Transferências em regência[1] verbal
no português como l2 e l3

Renata de Oliveira Razuk (PUC-Rio)

 

Introdução

Este trabalho se propõe a apresentar uma evolução nos estudos da doutoranda sobre regência/transitividade verbal – desde a monografia de especialização (2002), passando pelo desenvolvimento do anteprojeto para o doutorado, do projeto de tese e de estudos afins (2003-2005), até a qualificação (2006) – no contexto de ensino-aprendizagem de PLE[2] (primeiramente, voltado para o PL2-E[3] e, posteriormente, para o PL3-E[4]), tendo como corpus textos escritos por estrangeiros aprendizes do português brasileiro.

Nos primeiros estudos, são evidenciadas as dificuldades enfrentadas pelos alunos com língua materna inglesa no emprego das preposições regidas do português, especialmente devido às interferências (transferências negativas) que a primeira língua pode causar na segunda.

Entretanto, devido ao crescente número de estudantes norte-americanos que já chegam ao Brasil conhecendo o espanhol, fez-se relevante, nos estudos subseqüentes, analisar as influências não só do inglês L1 como também do espanhol L2 na aquisição do português L3 – ainda no que diz respeito à transitividade verbal e, consequentemente, às preposições inseridas na regência.

 

Os trabalhos

A monografia

O trabalho monográfico intitulado “Transferências em Regência Verbal: uma análise dos erros em preposições por tradução direta do inglês para o português” (Razuk, 2002) trata de um problema bastante comum entre os estrangeiros: o uso inapropriado da regência verbal, incluindo desvios no emprego da preposição.

A hipótese averiguada foi que o aprendiz de PLE aproveitaria sua língua materna (no caso o inglês) como língua-matriz, ou seja, base de tradução literal para a língua-meta, realizando transferências na regência; tendo sido encontrado um padrão de correspondências[5] entre preposições nas 65 redações analisadas.

Destacados os erros em regência verbal (53 no total), eles foram classificados em cinco grandes grupos:

Grupo 1: GOSTAR DE – tradução direta da regência do verbo “to like”, que não exige preposição, para o seu correspondente em português, “gostar”. Ex: “Eu gostei a viagem ao Petrópolis muito, ...”

Grupo 2: INFINITIVO – alguns verbos que pedem infinitivo são problemáticos, uma vez que os alunos tendem a eliminar a preposição. Ex: “Em 1930 começou estudar literatura e filosofia ...”

Grupo 3: PRECISAR/NECESSITAR DE – o verbo “precisar” e sua variante “necessitar” causam confusão porque são feitas traduções a partir da transitividade direta do verbo em inglês “to need”. Exs: “O homem branco precisa tres coisas pricipais ...”; “Eu necessito um dictionario para escriver esse texto.”

Grupo 4: POR x PARA – revela o raciocínio equivocado de que “for” deve ser sempre transformado em “por” e “to” em “para”.

Grupo 5: VARIADOS – Exs: “Nós decidimos entrar o edifício para dormir.” [to enter X entrar em]; “... o grau de avanço depende no país em questão ...” [to depend on X depender de]; “... podem experiençar o nascimento completo sem saindo a poltrona deles.” [to leave X sair de]; “... verei tantas imagens bonitas e sonharei da vida do Egipto antigo, ...” [to dream of X sonhar com]

Nota-se, com isso, a importância de os professores de PLE se conscientizarem sobre as dificuldades dos alunos estrangeiros em empregar a regência verbal portuguesa adequadamente e sobre os mecanismos que eles utilizam para traduzir as regras, interiorizando estruturas equivocadas da nossa língua. A partir da sistematização dos erros recorrentes, foi possível evidenciar quais são os pontos de maior complexidade para o aluno de inglês L1/LM[6], oferecendo aos profissionais da área subsídios para a melhoria do processo ensino-aprendizagem em PLE.

 

Anteprojeto, projeto e estudos afins

Durante a seleção para o programa de doutorado da PUC-Rio (2003/2004), foram oferecidas três opções de tema para a tese: aprofundar o assunto desenvolvido durante a especialização (vide A monografia); tratar das transferências que ocorreriam entre os falantes de inglês como primeira língua com conhecimento do espanhol, tendo como hipótese a de que esses aprendizes do português usariam a língua espanhola e não a inglesa como matriz de tradução em vista da sua proximidade com a língua portuguesa; e, finalmente, as interferências do inglês nos alunos de origem oriental falantes deste idioma no processo de ensino-aprendizagem do português, em que a lógica de tradução do árabe/chinês/japonês/coreano/etc. passaria pelo inglês, pela mesma razão do caso anterior; ou seja, como língua ocidental, o inglês estaria mais perto do português que a língua-materna (oriental).

Tendo sido escolhida a segunda opção, foram realizados, ao longo do primeiro ano de curso, alguns trabalhos sobre cruzamentos lingüísticos, dentre eles o “Interfaces entre a Tradução e o ensino de PL2-E: as estratégias usadas pelos alunos estrangeiros na produção de textos em português” (Razuk, 2004). Aqui, a questão-central é a relação entre os estudos da tradução – mais precisamente as teorias da linguagem aproveitadas pela tradução – e a área de ensino de português como língua estrangeira – no que diz respeito às estratégias de que os alunos se utilizam para produzir textos (escrito ou oral) em português.

