A reescritura em um conto contemporâneo

Paulo Roberto Lima Filho

 

Dentre os vários recursos expressivos presentes na literatura contemporânea, a reescritura aparece como um dos mais comuns, ou, no mínimo, como um dos recursos pelos quais a crítica literária, a teoria literária e os escritores vêm se interessando por identificar e estudar nessas últimas décadas.

Mas o que é reescrever? É tecer o mesmo texto mais de uma vez acrescentando palavras ao que foi escrito pela primeira vez? É escrever algo que se torna reescritura à medida que faz referência clara a outros textos? À medida que dialoga com o que já foi escrito? É passar para o papel a memória que ainda não foi escrita e ao praticar isso fazer uma nova leitura do que já aconteceu? Seria reescrever não apenas um processo de reescritura de palavras, mas reorganização delas através de uma releitura? Seria, portanto, reescrever, na verdade, reler? E se for, porque não dizer que toda leitura, e, assim, toda vivência, seria uma releitura de tudo que já foi vivido, um rearranjo de todas as idéias já concebidas a partir do momento em que algo novo aparece? Reescritura é tudo isso. E, desse modo, existe apenas reescritura, e não escritura. Não se tratando mais de um recurso expressivo característico das últimas décadas, mas um movimento que existe desde sempre.

A idéia de reescritura coloca por terra a noção de que somos capazes de superar completamente idéias antigas. Pois para reescrever é necessário termos algo que fora escrito, e nada que seja reescrito supera inteiramente o que foi escrito. O novo é aquilo que nos aponta para a possibilidade não vislumbrada, porém não necessariamente inexistente. O “novo” muitas vezes é algo que estava aí, apenas não havia sido capturado pela imaginação de quem o nomeia como tal. O novo não é uma nova camada, como se desse seqüência à uma escala evolutiva, mas uma reação a algo que sucedeu e que é nomeado como novo.

Dentre todas as perguntas formuláveis a respeito do tema, escolho me aprofundar nesta: como se manifesta mais comumente a reescritura na literatura contemporânea, já que em todas essas formas ela existe hoje? E eu não consigo escolher uma forma só para responder, como se pudesse dar conta de regras que regem a reescritura hoje, ou até como se eu pudesse enxergar claramente a existência de qualquer regra bem delimitada. Por isso, escolho responder às perguntas que se encaixarem com a análise de um conto específico, sem ter a pretensão de explicar a reescritura em toda a literatura contemporânea.

No conto de Sérgio Sant’anna “A carta”, uma engenheira conta a partir de uma carta as memórias de um relacionamento amoroso breve, porém intenso, que teve com um homem que pouco pôde conhecer. Nas primeiras linhas, já fica evidente a reescritura como questão relevante para a compreensão do conto e como problema para a redatora da carta: “A questão do tratamento a lhe dar me fez manter suspensa a escrita desta carta, a caneta na mão, e confesso que cheguei a escrever, no início de uma página depois abandonada, ‘Carlos, meu amor’.”

A engenheira não só tem a necessidade de reescrever sua memória para ajustá-la à realidade mais atual, mas também precisa expor o incômodo que a necessidade de reescrever sua memória lhe traz. Sua consciência acerca de seus sentimentos e a relativa capacidade que tem de controlá-los acompanham a pureza e o movimento espontâneo próprios de qualquer sentimento. Ao mesmo tempo em que ela quer ser livre pra narrar, não se proíbe de ser livre para escrever, ou melhor, reescrever. A grande liberdade para se enxergar complementa a liberdade de se expressar, sendo que só através desse tipo de escrita, que é uma narrativa em duas frentes – simultaneamente narrativa de uma sucessão de fatos e uma narrativa da narrativa –, é que ela consegue dar vazão ao que sente.

A carta é endereçada ao homem com quem ela viveu os momentos que narra, e essa intenção de reviver ao contar, de reconstruir a experiência, força o aprofundamento e, com isso, a remodelação da memória. A engenheira descobre, ao se esforçar para narrar o que se passa, apaixonada pela experiência em si mais até mais do que apaixonada pelo amante, que a escrita não dá conta daquilo que ela vivenciou, sendo que, uma vez se propondo a narrar com fidelidade, se vê diante de seu potencial infinito: “(...) as coisas nunca são uma só coisa e, à medida que escrevemos sobre elas, os caminhos se bifurcam, às vezes queremos seguir todos eles e uma escrita vai se tornado interminável”.

