CAIO FERNANDO ABREU
UMA ESCRITURA EM PALIMPSESTO

Rodrigo da Costa Araújo (UFF e FAFIMA)

 

A leitura seria o gesto do corpo (é com o corpo, certamente, que se lê) que, com um mesmo movimento, coloca e perverte a sua ordem: um suplemento interior de perversão. (Barthes, 2003: 33)

 

SIGNOS DA VIDA NA FICÇÃO

Passados 10 anos da morte de Caio Fernando Abreu (1946-2006), muitas leituras ainda podem ser operadas a respeito de sua produção e, conseqüentemente, sobre o próprio escritor, uma vez que ele, ao escrever, também se escrevia nas entrecenas da escritura, deixando na grafia não só as pegadas de tal prática, como também daquele que a praticou.

Desse modo, ao estudarmos neste trabalho o processo de representações da vida, paralelo ao corpo escritural, se levanta e se questiona, no cenário dos textos, um corpo aquém e além do real, porque advindo da ficção, mas que, pelas leituras aqui abordadas, fazem lembrar a imagem-corpo do escritor que se constrói na recepção do leitor em contato com a obra do escritor. Corpo escritural e corpo autoral são os recortes do olhar que (re)constrói o retrato biografêmico e conceitua o que vem a ser a escritura do gaúcho transgressor Caio Fernando Abreu. É nesse espaço intervalar, de imagens que se compõem em resíduos, que é possível pressupor, em reciprocidade, o escritor na escritura, revertendo sab(o)eres biográficos e escriturais – uma leitura vingada nos meandros da sua produção sígnica.

O corpus deste trabalho será investigado primeiramente como escritura em palimpsesto[1] e, num segundo momento, como escritura em fragmentos. A semiologia barthesiana insere-se, portanto, como teoria para significar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz desse viver-escrever, tão marcante em Caio Fernando Abreu.

 

ENTRE TEXTOS & RESÍDUOS DIFUSOS

Para a busca de um possível retrato da escritura, a que nos propomos, só o signo-biografema, comprometido com as interpenetrações vida/graphos, tornaria possíveis as cogitações no sentido de traçar um mapa indicial do que se foi constelizando na verborrágica escritura de Caio Fernando Abreu.

O signo-biografema, como instrumento tradutor, encontra-se em Roland Barthes por Roland Barthes (2003), obra inaugural em que o narrador vivencia um processo de leitura exemplar do ser e da escritura. Em Caio Fernando Abreu, os fatos existenciais são convertidos, como em Barthes, em fatos de linguagem, operacionalizados pelo signo-biografema.

Tudo, nesse sentido, é tecido ao revés do imaginário do texto, como se fosse tentando flagrar suas fontes geradoras, ainda que estejam extremamente escondidas. Assim é Caio, um autor que cita e esconde suas citações. Um escritor, como apontou Lenirce Sepúlveda (2001: 243) que

...via citacionalidade – grande trunfo do autor – oferece ao leitor roteiro de fruições. Norteia-o em difusos caminhos em que escritor e escritura se confundem. Concede maior comunhão com o texto. Intensifica a argúcia no olhar - face às referencialidades históricas.

Todas as leituras que remontam os difusos biografemas de Caio, querendo ou não, voltam-se para a obra de um escritor neodecadentista, por retratar uma performance escritural de final de século e etiquetadas pela rubrica do pós-modernismo.

Nesse caminhar sinuoso pelas inscrições acolhidas como pós-modernas, acompanhamos a escritura de Caio Fernando Abreu, um autor que constrói sua arte como nos filmes, imitando sua estrutura e linguagem. Seus narradores, ao tornarem explícito o desejo de serem considerados por novas imagens, rejeitam, tanto a realidade subdesenvolvida do país, quanto o falso glamour e os simulacros criados pela indústria cultural.

Seus personagens como vampiros solitários, circulam pelas ruas das cidades, procurando uma saída entre labirintos de imagens que comem com os olhos, mas que não os alimentam. Como filmes colados às retinas e num grande processo de repetição, os personagens de Caio absorvem o espetáculo da vida nas cidades, alimentam-se da vida alheia e reproduzem o discurso da Sociedade do Espetáculo.

