A cartografia mítica de Yoknapatawpha

Leonardo Vieira de Almeida (UERJ)

 

Absalão, Absalão, romance de William Faulkner publicado em 1936, se constitui, nas letras norte-americanas, como um dos mais profundos estudos sobre a tragédia do homem contemporâneo. Na saga de Thomas Sutpen, Faulkner procura desvendar, por meio de um resgate de suas raízes profundas, a origem do mal que atravessa quatro gerações de uma mesma família. Ao tratar desta questão, o escritor americano concebe um microcosmo do mundo que representa, em si mesmo, toda a problemática moderna. O condado de Yoknapatawpha, localizado na cidade imaginária de Jefferson (“Oxford”), no sul dos Estados Unidos, se torna o núcleo vital e espaço literário onde se congregam diversas fontes míticas universais.

Este método de ficção, cujo modelo pode ser encontrado na obra de James Joyce, desenvolvido inicialmente em Dublinenses e desabrochando em Ulisses, foi o que levou T. S. Eliot, em importante ensaio sobre o escritor irlandês, a considerar como o “método mítico”. Tal método pressupõe a existência de dois planos na construção do romance: um “plano de superfície”, em que são apresentados os pormenores “realistas” da narrativa; e o “plano mítico”, em que os acontecimentos e as personagens possuem estreita ligação com acontecimentos e personagens do mito (Collins, 1966: 220-221). No caso de Ulisses, Joyce reporta os leitores ao universo da Odisséia, de Homero, retratando um dia em Dublin.

Como em Ulisses, não há nenhuma personagem que, no romance de Faulkner, remeta-nos explicitamente ao seu título. Em verdade, o “plano mítico” de Absalão, Absalão encontra-se principalmente ligado ao Segundo Livro de Samuel, da Bíblia. Nele se descreve a tragédia do Rei Davi e seu filho Amnon, que nutre uma paixão incestuosa pela irmã Tamar. É Absalão, também filho de Davi, que vinga a desonra de Tamar, estuprada por Amnon, mandando assassinar o irmão. No relato bíblico, a origem desta tragédia que se abate sobre o rei de Israel e Judá encontra sua origem no adultério de Betsabéia, mulher do hitita Urias. O assassinato deste último, a mando de Davi, acende a cólera divina. Pela boca do sábio Natã, Deus amaldiçoa Davi pela morte de Urias, dizendo que a espada jamais se afastará de sua casa. Seu filho com Betsabéia morre logo depois de nascer. Posteriormente, o castigo de Deus envolve a família de Davi nos crimes de incesto e fratricídio.

Inserindo o substrato bíblico no contexto dos Estados Unidos do século XIX e início do século XX, Faulkner revitaliza a história do rei Davi por meio de Thomas Sutpen e seus descendentes. Porém, no caso de Absalão, Absalão, a estrutura narrativa não comporta um narrador onisciente na totalidade do romance. O autor reserva para si mesmo um papel mínimo. Utilizando múltiplos focos narrativos, Faulkner, na verdade, escreve duas estórias: a tragédia de Sutpen e o efeito que ela provoca na vida dos narradores. Nesse sentido, a falta de certezas sobre o herói provoca a apreensão diversificada de uma das questões nucleares do romance: onde se pode procurar, de fato, a origem do mal que persegue todos os personagens.

Em apoio a esse problema, faz-se importante notar que o dado que mais salienta o caráter de Sutpen, como escreve o pai de Quentin Compson numa carta, é sua “inocência”. Num quarto em Havard, que divide com o amigo Shreve Mccannon, em 1910, Quentin urde sua versão da história entremeando a leitura da carta do pai com trechos de uma conversa de seu avô com Sutpen. Os Sutpens, antigos montanheses vivendo numa comunidade livre (área que corresponderia futuramente ao oeste do estado de Virginia), espécie de idílio agrário isento do instinto de propriedade, mudam-se para uma região dominada pelos senhores de terra e seus escravos. Para o jovem Sutpen, que na época possuía entre doze a quatorze anos, a visão de um escravo negro, na porta de uma casa-grande, torna-se a obsessão que o persegue por longos anos. De fato, o negro o expulsa da propriedade, alegando que a um rapaz como ele deveria ser reservada a porta dos fundos de qualquer fazenda. Será a partir desse acontecimento que Sutpen irá conquistar uma “inocente” interpretação do mundo: para ser um homem, um “senhor”, seria necessário subjugar a terra, seus negros e brancos domesticados.