Em certo momento, essa narradora, precisa até criar uma nova situação em um novo contexto, fantasiando uma aventura na cidade com seu amante. É quando se torna necessário, mais do que apenas reviver, ampliar as possibilidades dessa vivência ao reescrever o que já foi vivido em forma de uma fantasia a ser realizada.

Imersa pelo processo de escrita, a engenheira chega a teorizar a respeito da origem de sua memória e se pergunta o porquê de precisar escrevê-la. Escrever lhe parece necessário como se espremer os recantos da memória lhe fosse trazer algo perdido, mas não algo que apenas a memória consegue preencher, e, devido a esse vazio que fica, escreve; reescreve.

Mas por que, mais uma vez, sendo assim tão primário o que busco, escrevo eu tanto? Talvez porque, para refazer esse percurso, reencontrar o lugar e tempo perdidos, seja preciso retraçar um rastro em palavras até o lugar em que se perderam, para que eu não precise mais dessas palavras e me cale, porque as disse.

O texto é também encarado como algo efêmero, que não merece sacralização porque é algo sempre passível de ser reescrito; porque é escrito para ser usado, usado para ser reescrito: “Esta carta, esta grafia, que por vezes reluziu nos candelabros de um palácio íntimo (...), não poderá consumir-se para além da extensão de uma noite”.

Ciente dos limites da escrita, ela a deixa que respire para depois colocar num envelope e remetê-la ao amante sem ter a certeza de que chegará ao destino, sem saber se terá a chance de reencontrar o próprio texto. A experiência de escrever a carta também é algo que ela não pode e não deseja deter, mas aproveitar ao máximo, como seu relacionamento intenso com o amante, como as memórias que ela esmiúça. Ao fazer isso, ela não despreza a memória, ao contrário. Quer valorizá-la, mas não como algo estanque, e sim como algo sempre mutável de acordo com a força e a direção para qual aponta o desejo que se apresenta diante de tais memórias.

No final, o narrador performatiza um desmascaramento de si próprio, de maneira que não podemos saber com certeza se o rosto revelado trata-se de uma segunda máscara ou não.

Logo já estarei antecipando-a na mala postal. (...) Esta carta, entoada por uma mulher que talvez nem seja engenheira, talvez a louca em trajes fétidos no pátio do asilo (...); a louca que talvez nem seja mulher, mas um homem solitário em seu quarto acanhado e que constrói para si uma amante louca em nome de quem remete a si mesmo ou ao léu uma carta que tenha a duração escrita de uma noite.

Podemos ver esse quadro por pelo menos dois pontos de vista. Uma primeira possibilidade seria enxergarmos pelo ângulo de um narrador que estaria se passando por engenheira, fazendo de seu texto, aparentemente motivado pelo fim de uma relação amorosa com um homem, uma encenação, um pretexto, para, na realidade, tematizar a escrita. Esse narrador performático veste a máscara de mulher apaixonada para, mais do que falar da sua paixão por um homem, falar da sua paixão pela escrita. Ao escrever sobre o ato de escrever ele relembra do amor pelo texto, descobre novas razões para se entregar à escrita e, assim, reescreve sua paixão.

A segunda possibilidade é a do ponto de vista da engenheira que se passa por homem solitário – remetendo à figura de um escritor – fazendo sua carta também parecer por um instante uma performance, uma desculpa para ter algo para viver, nem que seja através da escrita, da simulação e da ficção que sempre pode ser reescrita conforme seu desejo mandar.

Olhando com afastamento esse narrador de dupla ou mais identidades, e cuja verdadeira identidade não faz diferença, até porque a verdadeira é todas, trata-se de um narrador de identidade fragmentada, os eventos da estória contada passam a ser menos importante do que a capacidade de contá-la; do que o gesto de esforço e desprendimento para narrá-la. A escrita como tema, sob o disfarce da temática amorosa – disfarce que não deixa de guardar verdades, já que a questão da relação amorosa no texto metaforiza a relação de amor com a escrita – no fim do conto, se revela plenamente porque não quer perder-se como complemento para a narrativa da própria vida. O que temos, no fim, é um narrador que tem a necessidade visceral de reinventar a memória nomeando e renomeando as coisas de seu mundo e os seus desejos mais íntimos com a força que só lhe brotaria a partir da escrita.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A , 1999.

LISBOA, Adriana. “Reescrituras”. Disponível em        http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/orientando15.htm

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PINTO, Sílvia Regina. Desmarcando territórios ficcionais: aventuras e perversões do narrador. In: Armadilhas ficcionais: modos de desarmar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.