Assim como o olhar de Caio, extremamente cinéfilo, o olhar do leitor sofre a contaminação das imagens da realidade ou daquela fabricadas pela técnica. Operando lentes, flashes cinematográficos, jogo de luzes e truques do cinema valemo-nos de novas possibilidades de movimento na cultura do pós-modernismo para ler.

Como numa espécie de montagem, vamos desenhando uma leitura impressionista. Pelas constantes referências ao cinema, entendemos que os textos de Caio encontram-se atravessados por essa arte que colaborou para formar o imaginário do século que findou e continua atuando, com extrema força, no albor desse novo século e desse novo milênio. Por isso, ao fazemos a edição desse ensaio, incorporamos o campo semântico cinematográfico e, com uma câmera nos olhos, filmamos as imagens de pequenos biografemas.

Essa linguagem cinematográfica presente nas narrativas de Caio, podem ser percebidas no conto Pela Noite, quando o narrador diz:

Quase não vejo ninguém, quase não saio mais. Dou aquelas aulas, volto para casa. Aí fico lendo ou vou ao cinema. Vou ao cinema quase todo dia. Ou vejo uns dois filmes na televisão cada noite. Já ando vendo as coisas, as coisas todas como. Como se meus olhos fossem lentes. Dessas de cinema, um “close”, pá, vejo mais perto. Um “zoom”, pá vou afastando. (Abreu, 1996: 98)

Nesse conto, com viés homoerótico, Caio constrói sua escritura escondendo por trás de seu trabalho textual outras linguagens, a teatral no empréstimo dos nomes dos personagens, a citação a música que ilustra o conto como numa espécie de narrativa fílmica e a literária escondida, mas aludida várias vezes - tudo textualmente entrelaçado como leituras que se escondem sob a primeira tessitura. Uma espécie de narrativa porosa.

 

A POÉTICA DO “RECORTE-COLAGEM”

Como numa espécie de técnicas narrativas que imitam ou se aproximam da montagem cinematográfica e da colagem nas artes plásticas, a narrativa de Caio desestruturaliza e desfigurativiza, na medida em que se negam os elementos estruturais tradicionais da narrativa linear.

Observando Clarice, Lygia Fagundes Telles, João Gilberto Noll e outros escritores contemporâneos, por exemplo, percebe-se que o objeto literário sofreu transformações irrecuperáveis no Modernismo, ainda mais no Pós-Modernismo com o incentivo e bombardeios pela imagem. O século XX que começou investindo nos estudos sobre a linguagem chegou ao final totalmente contaminado pela sedução dos recursos visuais.

Caio Fernando Abreu não ficou fora disso. Cria uma arte, como numa espécie de “recorte colagem” questionando a representação da realidade reelaborada no modernismo e ainda mais esgarçada na pós-modernidade, como uma maneira de quebrar os princípios da representação naturalista.

Nesse caso, suas narrativas produzem certa capacidade de criar recursos ou de recortar uma forma e reavivá-la em outro contexto oferecendo ao leitor um novo sentido de colagem, reforçando ainda mais os sentidos de intervenção, aproximação e questionamento do que é representado.

Desse modo exigem-se novas relações com o leitor desavisado, exigem-se uma recepção já prevista na lírica moderna, de enfrentamento e não de consolação catártica. A narrativa pós-moderna de Caio, nesse sentido, provoca o desequilíbrio no confronto de suas convenções, expõe-se ao leitor como recorte, como fragmento polifônico e intencionalmente reiterado do mundo da ficção e da arte.

As palavras e as imagens nas narrativas construídas por Caio não se referem a coisas, pessoas ou objetos, mas a sistemas de signos e enquanto tais são anteriormente elaborados. Desse modo, o perverso e transgressor escritor exige uma recepção que saiba se impor frente às noções ingênuas de representação, oferecendo ao leitor um novo espaço a ser explorado através de prática do “recorte colagem”, que depende fundamentalmente da auto-reflexividade concretizada na indeterminação, no jogo e, principalmente, na ironia.

É nessa Sociedade do Espetáculo, apontada por Guy Debord e esgarçada ao máximo na produção pós-moderna de Caio que faz surgir um estilo que alude a cada vez mais o rigor do real da Estética Naturalista. Nesse caso podemos dizer que sua escritura possui matrizes que dialogam com o neonaturalismo[2].

