A Abóbada
o olhar idealizador e passional
sobre o tema histórico

André Luiz Alves Caldas Amora (PUC-Rio)

 

Influenciada pela Revolução Francesa, a primeira metade do século XIX foi marcada por lutas sociais, e por um desejo de transformação, resultando numa forma de retratar o mundo a partir de uma perspectiva idealizada e subjetiva. Tendo como principais temas o amor impossível, o nacionalismo, o resgate do passado, o subjetivismo, o egocentrismo, o exagero sentimental ou melodramático, o ufanismo, a solidão, o mistério e a morte, dentre outros, os autores românticos representavam a realidade a partir do sonho e da utopia. Adilson Citelli, em seu estudo sobre o Romantismo, destaca a face revolucionária do pensamento romântico:

A tendência inicial foi saudar e propagandear tais idéias, colocando-se como uma espécie de porta-voz da revolução. O canto de sereia do novo mundo, os novos valores, a possibilidade de concretizar os princípios de justiça social, a perspectiva de criação de uma sociedade mais equânime, sem as discriminações e os entraves do velho modo de produção feudal [...] (Citelli, 1986:19)

Escritor totalmente formado dentro do Romantismo, como apontam António José Saraiva Óscar Lopes, Herculano é o autor português que melhor representa o movimento romântico:

Nado e criado em plena derrocada do velho Portugal, Herculano [...] formou-se inteiramente dentro do Romantismo. É de entre as personalidades do primeiro Romantismo português aquela que, pela formação e pela audiência que alcançou junto do público, representa o movimento romântico de um modo mais inteiriço e persistente. (Saraira & Lopes, s/d: 763)

Com um projeto que pregava o regresso às raízes nacionais, e com uma obra que abarcava o conjunto da Idade Média portuguesa, Herculano resgata a herança medieval e inicia a novelística portuguesa moderna. Sua literatura de cunho histórico inicia-se com a publicação de Lendas e Narrativas, inaugurando, em Portugal, o gênero celebrizado pelo inglês Walter Scott (Ibidem: 768-769), precursor das narrativas históricas no Romantismo. Sobre a coletânea de contos de Herculano, Feliciano Ramos comenta:

As Lendas e Narrativas formaram dois volumes, que foram publicados em 1851. Acusam já a influência de Fernão Lopes, que Herculano lia e admirava profundamente, se bem que também o contestasse. A colectânea demonstra ainda carinhoso interesse pelas exigências históricas [...].

Além de conterem importantes dados para o estudo da fisionomia da Idade Média, as Lendas e Narrativas representam a tentativa de um gênero novo, a novela histórica. No prefácio da 1ª edição, Herculano reivindica essa glória, acentuando que as Lendas e Narrativas foram as primeiras tentativas do romance histórico que se fizeram na língua portuguesa. (Ramos, 1963: 597-598)

A Abóbada, conto pertencente ao livro Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, narra a história da construção do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, ou da Batalha, iniciado por D. João I na Quinta do Pinhal.

O presente estudo tem como objetivo analisar a ficção romântica em sua vertente historicista, ou seja, o olhar lançado pelo Romantismo em relação aos temas históricos. Deter-nos-emos em A Abóbada, mostrando a representação romântica não somente da construção em si, mas de fatos históricos que são retomados nas recordações dos personagens, como a Batalha de Aljubarrota[1].

O texto tem início com o narrador situando a história no tempo, marcando a preocupação com a reconstituição fiel e histórica:

O dia 6 de janeiro do ano da Redenção, 1401, tinha amanhecido puro e sem nuvens. Os campos, cobertos aqui de relva, acolá de searas, que cresciam a olhos vistos com o calor benéfico do Sol, verdejavam ao longe, ricos de futuro para o pegureiro e para o lavrador. (Herculano, s/d: 209)

Além de situar o leitor no tempo – reinado de D. João I, declarado rei, em 1385, pela Revolução de Avis –, o narrador apresenta ao leitor um ambiente bucólico e verdejante. A descrição do clima agradável do inverno português é tipicamente romântica, destacando a esperança como uma espécie de alimento da fé e da vida:

Era um destes formosíssimos dias de inverno mais gratos que os do estio, porque são de esperança, e a esperança vale mais do que a realidade; destes dias que Deus só concedeu aos paízes do Ocidente, em que os raios do Sol, que começa a subir na eclíptica, estirando-se vívidos e trêmulos por cima da terra enegrecida pela umidade, e errando por entre os troncos pardos dos arvoredos despidos pelas geadas, se assemelham a um bando de crianças, no primeiro viço da vida, a folgar e a rolar-se por cima da campa, sobre a qual há muito sussurrou o último ai de saudade, e que invadiram os musgos e abrolhos do esquecimento. (Ibidem: 209)

Logo em seguida, pode-se perceber o prenúncio da dicotomia que perpassa o conto de Herculano. O clima temperado de Portugal é apresentado como sendo melhor do que o dos países nórdicos e frios:

Era um destes dias antipáticos aos poetas ossiânico-regelo-nevoentos, que querem fazer-nos aceitar como coisa mui poética

                      Esses gelos do norte, esses brilhantes

                      Caramelos dos topes das montanhas (Ibidem: 209)

Na apresentação do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, o narrador enfatiza o modo como o lugar é conhecido pelo povo – Mosteiro da Batalha, devido à vitória dos portugueses na Batalha de Aljubarrota, em 1385 –, em vez do nome oficial, marcando uma adesão à visão popular, característica da proposta ideológica de Herculano: “No adro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, vulgarmente chamado da Batalha, fervia o povo, entrando para a nova igreja, que de mui pouco tempo servia para as solenidades religiosas”. (Ibidem: 210)

Afonso Domingues, outrora um fiel aliado de D. João I, Mestre de Avis, nas batalhas pela soberania portuguesa, é apresentado no conto de Herculano de uma forma que remete ao Velho do Restelo da epopéia camoniana. O ancião, que no poema de Camões representa a contra-ideologia e a crítica à ambição desmedida, aparece aqui sob a forma de um idoso, venerável de aspecto, e a semelhança entre ambos enfatiza a postura crítica expressa pela figura de Afonso Domingues, agora amargurado pela falta de reconhecimento. Velho e cego, tem sua capacidade ignorada, sendo mesmo afastado da construção da abóbada. Assim como o velho d’Os Lusíadas, possui experiência de vida, e a apresentação positiva do personagem que tem o saber de experiências feito coloca-o como o herói da narrativa:

Não estava, porém, inteiramente ermo o terreiro da frontaria do edifício. Assentado sobre um troço de fuste, com os pés ao sol e o resto do corpo resguardado dos seus ardentes raios pela sombra de um telheiro, a qual se começava a prolongar para o lado do oriente, via-se um velho, venerável de aspecto, que parecia embrenhado em profundas meditações. Pendia-lhe sobre o peito uma comprida barba branca: tinha na cabeça uma touca foteada, um gibão escuro vestido, e sobre ele uma capa curta ao modo antigo. A luz dos olhos tinha-lha de todo apagado a velhice; mas as suas feições revelavam que dentro daqueles membros trêmulos e enrugados morava um ânimo rico de alto imaginar. As faces do velho eram fundas, as maçãs do rosto elevadas, a fronte espaçosa e curva, e o perfil do rosto quase perpendicular. Tinha a testa enrugada, como quem vivera vida de contínuo pensar [...] (Ibidem: 211)

Afonso Domingues, criador projeto do Mosteiro, é preterido do posto de arquiteto do Mosteiro pela rainha, e em seu lugar fica um irlandês, David Ouguet. A metáfora da destruição e da descaracterização de Portugal em decorrência da influência estrangeira, em nossa visão, pode ser notada na relação Afonso Domingues / Ouguet. Devido à sua cegueira e à falta de reconhecimento por tudo o que fez pela pátria, o mestre português se auto-apresenta em tom de amargura e lamento: “Afonso Domingues é apenas uma sombra de homem, um troço de capitel partido e abandonado no pó das encruzilhadas, um velho tonto, de quem já ninguém faz caso”. (Ibidem: 214)