Se no relato bíblico a origem do mal do rei Davi se encontra no pecado da concupiscência e também no poder (infringindo Deus com o assassinato de Urias), em Absalão, Absalão, fatalidade e “inocência” parecem dar-se as mãos. No entanto, esse último dado é o que move o relato de Quentin. No caso de Rosa Coldfield, cuja voz abre o romance, Thomas Sutpen é denominado, inúmeras vezes, como o “demônio”. O ressentimento que Rosa nutre por Sutpen, mesmo passados quase quarenta anos de sua morte, se estampa nas imagens infernais que acompanham seu encontro com Quentin Compson, no ano de 1909:

De repente, como um raio, ele se precipitava (homem-cavalo-demônio) sobre uma decente e pacata paisagem de aquarela acadêmica, trazendo ainda o odor de enxofre nos cabelos, roupas e barba, com o bando de negros selvagens agrupados atrás dele, como bestas semi-adestradas para andar eretas como homens, em atitudes ora selvagens, ora controladas, e entre eles, algemado, o arquiteto francês, de ar sombrio, desfigurado e andrajoso. (Faulkner, s. d.: 6)

O choque entre as primeiras impressões da infância de Sutpen, marcada pela inocência nas montanhas, e o mundo dos fazendeiros e seus escravos, acabou por pintá-lo com as tintas de um deus infernal. Rosa Coldfield, dirigindo-se a Quentin, se pergunta: “Que crime teria sido cometido para tornar a nossa família condenada a ser instrumento não apenas da destruição daquele homem, mas da nossa própria?” (Faulkner, s. d.: 17) O miasma que terminou por unir os Sutpen e os Coldfield se volta para aquele quadro da juventude do herói faulkneriano: o rapaz negro impedindo seu ingresso à casa-grande, revelador não só de sua tragédia particular, mas, numa escala macroscópica, do destino do homem americano e universal.

Esse destino assentou seus pilares, no caso dos Estados Unidos, sob o primado da intolerância religiosa, da ética puritana dos chamados “escolhidos de Deus”, que defendiam a superioridade da raça e da cor. Sendo divulgada, nos inícios da colonização inglesa, por meio dos sermões, o discurso religioso, aferrado à tradição teocrática, pôde começar a ser criticado mediante a apropriação ficcional. Para a mentalidade puritana, a escravidão negra era considerada um dos mais importantes veículos para a salvação dos degradados da África, considerados, por muitos pastores anglo-saxões, como filhos do Diabo. O fim da escravidão nos Estados Unidos só se tornou possível após a Guerra de Secessão (1861-1865), em que os estados do norte, defensores do mercado interno e da lavoura, venceram os estados do sul, que mantinham a prática do escravismo e da monocultura. A derrota final em Appomattox (1865) acarretou o declínio do Old South, cujas plantações foram confiscadas e muitos negros emancipados fugiram. É o início do progressivo declínio da aristocracia sulista, e de um mais acirrado racismo negro, com o surgimento de sociedades secretas, tais como a dos Cavaleiros da Camélia Branca e a Ku-Klux-Klan (Gomes, 1994: 25-45).

É nessa realidade histórica que Faulkner desenvolve grande parte de seus romances. Sobre o mapa do Sul decadente, o autor desenha uma “geografia intertextual”. O “Yoknapatawpha County” é não só o palco onde se encena o mito da jornada do homem norte-americano, nele se torna possível rastrear as referências literárias que compõem o “plano mítico”. No caso de Absalão, Absalão, se a referência implícita mais direta encontra-se na tragédia do rei Davi, pode-se verificar a presença de diversas outras fontes. Nas vozes de Rosa Coldfield, Quentin Compson e seu pai, Shreve e o próprio Thomas Sutpen, se processa, como num trabalho de investigação, o delineamento da hýbris de um herói. A desmedida que leva à queda de Sutpen parece ser alimentada por seu desejo de domar a terra que, em sua infância, o havia humilhado. Nas palavras de Shreve, Sutpen seria uma encarnação de Fausto, que surgira em Yoknapatawpha para construir seu império agrário:

– Esse Fausto, esse demônio, esse Belzebu fugido, ocultando-se do raio condenador e do rosto ultrajado e exasperado do seu Credor, cuja paciência se esgotara, escondendo-se, correndo para ganhar uma respeitabilidade como um chacal corre para dentro das rochas, como ela pensara no início, até perceber que ele não estava se escondendo nem queria se esconder, estava apenas comprometido com o seu último delírio de demônio a espalhar o mal, antes que o Credor o alcançasse para todo o sempre. (Faulkner, s. d.: 155-156)

Relacionar Thomas Sutpen com o mito de Fausto é pertinente para uma análise do romance de William Faulkner. No entanto, se o desejo fáustico de totalidade, levando-se em conta o herói de Goethe, envolve tanto a utopia amorosa quanto a realização de um projeto sócio-econômico burguês, em relação à personagem do escritor norte-americano, há que se atentar para determinada questão. Na figura do herói germânico convergem duas faces do mito: um “Fausto sonhador”, cuja utopia é a busca do “eterno feminino”, representado nas figuras de Gretchen e Helena de Tróia; e um “Fausto fomentador”, que na segunda parte da obra goetheana empreende, com o auxílio de Mefistófeles, a construção de seu sonho burguês. Thomas Sutpen, por seu lado, não procura o “eterno feminino”. Seu casamento com Ellen, irmã de Rosa Coldfield, dá-se apenas como uma forma de consolidar definitivamente seu domínio rural: a Vila Sutpen. No início do romance, Rosa alerta Quentin sobre um dos motivos da cólera que se abateu sobre os Sutpens e Coldfields, a capacidade de Thomas ter gerado “filhos sem amor”.

O credor desse “Fausto” ou “Belzebu fugido”, como diz Shreve, pode ser buscado não só na adolescência de Sutpen, quando ele é desprezado pelo jovem negro na porta de uma casa-grande, mas na sua fuga para as Antilhas. O relato nebuloso dessa época, contado ao General Compson por Sutpen, revela seu casamento com Eulalia Bon, no Haiti, que lhe gerou um filho, Charles Bon. Ao descobrir que Eulalia e Charles possuem sangue negro, Sutpen decide abandoná-los, já que, no seu entender, eles não poderiam fazer parte de seu “projeto” fáustico, alicerçado unicamente no desejo de posse. É nas Antilhas que o jovem Thomas exerce seus anos de aprendizado, tornando-se fazendeiro e dono de escravos, até surgir finalmente em Yoknapatawpha, comprar as terras do chefe índio Ikkemotube e construir seu império.

Do casamento com Ellen Coldfield, nascem Henry e Judith. Além deles, Sutpen passa a abrigar em sua casa a filha bastarda Clytemnestra, nascida de uma escrava negra. Clytie, como é chamada, assume o lugar de serviçal dos Sutpens. Quando Rosa Coldfield, alguns anos depois, se dirige para a Vila Sutpen, ao ser informada do crime de Henry, é o rosto de Clytie que guarda a entrada, um rosto sem nada dos Coldfields, como reflete Rosa, muito mais próximo da nódoa secular que paira sobre Thomas: “Era um rosto Sutpen, mas não o dele. Um rosto cor de café, todo Sutpen, na luz mortiça, barrando a escada” (Faulkner, s. d.: 114). Rosa também compara o rosto de Clytie ao “frio Cérbero do seu inferno particular”. Parece ser essa a herança que Supten procura, ao longo dos anos, rechaçar de todas as formas: a mancha trágica que contamina o herói não deixa de ser a do sangue negro.

Charles Bon, já adulto, irá encontrar Henry na Universidade do Mississipi. Segundo a interpretação de Shreve, haveria dúvidas quanto ao fato de Charles saber ou não que Sutpen era seu pai. No entanto, Quentin se lembra de uma conversa, numa véspera de Natal, entre Henry e Thomas, em que é provável que este último houvesse contado ao filho que Charles Bon era seu meio-irmão. Charles havia se apaixonado por Judith. Henry passa a alimentar essa relação com força cada vez maior. Mesmo sabendo que seu meio-irmão iria cometer adultério ao se casar com Judith, pois já possuía uma amante e um filho (Charles Etienne Saint-Valery Bon), nada o impede de prosseguir em seu intuito. Depois que Charles e Henry retornam da Guerra de Secessão, onde serviram como cadetes, é que Judith decide aceitar o casamento. Henry, talvez acossado pelas palavras do pai, termina por assassinar Charles Bon, na tentativa de salvar o código moral dos Sutpens.