Isso pode ser visto com maiores detalhes no conto Sargento Garcia - uma narrativa que relata, violentamente, uma iniciação homoerótica e sexual de um adolescente que ao se alistar no exército, no momento da entrevista se ver envolvido por um sargento. Como um estranho no quartel, Hermes recusa-se a submeter a uma relação dominador/dominado e apesar das estranhezas, acaba sendo envolvido por Garcia, o sargento dominador.

Outro conto que revela esse olhar neonaturalista e que pode ser lido como uma espécie de romance-móbile, segundo o autor, é Linda, uma história horrível, do Livro Os Dragões não conhecem o Paraíso. O conto, como num diário autobiográfico, relata o retorno de um homem que volta para a casa de sua mãe, numa cidade do interior, Passo de Guanxuma. Embora, sem nenhuma referencia ao significante AIDS, há claras pistas que este homem é portador do vírus e já está manifestando alguns sintomas da doença. O conto cita, ainda, a poeta Ana Cristina César, também morta muito jovem, e amiga pessoal do escritor. Tudo relatado, com máscaras de narrador atrás de uma personagem ou de uma voz narrativa que o tempo todo representa.

Todo o universo de Linda, uma história horrível está marcado não só pela decrepitude inevitável de todas as coisas como também pelo amor por coisas frágeis que inevitavelmente vão aparecer. A doença do personagem central faz com que ele desenvolva uma ternura especial por todo aquele universo em decadência da casa materna para onde ele retorna. O envelhecimento da mãe, o velho tapete da casa – “antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro – agora, que cor?” (Abreu, 1988: 13) , a velha cadela chamada Linda e sua tosse desafinada e seca, enfim, todo o ambiente em que se encontra o protagonista revelam a mesma decrepitude que a AIDS pode provocar em suas vítimas. Todos, naquele espaço, a velha cadela, a mãe, a casa antiga e o homem aidético terão que conviver com suas precariedades.

Por outro lado, é dessa insuficiência de realismo, ou desse naturalismo às avessas, mas vincado às impressões do real, que Caio insiste em partir, explorando (ou jogando?) contradições inerentes ao fato de ser e não ser um escritor neonaturalista, uma vez que não registra fatos, mas narra cenas, constrói e solicita o onírico o tempo todo.

Enfim, os textos de Caio – tomados tanto nos contos, como nas crônicas, entrevistas e fragmentos de vida, aproximam-se, de uma tendência freqüente em autoras como Virgina Woolf e Clarice Lispector, utiliza-se do fluxo de consciência para manifestar os estados pré-lógicos de suas personagens pós-modernas e urbanas, temperando essa característica com mais exageros da famosa ironia machadiana, ironicamente bem posta, e, por vezes, pitadas naturalistas de captação de personagens e temas a gosto de um Nelson Rodrigues ou Dalton Trevisan.

Mas, a isso tudo se acrescentam relações ainda mais corroídas que o naturalismo, a AIDS que ronda as relações dos personagens, a melancolia que sugere uma visão anti-utópica de que o futuro é vazio, o presente deixa de ser, já que se reforça em ruínas, um passado, irrecuperável.

 

EPÍGRAFES & INTERTEXTOS COM OUTRAS ARTES

...Minha crônica seria como uma foto, conto um curta metragem, romance um longa metragem, talvez. Ao fazer fotos, coloco nelas toda a minha atenção, o mesmo cuidado e carinho do que ao fazer um curta ou um longa. Não há “pior” nem “melhor”. (...) Como escritor, para mim, escrever um texto é entregar-se a ele, seja qual for o seu gênero, e fazê-lo o melhor possível. Escrevo uma crônica com a mesmíssima intensidade que um conto ou a apresentação de um pintor num catálogo ou uma resenha literária. ( Abreu, 1995: 07)

Caio Fernando Abreu, como numa espécie de caleidoscópio de citacionalidade, não apresenta o menor problema em misturar citações e referências diversas. Adora epígrafes e faz da sua escritura um tapete de tudo, um mosaico onde tudo pode entrar para ficar mais colorido. Clarice Lispector (sua autora preferida), Fernando Pessoa, Federico Garcia Lorca, Borges, Hilda Hilst, Ana Cristina César ou outros considerados mais populares, como: Cassandra Rios, Carlos Zéfiro ou Adelaide Carraro, sem escapar os poetas alternativos ou marginais. Mistura, ainda nessa, “poética do recorte-colagem” citações de obras cinematográficas do chamado cinema de arte, da chanchada nacional e de filmes e atores populares de Hollywood.