O que se pressupôs (Hipótese Geral) foi o seguinte: os aprendizes lançariam mão de métodos encontrados nos processos de tradução e de adaptação de uma língua-fonte para uma língua-meta com o objetivo de transmitir as idéias de sua língua-materna para a língua-estrangeira. Em vista disso, foram elaboradas três hipóteses:

[H1] – Uma vez que o aluno de PLE supõe ser cada língua simplesmente um conjunto de relações biunívocas entre palavras e sentidos e que o uso indiscriminado dos dicionários é regido por essa mesma visão, ele optaria pela tradução do tipo palavra-por-palavra para elaborar seus textos, apoiando-se, especialmente, no dicionário bilíngüe a fim de encontrar o termo da língua estrangeira correspondente ao da sua língua materna.

[H2] – No caso de o aluno não ter acesso aos dicionários, ele usaria estratégias para contornar o problema: explicar o sentido de uma palavra/expressão ou descrever a sua situação de uso; simplesmente omitir o termo; resumir o texto imaginado; usar a palavra na sua própria língua; abrasileirar/aportuguesar; escolher uma palavra com significado semelhante; etc.

[H3] – Ao usar a tradução palavra-por-palavra, em geral com a ajuda do dicionário, e ao usar as estratégias da adaptação para expressar algo que não sabe em português, o aluno de PLE acabaria por construir uma terceira língua, situada entre a LM e a LE.

Os dados gerados a partir da análise de questionários aplicados a professores e alunos de PLE, juntamente com as redações destes alunos, sugerem que os aprendizes estrangeiros se aproveitam, sim, de artifícios semelhantes às técnicas de tradução e adaptação para poderem se comunicar no português. As três hipóteses daí derivadas também foram confirmadas, sendo que a primeira [H1] interessará mais diretamente à tese seguinte.


 

Tese em andamento (qualificação)

“Do Inglês L1 ao Português L3 passando pelo Espanhol L2: transferências em regência/transitividade verbal, com foco nas preposições” (Razuk, 2006) possui como tema-central as transferências realizadas pelos falantes de inglês como língua materna (IL1[7]) com conhecimentos de espanhol (EL2[8]) no desempenho do português (PL3[9]), tendo como enfoque lingüístico o uso da regência verbal. É nesse sentido que a tese procura dar conta do seguinte questionamento: De que maneira o espanhol, sendo a primeira língua não-nativa do falante nativo de inglês, influenciaria a aquisição de uma segunda língua não-nativa tipologicamente próxima a ela, o português, no caso específico da transitividade dos verbos?

Para responder a essa pergunta, foi realizada revisão de literatura sobre o contato entre línguas e suas conseqüências (contrastes português-inglês; contrastes português-espanhol; e contrastes inglês-espanhol) e sobre a aquisição de terceiras línguas (aspectos gerais; bilingüismo e trilingüismo; a sintaxe em L3; e a interface inglês-espanhol-português). Como fundamentação teórica, vêm sendo utilizados: o relativismo lingüístico (brando), o funcionalismo (da gramática de valências), a visão mais moderna dos gramáticos sobre regência/transitividade verbal (emanando do próprio verbo), a lingüística aplicada ao ensino de línguas estrangeiras – passando pela lingüística contrastiva, análise de erros e interlíngua e análise de transferências –, teorias sobre línguas em contato (com definições de termos relevantes ao estudo e comparação estrutural das línguas em foco) e, finalmente, os recentes conceitos sobre aquisição de terceira língua (o estado da arte e os fatores de influência interlingüística).

Até o presente momento, preencheram o questionário-filtro 366 alunos dos cursos de Português para Estrangeiros (Portuguese for Foreigners) oferecidos pela PUC-Rio, inscritos nos anos 2005 e 2006. Desse total, 42,35% (155 questionários) são de língua materna inglesa, sendo que mais da metade (62,6% ou 97 questionários) já estudou a língua espanhola, dos quais a maioria absoluta (53,6% ou 52 questionários) considera-na sua segunda língua; 13,4% (49 questionários) são de língua materna espanhola; 11,5% (42 questionários) são de língua materna francesa; e 32,75% (120 questionários) são de outras línguas maternas, variadas.

Foram criados, assim, dois grupos de controle (Grupo 1: inglês L1 e português L2; e Grupo 2: espanhol L1 e português L2) – cujos exemplos de transferência em transitividade verbal estão listados a seguir – e um grupo-meta (Grupo 3: inglês L1, espanhol L2 e português L3) – subdivido em Subgrupo C: IL1, ELE, PL3; Subgrupo B: IL1, EL2, PL3; e Subgrupo A: IL1, EL1, PL3 –, para a análise sistematizada das redações.

 

Grupo 1: inglês L1 e português L2

GOSTAR DE x TO LIKE: “Ele gosta suco, chocolate, coisas com açucar todos os dias”; “(...) antes que venha aqui porque eu gostaria organizar minha casa.”