O paralelo com o Segundo Livro de Samuel encontra-se delineado. Thomas Sutpen (Davi), ao desafiar a medida, cego pelo instinto de propriedade que converte os indivíduos em veículos para se chegar a um fim, em meras cifras, transmite seu pecado para os descendentes. O miasma negro volta na figura de Charles Bon (Amnon) que ao conspurcar a meia-irmã (Tamar) provoca a ira de Henry (Absalão). No entanto, o rei caído Sutpen procurará reerguer os despojos de sua terra e de sua família. Com a morte de Ellen Coldfield, Rosa, atendendo ao pedido da irmã, de salvar Judith, passa a viver sob o mesmo teto de Thomas. Movido pelo desejo de ter um herdeiro varão, Sutpen propõe à Rosa Coldfield que eles concebam um filho. A licenciosidade do cunhado fere profundamente a educação puritana de Rosa, que abandona a Vila Sutpen e passa a viver em luto eterno, “que usava há quarenta e três anos” (Faulkner, s. d.: 5).

Sob esse aspecto, Sutpen pode ser visto como um racionalista e positivista, um Fausto fomentador cujo caminho é traçado pelo cálculo e pela recusa à miscigenação. Assim, não é sem propósito que Hyatt Waggoner, em seu artigo “Past as Present: Absalom, Absalom!”, aproxime a tragédia de Thomas Sutpen a de Ahab (Waggoner, 1966: 183). Tanto como o herói de Faulkner, a personagem de Melville reduz sua existência à tarefa de conter as forças irracionais representadas por Moby Dick. Sua vingança contra o animal marinho salienta o aspecto irremediável de sua queda: aos olhos de Starbuck, sub-capitão do Pequod, o gesto de Ahab não passaria de blasfêmia. Nesse sentido, a jornada do herói de Melville, assim como a de Thomas Sutpen, teria correlação com o trágico que permeia as histórias dos grandes patriarcas bíblicos: Jonas, Jó, Davi, que acendem a cólera divina ao ultrapassarem a medida. Ambos dirigem suas súplicas ou protestos a um Deus inapreensível. Do mesmo modo, Ahab lança seu rogo contra a baleia branca, que sempre se apresenta como um espectro indistinto. Bem como Sutpen dirige sua cólera para o fantasma do sangue negro.

Desse modo, observa-se que o trágico que envolve a “geografia mitológica” do romance de Faulkner encontra uma de suas principais referências no relato bíblico. Sob esse ponto de vista, é importante perceber que Erich Auerbach, ao examinar as fontes primitivas que fundamentaram a representação da realidade na Literatura Ocidental, em seu livro Mimesis, aponta para o fato de que as histórias bíblicas apresentam como característica marcante um conteúdo enigmático e carregado de segundos planos. Auerbach contrapõe a épica de Homero e o Velho Testamento, salientando, no primeiro caso, a presença de textos “uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem interstícios, num primeiro plano; pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos que se desenvolvem com muito vagar e pouca tensão”. No segundo caso, o crítico demonstra que “tempo e espaço são indefinidos e precisam de interpretação; os pensamentos e os sentimentos permanecem inexpressos: só são sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários” (Auerbach, 2002: 9). Se por um lado a épica homérica se alicerça no lendário, o Velho Testamento assesta suas bases no histórico. Auerbach se refere à questão de que os livros de Samuel conciliam o contraditório e o entrelaçamento dos motivos nos indivíduos e na trama total. Na história do Rei Davi e seu filho Absalão, há o relato histórico que faltaria totalmente nas poesias homéricas. São esses dois estilos que “exerceram sua influência constitutiva sobre a representação européia da realidade” (Auerbach, 2002: 20), segundo o crítico.

De fato, o diálogo de William Faulkner com o Velho Testamento e os Evangelhos caracteriza grande parte de sua obra. No entanto, ao estabelecer o intertexto com as fontes bíblicas, o escritor opera um efeito em grande parte irônico. Tomando como exemplo o romance Luz em Agosto (1932), que tem como personagens principais o pastor Gail Hightower e o negociante de bebidas clandestino Joe Christmas, identifica-se o modo como Faulkner “reinterpreta” a Paixão de Cristo. O conflito de Christmas (“Jesus”) se baseia na circunstância dele acreditar ter sangue negro. Seu linchamento (“crucificação”) pelos habitantes de Yoknapatawpha leva o pastor Hightower a refletir sobre o espírito da retidão puritana que pesa sobre “os filhos de Deus”. Gail sonha com uma comunidade cristã livre, não oprimida pelas instituições eclesiásticas. Sua denúncia maior é contra uma leitura distorcida dos livros sagrados, que acabou por desembocar no fanatismo religioso e no racismo. Christmas, o Cristo de Faulkner, também apresenta caracteres demoníacos. Seu sacrifício, ao contrário do Novo Testamento, não levará à salvação, mas a uma consciência mais acirrada da permanência do mal.