Segundo Carvalho (2004: 368):

Muitos textos de Caio Fernando Abreu são iniciados com referências a músicas – populares, folclóricas ou eruditas – que sugerem a sonoridade que deve acompanhar a leitura do texto em questão. Convivem igualmente hinos de Santo Daime, pontos de umbanda e candomblé, Caetano, Gil, Cazuza, Lennon, Wagner... Eis aí uma postura de ecumenismo multiculturalismo.

Esses procedimentos intertextuais parecem buscar uma espécie de sustentação musical como pano de fundo para suas narrativas. Uma espécie de trilha sonora que acompanha a feitura do texto, como se fosse uma narrativa cinematográfica. Sua escritura parece sempre se defrontar com a incompletude, com a ausência de sentido que parece persistir apesar do uso das palavras.

A música parece ser utilizada para, de algum modo, preencher o vazio deixado pela palavra anunciada. E não apenas a música: o cinema, os textos de outros autores, literários ou não, socialmente aceitos pelos círculos intelectuais dominantes ou não.

Além desses recursos, é possível perceber na maioria de seus contos, o intertexto epigráfico funcionando como chave de codificação e recodificação de leitura, em virtude de reduplicar seus títulos, ao mesmo tempo marca como maneira de diálogo do texto com a semelhança referenciada. Fabio Lucas (1971: 26) ao estudar a epígrafe afirma: “Tão difundida é a sua adoção que uma perfeita investigação teria de alcançar não somente poetas e ficcionistas, mas também críticos, historiadores, cientistas, etc.”.

Tudo serve como recurso para provocar certo mal-estar na comunicação, ou como maneira de explorar todos os sentidos do leitor – uma espécie de antiepifania[3] dos sentidos. Seu texto é de natureza deslocada, oblíqua, obscura, ainda quando fala do banal; é metafísico como Clarice, ainda quando rema antimetafisicamente na desconstrução deste barco em naufrágio; e torna-se antimetafísico de novo ao apoiar-se no aqui e agora do momento da escritura, como uma fotografia.

Esta conjugação de “músicas”, de diferentes estilos e tradições de linguagem musical, esses recursos da narrativa cinematográfica em articulação com a linguagem passam a ser, no talento neodecadentista do escritor, um poderoso processo alegórico e um modo de questionar as relações entre sujeito e objeto, as formações da subjetividade, extremamente desrespeitas no período da ditadura militar.

Essa explosão do eu nas narrativas, uma maneira verborrágica de ser, traduzem marcas da subjetividade que aparecem em sua obra tão fortemente múltipla, que se dispersa, quase necessariamente, em fragmentações constantes. O eu que Caio Fernando Abreu rastreia não é um eu enclausurado em sua individualidade e unidade, mas um eu relacional – como o da instância de Pela Noite – tecendo-se e destecendo-se num incessante diálogo de vozes, que o constroem e desconstroem.

Já em Linda uma história horrível, a relação de suplemento dessa literatura de carência dá-se com a pintura. A narrativa se apresenta, no seu tecido fragmentado, como manchas, fugazes instantes, quase como pinceladas impressionistas, sugerindo ao leitor a correlação entre o texto verbal e o imagético-pictórico da dor, ambos focalizados por Caio como não-figurativos. Uma dor que não se encontra em significantes, mas no constante e reelaborado processo de significação.

Em dado momento, a narrativa aponta enlace e esta carência:

... Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro – cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor... (Abreu, 1988: 21)

Nesse sentido essas idéias e confissões de Caio parecem dialogar com Michel Foucault quando diz que, no mundo ocidental a partir do século XVIII, a individualidade está intimamente ligada à verdade que o eu busca no fundo de si. Falar-se, confessar-se, tornou-se um imperativo típico dessa época.