A ingratidão que tanto magoa o cego é intensificada pelo desprezo que manifesta em relação à tença que recebeu, mostrando que o valor monetário não paga todo o seu empenho e fidelidade ao rei. Queixa-se da falta de reconhecimento de seu mérito, num discurso marcado pela passionalidade e pela emoção:

[...] “Com sangue comprei essa honra! Comigo trago a escritura.” – Aqui mestre Afonso, puxando com a mão trêmula as atacas do gibão, abriu-o e mostrou duas largas cicatrizes no peito. – “Em Aljubarrota foi escrito o documento à ponta de lança por mão castelhana: a essa mão devo meu foro, que não ao Mestre de Avis. Já lá vão quinze anos! Então ainda estes olhos viam claro, e ainda para este braço a acha de armas era brinco. El-rei não foi ingrato, dizei vós, venerável prior, porque me concedeu uma tença!? – Que a guarde em seu tesouro; porque ainda às portas dos mosteiros e dos castelos dos nobres se reparte pão por cegos e por aleijados.

Proferindo estas palavras, o velho não pôde continuar: a voz tinha-lhe ficado presa na garganta, e dos olhos embaciados caíam-lhe pelas faces encovadas duas lágrimas como punhos. (Ibidem: 214)

O projeto do mosteiro, criado por Afonso Domingues, era considerado por ele uma obra-prima. Percebe-se a analogia da obra do cego ancião com o poema de Dante na seguinte passagem:

Pois sabei, reverendo padre – prosseguiu o arquiteto, atalhando o ímpeto erudito do prior – que este mosteiro que se ergue diante de nós era a minha Divina Comédia, o cântico da minha alma: concebi-o eu; viveu comigo largos anos, em sonhos e em vigília: cada coluna, cada mainel, cada fresta, cada arco era uma página de canção imensa; mas canção que se cumpria se escrevesse em mármore, porque só o mármore era digno dela. (Ibidem: 215)

A mágoa do arquiteto português advém do fato de ele ter sido substituído por um estrangeiro. Afonso Domingues compara a substituição feita a uma espécie de roubo da obra-prima de um poeta:

[...] Os milhares de lavores que tracei em meu desenho eram milhares de versos: e porque ceguei arrancaram-me das mãos o livro, e nas páginas em branco mandaram escrever um estrangeiro! [...] E roubaram-me o filho da minha imaginação, dando-me uma tença!... Com uma tença paga-se a glória e a imortalidade? Agradeço-vos, senhor rei, a mercê!... Sois em verdade generoso... mas o nome de mestre Ouguet enredar-se-á no meu, ou, talvez, sumirá este no brilho de sua fama mentida... (Ibidem: 215)

Pelo discurso do ancião português, percebe-se que ele não está interessado em riquezas ou em dinheiro, mas em reconhecimento e valorização dos seus feitos. Adiante, tem-se a imagem de que seria necessário ter na alma o sangue português para edificar o memorial da batalha, ou seja, era necessário pertencer ao povo português e ser nacionalista para tão grande feito:

[...] Acerca de mestre Ouguet, não serei eu quem negue suas boas manhas e ciência de edificar: mas que ponha ele por obra suas traças, e deixem-me a mim dar vulto às minhas. E demais: para entender o pensamento do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, cumpre ter vivido com a revolução que pôs no trono o Mestre de Avis; ter tumultuado com o povo defronte dos paços da adúltera; ter pelejado nos muros de Lisboa; ter vencido em Aljubarrota. Não é este edifício obra de reis, ainda que por um rei me fosse encomendado seu desenho e edificação; mas nacional, mas popular, mas da gente portuguesa, que disse: não seremos servos do estrangeiro e que provou seu dito. Mestre Ouguet, escolar na sociedade dos irmãos obreiros, trabalhou nas sés de Inglaterra, de França, e de Alemanha, e aí subiu ao grau de mestre; mas a sua alma não é aquecida à luz do amor da pátria; nem que o fosse, é para ele pátria esta terra portuguesa. (Ibidem: 216)