Em Luz em Agosto, nas palavras de Assis Brasil, Faulkner consegue “uma autonomia narrativa surpreendente, surgindo este romance, como uma Bíblia menor, uma Odisséia – é o registro, a saga, o mito, que serão lembrados e relembrados através de muitas gerações” (Brasil, 1992: 168). Se retomarmos a questão levantada por Auerbach, dos estilos épico e bíblico como referências essenciais para a representação da realidade literária, no caso européia, podemos associá-la ao projeto estético desenvolvido por Faulkner (um escritor da América) de uma “cartografia mítica”. Em Absalão, Absalão, há tanto uma releitura de episódio do Velho Testamento quanto de uma épica, pois a jornada de Thomas Sutpen ensaia também o mito de formação não só do sul dos Estados Unidos como do mundo contemporâneo, marcado pela alienação de seus indivíduos, decorrente de uma tragédia da cultura. Porém, ao contrário do Rei Davi, que ao final do Segundo livro de Samuel se arrepende de seus pecados e ergue um altar a Deus, recebendo o perdão para si e para Israel, Sutpen, cego por sua “inocência”, não consegue purgar seu passado Ele procura, ao contrário, reencenar aquele episódio de sua juventude: o momento em que o rapaz negro o expulsa da porta da casa-grande. Logrado em seu desejo de conceber um filho varão com Rosa Coldfield, seduz a filha de seu empregado, Wash Jones, causando sua gravidez. O que leva Wash ao assassínio do patrão é o fato de Sutpen, uma vez mais, comparar o indivíduo a uma cifra, a um meio mais rápido para sua sede de domínio. O instinto de propriedade o leva a reduzir Milly Jones a condição de um mero animal: “ ‘Bem, Milly. Que pena que você não seja uma égua também! Porque assim eu podia lhe dar um bom lugar no estábulo...’ ” (Faulkner, s. d.: 249)

O assassinato de Sutpen, por sua vez, não impede a marcha da tragédia que se abate sobre sua família. Aliás, Rosa Coldfield, em seus longos anos de luto, parece concluir que Sutpen se tornou ainda mais forte após sua morte, como se seu espectro pairasse sobre a casa onde tem a conversa com Quentin Compson, em 1909. Este último, na sua estadia em Havard, recebe do pai uma carta informando da morte de Rosa. É importante o modo como Shreve se dirige a Compson, perguntando-lhe: “- Você quer dizer que ela não era realmente sua parente, não era mesmo parente, que realmente existiu uma Bayard ou Sul, ou uma Guinevere, que nem mesmo era sua parente?” (Faulkner, s. d.: 152) Ao estabelecer uma analogia entre Rosa Coldfield e rainha do mito arturiano, Faulkner, pela voz de Shreve Maccanon, se apropria de mais uma referência intertextual em seu romance. Nos últimos romances do ciclo do Rei Artur, sua esposa, Guinevere, comete adultério com Lancelote, o que contribui para a queda da Távola Redonda. Em Absalão, Absalão, Lancelote corresponderia a Charles Bon, por quem Rosa Coldfield, em longos anos de silêncio, nutre um amor inconfessado, apesar de nunca tê-lo conhecido. Com efeito, Charles, manchado pelo sangue negro, é uns dos motivos da dissolução dos Sutpens e Coldfields, sendo assassinado pelo meio-irmão. Ao final do romance, pela voz de Shreve, ficamos sabendo que Henry ainda vive no solar abandonado dos Sutpens, sob a guarda de Clytie. Rosa Coldfield, acompanhada por Quentin Compson, chega à Vila Sutpen apenas a tempo de presenciar o incêndio que consome os filhos de Thomas. Resta o grito de Jim Bond, neto de Charles, último remanescente do sangue negro que Sutpen procurou, de todos os modos, repudiar.