... a confissão passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas mais altamente valorizadas para produzir a verdade. Desde então nos tornamos uma sociedade singularmente confessada. A confissão difundiu-se amplamente seus efeitos: na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes; confessam-se os crime, os pecados, os pensamentos e os desejos; confessam-se passado e sonhos. Confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias, emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama; fazem a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de contar a outrem, como o que se produzem livros... (Foucault, 1988: 59)

Esse jogo de citações em Caio, para complementar seu texto sugere um entendimento do texto não mais como produto, significado fechado em si mesmo, mas como produtividade como demonstrou Kristeva, uma relação corpo-linguagens, palavra-corpo, corpo-imagem em permanente expansão. A articulação de seus contos com cinema, pintura, música, próximo até da estrutura de vídeo-clip, como aponta Thiago Soares vai além de qualquer compreensão da arte que se feche numa perspectiva de mímesis da representação.

Nesse esgotamento narrativo, que joga com várias linguagens, o escritor parece ser consciente de que nenhuma arte poderá dizer tudo, pintar tudo, mas por outro lado, parece-nos sugerir também, no conjunto de sua obra, um fazer plural de vozes, de fontes, de registros, diversas constelações de dizeres e fazeres.

Essa dinâmica de linguagens incorporadas por Caio em sua tessitura narrativa parece fazer parte da esteira de conceitos de Bakhtin sobre dialogismo, como numa espécie de algo exterior que pode ser interiorizado, e ganha um fundo perceptivo na composição do próprio diálogo interior do ser humano. Recursos externos que interferem profundamente na perspectiva sentimental dos personagens que vivem na cidade.

Essa dinâmica de que apontamos acima são encontrados em vários textos dele, como: Os Sobreviventes, que abre com uma epígrafe “Para ler ao som de Ângela Ro-Ro” ou sugestões da linguagem do videoclipe, que segundo Thiago Soares se aproximam dessa estrutura com os videoclipes de Madona ou Michael Jackson, numa espécie de “configuração estético-narrativa do gênero terror-adolescente” (Soares, 2003: 103). Essa estrutura também pode ser claramente subentendida nos contos: A Dama da Noite, Para uma Avenca Partindo, Sapatinhos Vermelhos ou em Anotações sobre um amor urbano.

Envolvendo-se espessamente com a truculência dos sentidos e com as metáforas e metonímias de ressonâncias antropofágicas, Caio cita, recria, reescreve e promove encontros inesperados de “fragmentos” do contexto histórico ao mesmo tempo permutáveis e incongruentes entre si, ou ainda, do instante rápido e fragmentado.

Sua prática textual leva ao extremo o esgarçamento do Realismo, filtrando-o de veios românticos e, aproximando-se, na prática textual, da proposta de Barthes e desconstrução das categorias que fundamentam a metafísica ocidental.

Fiandeiro e esteta pós-moderno, Caio Fernando Abreu lança ao leitor o desafio de suas narrativas contorcidas e, acima de tudo, porosas e neodecadentistas.

 

CONCLUSÃO: ACHADOS E PERDIDOS DE CAIO

O que é o cérebro humano, senão um palimpsesto imenso e natural? Meu cérebro é um palimpsesto e o vosso também, leitor. Grandes camadas de idéias, de imagens, de sentimentos, caíram sucessivamente sobre o vosso cérebro, com a mesma suavidade da luz. (Baudelaire, 2001: 188)

O importante é que o retirado, citado, epigrafado, passam a ser, nessa “poética de recorte colagem” feita por Caio, uma desenvoltura para um novo texto, numa outra constelação de desejos e medos. O critério de uso das citações não está na representatividade das idéias do autor, ou mesmo na sua autoridade e consequentemente procura de compreender e reproduzir melhor o dito e o lido, mas na sua produtividade para o que está sendo criado. Mais do que colagem, justaposição, sobrecarregar o texto de citações é um fator de fragmentação teórica, de destruição e de reconstrução textual.

As citações e colagens de Caio se torcem entre si, se ocultam, se chocam, se perdem na história, como história, modulando o próprio ritmo do novo texto que se cria, não necessariamente como anulação do que é citado, mas para tornar indistinta e desimportante a diferença entre o que é e o que não é citação.