Mais uma vez, Afonso Domingues relembra que lutou ao lado de D. João I na revolução que o pôs no trono e que o povo português lutou junto do filho bastardo de D. Pedro I em prol de Portugal. O fato de D. João I ser de origem plebéia – por parte materna – fá-lo ser considerado um dos reis mais populares e mais atacados da Europa:

[...] De repente, toda aquela multidão se agitou, remoinhou pela igreja e principiou a borbulhar pelo portal fora, como por bico de funil o líquido deitado por alto. Tinham sabido que el-rei chegava e todos queriam vê-lo descavalgar, porque D. João I, plebeu por herança materna, nobre por ser filho de D. Pedro I, rei eleito por uma revolução e confirmado por cinquenta vitórias, era o mais popular, o mais amado e o mais atacado de todos os reis da Europa. (Ibidem: 218)

Devido à origem plebéia de D. João I, a amargura e a indagação: como o Mestre de Avis, homem do povo e eleito para não se dar Portugal ao estrangeiro acaba por preterir Afonso Domingues em prol do irlandês?

Na apresentação de David Ouguet pelo narrador, o caráter do mestre inglês é posto em xeque, pois ele é descrito como um homem mediano em quase tudo e como um bom homem. A ironia do narrador e a constante menção do comportamento duvidoso do arquiteto estrangeiro, que são utilizados para apresentá-lo ao leitor, podem ser vistas na seguinte passagem:

David Ouguet era um irlandês, homem mediano em quase tudo; em idade, em estatura, em capacidade e em gordura [...]. De resto David Ouguet era um bom homem, excelente homem: não fazia aos seus semelhantes senão o mal absolutamente indispensável ao próprio interesse: nunca matara ninguém, e pagava com pontualidade exemplar ao alfaiate e ao merceeiro. Prudente, positivo, e prático do mundo, não o havia mais: seria capaz de se empoleirar sobre o cadáver de seu pai para tocar a meta de qualquer desígnio ambicioso. (Ibidem: 220)

Logo em seguida, tem-se a resposta da indagação posta anteriormente em nosso estudo. A proteção da Rainha D. Filipa ao irlandês é desvendada, explicando, assim, o afastamento de Afonso Domingues do projeto do Mosteiro da Batalha:

[...] Tendo vindo de Portugal como um dos cavaleiros do Duque de Lencastre, procurou obter e alcançou a proteção da Rainha D. Filipa, que, havendo Afonso Domingues cegado, o fez nomear mestre das obras do Mosteiro da Batalha, mostrando ele por documentos autênticos ter na sua mocidade subido ao grau de mestre na sociedade secreta dos obreiros edificadores. (Ibidem: 220)

Digna de destaque é a onisciência do narrador, que antecipa fatos ainda não ocorridos historicamente no plano da diegese, neste caso antecipando o domínio espanhol em terras portuguesas após o desaparecimento de D. Sebastião:

Esta é, em breve resumo, a história de David Ouguet, tirada de uma velha crônica, que, em tempos antigos, esteve em Alcobaça encadernada em um volume juntamente com os traslados autênticos das Cortes de Lamego, do Juramento de Afonso Henriques sobre a aparição de Cristo, da Carta de feudo a Claraval, das histórias de Laimundo e Beroso, e de mais alguns papéis de igual veracidade e importância, que, por pirraça às nossas glórias, provavelmente os castelhanos nos levaram durante a dominação dos Filipes. (Ibidem: 220)

Ouguet modifica e deturpa a planta original feita por Afonso Domingues. O mestre irlandês, quando indagado por D. João I sobre o aviso de tal mudança ao ancião português, diminui a importância da opinião de Afonso Domingues, taxando-o de cego e orgulhoso:

[...] Cego, e por isso inabilitado para levar a cabo a edificação, porfiaria que o seu desenho se pode executar, visto que hoje ninguém o obriga a prová-lo por obras. Sobra-lhe orgulho: orgulho de imaginador engenhoso. Mas que vale isso sem a ciência, como dizia o venerável mestre Vilhelmo de Wykeham? Menos engenho e mais estudo, eis do que havemos mister. (Ibidem: 221)

O respeito de D. João I pelo arquiteto português é visto logo em seguida. Afonso Domingues não tem as credenciais de Ouguet, tendo, porém, o amor a Portugal:

Mestre Ouguet – acudiu el-rei, com aspecto severo – lembrai-vos de que Afonso Domingues é o maior arquiteto português. Não entendo de vossas distinções de ciência e de engenho: sei só que o desenho de Santa Maria da Vitória causa assombro a vossos próprios naturais, que se gabam de ter no seu país os mais afamados edifícios do mundo: e esse mestre Afonso, de quem vós falais com pouco respeito, foi o primeiro arquiteto da obra que a vosso cargo está hoje. (Ibidem: 221)

O patriotismo português, representado por Afonso Domingues, apresenta-se contrário à visão do estrangeiro Ouguet. Enquanto o velho arquiteto exalta a nação e por ela dá a vida, o irlandês julga que, se não fossem os estrangeiros, Portugal nada seria, situando o país como uma terra de selvagens e ignorantes: “Pobres ignorantes! Que seria o vosso Portugal sem estrangeiros, senão um país sáfaro e inculto? Sois vós, homens brigosos, capazes dos primores da arte, ou sequer, de entendê-los?... [...] Miseráveis selvagens [...]” (Ibidem: 222).

A soberba, característica de Ouguet, fica evidenciada quando todos pressentem o desabamento da abóbada, e ele lança impropérios e blasfema, acusando Afonso Domingues de ter culpa na tragédia:

Quem fala aqui no meu nome? – rosnou David Ouguet, com voz comprimida e sepulcral. Malvados! Querem assassinar-me?! querem arrojar sobre mim esse montão de pedras, como se eu fora um cão judeu, que merecesse ser apedrejado?! Oh meu Deus, salvai a minha alma!” – E depois de breve silêncio, em que pareceu tomar fôlego: “Não vos cheguei aí! – bradou ele. – Não vedes essas fendas, profundas como o caminho do inferno? São escuras: mas através delas, lá enxergo eu o luar! Vós não, porque vossos olhos estão cegos:... porque o vosso bom nome não se escoa por lá!... Cegos? Não vós!... mas ele! Ele é que se ri e folga em sua orgulhosa soberba! Vede como escancara aquela boca hedionda: como revolve olhos embaciados!... Maldito velho, foge diante de mim! Maldito, maldito!... Curvada, já no centro... sentia-a escaliçar e ranger... Estavas tu assentado em cima dela? Feiticeiro!... Anda, que eu bem ouço as tuas gargalhadas!... Não há um raio que te confunda?... Não! (Ibidem, 228)

Ouguet tenta disfarçar seu erro atraindo a atenção para o velho cego, culpando-o pelo fracasso de sua construção. Além de revelar um espírito colérico e injusto, seu discurso mostra crendices e hábitos típicos da época, como o apedrejamento do cão judeu – remissão à perseguição a outras religiões –, ou a acusação de feitiçaria.

O momento seguinte, o da queda do teto da abóbada, marca a virada do enredo. Ao afirmar que já sabia que a alteração da planta original acarretaria o desabamento, Afonso Domingues reforça sua capacidade profissional. Dessa forma, a injustiça cometida em relação a ele fica ainda mais flagrante:

[...] Mas venhamos ao ponto: sabeis que a abóbada do Capítulo desabou ontem à noite?

Sabia-o, senhor, antes do caso suceder.

Como isso é possível?

Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros portugueses que aí restam como ia a feitura da Casa Capitular. No desenho dela pusera eu todo o cabedal de meu fraco engenho, e este aposento era a obra-prima de minha imaginação. Por eles soube que a traça primitiva fora alterada e que a juntura das pedras era feita por modo diverso do que eu tinha apontado. (Ibidem: 235)

A fala do cego patenteia seu talento e, sobretudo, sua humildade. Somente ele poderia levar a cabo a confecção de um projeto que, de fato, só a ele pertencia. O rei, até então omisso diante da escolha feita pela rainha, assume o erro e mostra-se disposto a restituir Afonso Domingues ao seu antigo posto. Note-se a dramaticidade das palavras de D. João I, enfatizando, de forma eloqüente, a competência de seu antigo aliado:

[...] Mestre Ouguet com sua arte deixou-lhe vir ao chão a abóbada: se Afonso Domingues for capaz de a tornar a erguer e deixá-la firme, concluirei daí que vale mais o cego que o limpo de vista; e digo-vos que o restituirei ao antigo cargo, ainda que esteja, além de cego, sopo e mouco. (Ibidem: 234-235)

A cegueira do velho não constitui mais nenhum obstáculo, e há uma retratação moral em relação à injustiça cometida. Como um herói que fôra injustiçado, o cego aos poucos tem sua imagem resgatada.

Entretanto, a decisão do rei esbarra no orgulho do cego, que se recusa a retornar ao cargo. D. João I, então, apela para a consciência cívica, para o patriotismo de Domingues, na tentativa de persuadi-lo:

[...] rei dos homens do aceso imaginar, não desprezeis o rei dos melhores cavaleiros, os cavaleiros portugueses! Também vós fostes um deles; e negar-vos-eis a prosseguir na edificação desta memória, desta tradição de mármore, que há de recordar aos vindouros a história dos nossos feitos? [...] Eia, pois: se não perdoais a D. João I uma suposta afronta, perdoai-a ao Mestre de Avis, ao vosso antigo capitão, que, em nome da gente portuguesa, vos cita para o tribunal da posteridade, se recusais consagrar outra vez à pátria o vosso maravilhoso engenho, e que vos abraça, como antigo irmão nos combates, porque, certo, crê que não querereis perder na vossa velhice o nome de bom e honrado português. (Ibidem: 237)

Como o típico herói romântico, que abdica de sua individualidade e de sua vida, se necessário, para atingir seus ideais, Afonso Domingues cede ao apelo do rei, que invoca seu amor à pátria. Como se atendesse a um chamado irrecusável, ele finalmente aceita:

Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abóbada da Casa Capitular não ficará por terra. Oh meu Mosteiro da Batalha, sonho querido de quinze anos de vida entregues a cogitações, a mais formosa das tua imagens será realizada, será duradoura, como a pedra em que vou estampá-la! [...] só D. João I compreende Afonso Domingues; porque só ele compreende a valia destas duas palavras formosíssimas, palavras de anjos – Pátria e Glória. [...] Que me restituam os meus oficiais e obreiros portugueses; que português sou eu, portuguesa a minha obra! De hoje a quatro meses podeis voltar aqui senhor rei, e ou eu morrerei ou a Casa Capitular da batalha estará firme, como é firme a minha crença na imortalidade e na glória. (Ibidem: 238)

Domingues não apenas assume o compromisso de edificar a abóbada, como marca o tempo necessário à execução da obra. Além de deixar que seu espírito patriótico se sobreponha a qualquer mágoa pessoal, demonstra, por meio de suas palavras, a solenidade da situação, fazendo um dramático voto:

Senhor rei, é chegado o momento de vos declarar meu segundo voto. Pelo corpo e sangue do Redentor jurei que, assentado sobre a dura pedra, debaixo do fecho da abóbada, estaria sem comer nem beber durante três dias, desde o instante em que se tirassem os simples. De cumprir meu voto ninguém poderá mover-me. Se essa abóbada desabar, sepultar-me-á em duas ruínas: nem eu quisera encetar, depois de velho, uma vida desonrada e vergonhosa. Esta é a minha firme resolução. (Ibidem: 245)