Davi, Absalão, Fausto, Cristo, Guinevere, Lancelote, todas estas personagens convergem na cartografia imaginária de Yoknapatawpha. Ao configurar o “método mítico”, Faulkner estabelece uma complexa rede de referências que, por seu lado, exige do leitor um exaustivo procedimento arqueológico de decifração das camadas intertextuais. Tal fato admite uma ambigüidade do enredo. Porém, o escritor norte-americano transfere essa mesma problematicidade para a “forma romance”. Reconhece-se, do mesmo modo, uma ambigüidade da linguagem e, por sua vez, sua insuficiência. Edmond L. Volpe, ao se deter sobre o romance de Faulkner, refere-se à sua técnica narrativa:

Such differences in the language and tone of the narrators does not appreciably detract from the singular sound pattern of the novel, wich is created by loose, long sentences, with qualifying phrases added to qualifying phrases, clauses attached to clauses. This kind of cumulative sentence structure creates the effect of thought-flow, the mind ranging free, working over a fact, speculating about it, rejecting one possibility, considering another, rushing ahead more quickly than words can be uttered. (Volpe, 1969: 190)

Ao recorrer ao método de uma “insuficiência das palavras”, portanto, de uma impossibilidade de tudo dizer, que passa a ser suprida por uma cadeia de interstícios dispostos entre os fatos, William Faulkner alcança a ambigüidade não só do conteúdo, mas da forma. É na ambigüidade que, justamente, se encontra a fonte primeva do mito. Ernest Cassirer diz que no pensamento mítico, a “ ‘imagem’ não representa [darstelt] a ‘coisa’ – ela é a coisa; ela não é apenas sua suplente, mas sim age como ela, de forma que a substitui em seu presente imediato” (Cassirer, 2004: 178). Demonstrando que a metáfora é um vínculo intelectual entre a linguagem e o mito, Cassirer alude a uma transformação do sujeito da ação mítica: “Em toda ação mítica há um momento no qual se leva a termo uma verdadeira transubstanciação – uma metamorfose do sujeito dessa ação no deus ou demônio que ele representa” (Cassirer, 2004: 178). O que o filósofo alemão aponta é que esse vínculo mito/metáfora acaba por conferir às palavras uma espécie de arquipotência. Desse modo, a metáfora faulkneariana, que se expressa por meio de uma sintaxe fragmentada e em desordem, se aproximaria do empreendimento primitivo de uma nomeação primeira. O mito da família Sutpen corresponderia também ao mito de uma cosmovisão, mediante o gesto divino de comunicar vida às coisas. A fundação da Vila Sutpen não deixa de ser a fundação do mundo: “Faça-se a Vila Sutpen, como no bíblico Faça-se a luz” (Faulkner, s. d.: 6). Ou ainda:

Repare como a mão que se estica, adormecida, para tocar a vela posta ao lado da cama, lembra-se da dor e se retesa para livrar-se dela, enquanto a mente e o cérebro continuam a dormir e apenas transformam o calor desta vela tão próxima em um mito qualquer, insignificante, de fuga da realidade, ou como esta mesma mão adormecida, enlaçada em núpcias sensuais a uma superfície melíflua, é transformada por este mesmo cérebro e essa mesma mente adormecidos numa matéria de invenção, desvirtuada de toda experiência. (grifo meu) (Faulkner, s. d.: 121)

Como a “vela tão próxima” a palavra na obra de Faulkner se torna “mito”: vale por si mesma, significa isoladamente algo maior do que poderia significar em conexão com outras palavras. O que resulta de tal procedimento é a fundação de um novo ritmo. Por sinal, o ritmo, o som, a música seriam, num sentido primitivo, categorias de uma cosmovisão. Na geografia lingüística proposta por Faulkner, em sua intricada estrutura de justaposições, saturações léxicas, aglutinações e pulverizações verbais, o que ocorre, de fato, é que a forma se torna mito. A queda da família Sutpen faz ressoar aos nossos ouvidos a queda do Paraíso. Seus descendentes, atormentados por uma culpa da qual buscam encontrar a origem, se debatem num diálogo em que aspiram a si mesmos e ao divino. Porém, se o Éden para o qual se voltam não lhes emite resposta, suas palavras, numa tentativa de retorno ao gesto inicial de nomeação, atingem a condição de um rito. A maldição dos Sutpens e Coldfields, ao levá-los ao extremo da degenerescência, se redime pela linguagem. A forma em Faulkner poderia ser vista, nesse sentido, como uma espécie de redenção.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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