A escritura fragmentária, como em O Prazer do texto ou em Fragmentos do Discurso Amoroso, de Barthes, justifica uma vez mais como uma condição para que as imagens emerjam do texto para o imaginário. A escritura de Caio, como em Pela Noite, é representação sobre representação. Nela, veiculam-se sempre duas histórias no mínimo, uma colada à outra, às vezes justapostas, outras vezes sobrepostas. Nesse caso, a biografia funciona na escrita quase como um outro discurso, sempre compondo a textualidade. Escrita que, ao construir a história romanesca aos fragmentos, vai reconstruindo também a história pessoal do escritor, ou seja, sua persona literária: ficção sobre ficção.

O vivido passa a ser ficção. Isso faz lembrar a Crônica Um rosto atrás do outro, em que o narrador fala das máscaras sociais que assumimos, ou simples representações do dia-a-dia. Uma espécie de metalinguagem que o escritor faz de si mesmo enquanto ser ficcionalizado. A escrita seria a própria vida constantemente retomada.

Nem cruel, nem perverso, nem romântico, nem naturalista, nem isto, nem aquilo. Nesta pauta de indecidibilidade, em que falta e presença se emiscuem, em que se estruturam e desestruturam os discursos do cânome, transita a narrativa de Caio Fernando Abreu. Grutas, salas escuras de cinema, espelhos, filmes de terror e suspense – maravilhas imagéticas de uma escritura que quer ser cinema a todo custo.

Mandar e receber cartas, escrever fora de seu país de origem e, de certa forma, dialogar com lugares, com cidades, com as fronteiras reais e imaginárias. Tudo isso pode ser percebido como Ítalo Moriconi fez em Caio Fernando Abreu: Cartas, – uma espécie de compilação de como a vida se apropria da ficção, e esta daquela e a crítica biográfico-literária se apropria das duas.

Enfim, as narrativas de Caio, feitas de pedaços de si, fragmentos de outros, construídos por adições, que se entende no tempo, à medida em que seu fio da meada vai se transformando e se perdendo na constituição de sua incompletude permanente, mergulha cada vez mais perto do conceito de hipertexto de Pierre Levy ou dos palimpsestos pós-modernos.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] O palimpsesto, segundo o Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés (2004: 333) deriva do grego: pálin = novamente, psestos = raspado, borrado. Na antiguidade, como o pergaminho e o couro eram materiais caros os escribas reutilizavam diversas vezes os mesmos manuscritos “colocando-os numa dissolução de água de cal para assim os despojarem das primeiras escritas que eles continham. Tais couros e manuscritos, depois de raspados e alisados com pedra-pomes, eram aproveitados várias vezes para novos escritos”. A escrita palimpsesta de Caio sempre revela um ruído na mensagem, pois resulta do diálogo simultâneo com textos outros. Não se trata, contudo, de um texto esfinge: “decifra-me ou te devoro”, parafraseando o texto de Édipo. Mas a conseqüência de um desvelamento ocasionado por marcas ficcionais, que necessitam de um leitor atento para seguir as pistas que indiciam, muitas vezes, um outro gênero, ou uma outra voz. Uma metanarrativa que orquestra subgêneros, quer por engaste, ou como deslocamento paronomástico, quer como cronotopo memorialístico. Desta forma, temos várias camadas textuais que trabalham em simultaneidade.

Engaste – o palimpsesto por trabalhar com a curetagem mantém uma relação auto-reflexiva que atua com mais de um signo. Na reescrita do texto reciclado, a narrativa irá apresentar marcas sígnicas, camadas que se engastam à narrativa primeira. O termo engastar é definido por Lucien Dällenbach em Intertexto e autotexto. In: Poétique. Revista de Teoria e Análise Literárias – Intertextualidades, Coimbra,1979, p:56.

[2] Neonaturalismo: As diferenças e particularidades do dito “neo-naturalismo” em relação ao Naturalismo do século XIX são explicitadas por alguns estudiosos como Flora Sussekind, visando a deixar claro que a tendência aqui apontada não é uma mera imitação do Naturalismo original, mas uma linha adotada por alguns autores que dialoga facilmente com os valores sócio-culturais do século XIX, porém com evidentes particularidades contextuais e estéticas.

[3] Anti-epifanias: termo usado por Olga de Sá para representar as epifanias do feio, da náusea ou epifanias irônicas e corrosivas que também revelam o ser, pelo seu avesso. Conceito utilizado pela autora para estudar a obra de Clarice Lispector.