo; Spreps- sintagmas preposicionados; OD prep – objetos diretos preposicionados.

[3] Atual predicativo do objeto.