PRECISAR/NECESSITAR DE x TO NEED: “Ela precisava ajuda e começou (...)”; “Quando eles precisam dineiro, eles fazem sem problemas.”

SAIR DE x TO LEAVE: “Nós saímos a cadeia e ela me disse que (...)”; “Você tenha suas fotos sem saindo sua casa”

ENTRAR EM x TO ENTER: “Eles ajudaram a criança entrar a cesta e (...)”; “E ele entra uma casa, falando que (...)”

OUTROS (variados): “(...) pode a pessoa sufrendo assim escapar essa depressão”; “Ele nunca desistia o sonho dele”; “Você telefone um restaurante para trazer seu janto.”  

INFINITIVOS: “(...) eu vou te ajudar procurar um outro.”; “(...) então as criances começava procurar por comida na floresta.”; “(...) e ela continuava chorar e gritar.”; “Nós preferemos para morar um grande distance”;

REFLEXIVOS: “(...) a pessoa pode ter muitos amigos e ainda sente sozinho no mundo”; “Nós abraçamos e trocamos toda nossas noticias.”; “Então, nós separamos por dois meses”; “Não importo se alguem me mentira, (...)”; “(...) onde ela decidiu nós hospedariam no Hotel Hilton de Beverly Hills, (...)”

 

Grupo 2: espanhol L1 e português L2

CD X CD PREPOSICIONADO: “Quando, eu era criança eu gostava muito de visitar a mi avô (...)”; “Ajudou aos portugueses na derrota dos tamoios”; “O autor chamava a Anchieta de sacerdote soldado porque (...)”; “(...) só queria acavar com os indios, e catequizar a todos por bem ou por mal”; “(...), mas também porque eles conseguem fazer ao leitor refletir sobre a hipocrisia das sociedades muito conservadoras.”; “(...) o menino acompanha a ele a esperar o trem.”; “Depois de varias horas localizou ao Dr. Sinval no Pronto-Socorro.”; “Finalmente a autopsia foi feita por Dra. Mintes e Laerte tentou registrar-lhe no cartório, mas (...)”; “(...), o autor apresenta a Araribóia, não especificamente como a personagem antagônica, mas sim (...)”; “(...), apresentavam preconceitos étnicos radicais, considerando aos índios como animais (...)”; “(...) se o fato de Cunhambebe ter devorado prazerozamente aos prisioneiros pode-se (...)”; “(...) que se manifestam no Samba e que junta a todo mundo, (...)”; “(...) como a falta dos bens mais básicos para o ser humano leva aos meninos à rua.”; “(...) então eles decidiram de ‘matar’ a Quincas do presente, e de (...)”

Outros:

Gostar: “Tudos gostaron-me muito”; “(...), gostava dormir muito, (agora também mas não posso!), (...)”;

Ir (futuro): “Os fims de semana as familias vam a disfrutar o ar livre e a brincar com os meninos”;

Reflexivos: “(...) que com o passar do tempo mudo-se só nas olheiras, rugas e pés de galinha que (...)”.

 

Conclusões provisórias

Com relação aos Grupos 1 e 2, observa-se que a língua materna – seja ela o inglês (Grupo 1) ou o espanhol (Grupo 2) – exerce influências no uso da regência/transitividade verbal pelos aprendizes do português como segunda língua, comprovando que o fenômeno da transferência não ocorre apenas na fonologia e no léxico – como se costuma estudar –, mas também na sintaxe.

Quanto ao Grupo 3, ainda não há elementos suficientes para a análise comparativa com os grupos anteriores, o que ficará a cargo da tese propriamente dita.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RAZUK, R. de O. Do Inglês L1 ao Português L3 passando pelo Espanhol L2: transferências em regência/transitividade verbal, com foco nas preposições. Título provisório de tese de doutoramento (projeto de qualificação aprovado em 2006) em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da PUC-Rio.

––––––. Interfaces entre a Tradução e o PL2-E: as estratégias usadas pelos alunos estrangeiros na produção de textos em português. Revista Letra Magna - Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura, ano 01, n.01, 2004. Disponível em <http://www.letramagna.cjb.net> Acesso em: 11/10/2004.

––––––. Transferências em Regência Verbal: erros recorrentes na tradução direta de preposições da língua inglesa para o português do Brasil. Monografia de especialização (“Formação de Professores de Português para Estrangeiros”) – Departamento de Letras, PUC-Rio, 2002.


 


 

[1] Regência e transitividade são palavras intercambiáveis (de mesmo significado) no contexto presente.

[2] Lê-se português como língua estrangeira.

[3] Lê-se português como segunda língua para estrangeiros.

[4] Lê-se português como terceira língua para estrangeiros.

[5] Observa-se que essa prática de transferências é bastante incentivada pelas próprias gramáticas de PLE, que, em sua maioria, usam a tradução como instrumento de ensino. Algumas delas, inclusive, adotam nos seus capítulos sobre preposição um padrão de correlações diretas entre as línguas.

[6] Lê-se primeira língua ou língua materna.

[7] Lê-se inglês como primeira língua.

[8] Lê-se espanhol como segunda língua.

[9] Lê-se português como terceira língua.