A crença do cego em sua planta é tanta que ele chega mesmo a jurar não sair dali, ainda que isso pudesse constituir um risco à sua vida. Em outra marca do herói romântico, prefere sacrificar a própria vida a banalizar aquilo que considera sua grande obra. A resolução irrevogável do arquiteto é marcada ainda por um profundo altruísmo, quando ele sugere que Ouguet fique em seu lugar, caso ele venha a morrer na empreitada. Em sua nobreza de caráter, não se deixa corromper por vaidades pessoais:

Esperai, esperai! – bradou el-rei. – Estais louco, dom cavaleiro? Quem, se vós morrerdes, continuará esta fábrica, tão formosa filha de vosso engenho?

Mestre Ouguet – tornou o cego, parando. – Não sou tão vil que negue seu saber e habilidade. Se a abóbada desabar segunda vez, ninguém no mundo é capaz de a fechar com uma só volta, e para a firmar sobre uma coluna erguida ao centro, mestre Ouguet o fará. Quanto ao resto do edifício, fazei, senhor rei, que se prossiga meu desenho: é o que ora vos peço tão-somente. (Ibidem: 245)

Após três dias, assentado sobre a pedra fria (Ibidem, p. 247), no interior de sua Divina Comédia, em uma espécie de vígilia, Afonso Domingues morre. Pode-se dizer que o arquiteto português sacrificou sua vida pela abóbada – e, consequentemente, por Portugal –, tendo como suas últimas palavras, a afirmativa de que a abóbada não cairia:

Morto! – bradaram a uma voz el-rei e Frei Lourenço, e correram para o cadáver do arquiteto, olhando, todavia, primeiro para a abóbada com um gesto de receio.

Nada temais, senhores – disse Martim Vasques. – As últimas palavras do mestre foram estas: - a abóbada não caiu... a abóbada não cairá! (Ibidem: 245)

No desfecho do conto, tem-se a valorização dos feitos realizados pelo arquiteto português. Além da homenagem feita por D. João I àquele que lutou por Portugal junto do Mestre de Avis e que expirou em nome da terra lusitana, há o reconhecimento, por parte de Ouguet, da supremacia do arquiteto português:

Mestre Ouguet, pelo que o cego dissera a el-rei acerca da sua capacidade para o substituir, e porque, enfim, era estrangeiro, foi logo restituído ao cargo que ocupara, e quando nos serões do mosteiro, alguém fala nos méritos de Afonso Domingues e na sua desastrada morte, cortava o irlandês a conversação, dizendo com riso amarelo:

Olhem que foi forte perda! (Ibidem: 247)

Digna de destaque é a crítica do narrador à influência estrangeira em Portugal. Mesmo depois de todo o acontecido, o irlandês é imediatamente reintegrado ao seu antigo posto, e o uso da conjunção conclusiva enfim destaca o fato de isso ter ocorrido principalmente por ser ele estrangeiro.

Como visto no texto estudado, percebe-se na ficção herculaniana uma vertente historicista, mostrando a representação de fatos históricos retomados de forma idealizada e sentimental, evidenciando o nacionalismo característico da estética romântica.

 


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CITELLI, Adilson. Romantismo. São Paulo: Ática, 1986.

HERCULANO, Alexandre. Histórias heróicas. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.

RAMOS, Feliciano. História da literatura portuguesa. Braga: Livraria Cruz-Braga, 1963.

SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora, s/d.


 


 

[1] Batalha travada contra Castela, devido a problemas de sucessão do reino português. Após a morte de D. Fernando, em 1383, D. Beatriz, filha do rei morto e de Leonor Teles, casada com D. João I, rei de Castela, seria a sucessora do trono. Porém, tal sucessão representaria o domínio castelhano em Portugal. Apoiado pelo povo português, D. João, Mestre de Avis, filho bastardo de D. Pedro I, sobe ao trono, em 1385, inaugurando a Dinastia de Avis.