Loucuras científicas
no período da Regeneração

Daniele de Araujo dos Santos (UERJ)
Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo (UERJ)

 

A partir da leitura do Diário Íntimo[1] de Lima Barreto (organizado por Francisco Assis Barbosa), foram identificados diversos caminhos temáticos como racismo, nacionalismo, ciência, o lugar da mulher na cultura brasileira, etc. Dentre os diferentes temas encontrados para análise, será aprofundado aquele relacionado à ciência e poder através da leitura crítica do Diário do Hospício. Tal análise revela-se instigante, na medida em que se torna possível uma observação dos fatos cotidianos a partir da perspectiva crítica de um intelectual, um estudioso e artista.

Lima Barreto estava atento a todos os acontecimentos histórico-sociais que se davam no país entre o fim do século XIX e o início do XX. Através de suas crônicas e diários, temos acesso a informações extra-oficiais, narrativas do dia-a-dia, muitas vezes apresentadas sob um tom sarcástico. Ele dá voz àqueles que são excluídos do processo de “modernização” e critica acidamente as elites burguesas intelectuais, encarregadas de tomar as rédeas do país.

O Diário do Hospício, é utilizado no presente trabalho, para ilustrar a crítica ao saber cientificista. O mito da ciência tão disseminado no período moderno brasileiro é questionado por Lima Barreto: o autor não acreditava que o comportamento humano seguia leis naturais e deterministas conforme se queria fazer crer.

“A ciência é um preconceito grego; é ideologia; não passa de uma forma acumulada de instinto de uma raça, de um povo e mesmo de um homem”. (Barreto, 1956: 62)

Naquele momento realizavam-se estudos e formulavam-se conceitos para explicar, criar e justificar a nação brasileira a partir de modelos europeus vigentes à época. Acreditava-se que somente através da ciência o Brasil poderia ser entendido e ter seu destino controlado de maneira eficiente.

A ciência é bem representada na obra de Lima Barreto, particularmente em crônicas, contos e romances como o Cemitério dos Vivos, A Superstição do Doutor, Meia página de Renan, etc. O intelectual apresentava uma visão relativista, contrapondo-se, assim, a leis deterministas.

Lima Barreto via na ciência uma brecha para a legitimação do preconceito e inferiorização de seres humanos. São estes alguns dos aspectos que serão observados em Diário do Hospício.

Lima Barreto foi internado no hospício duas vezes[2]. Em sua segunda internação (entre dezembro de 1919 e fevereiro de 1920), o autor fez anotações relatando sua experiência no espaço destinado aos dementados. Tais anotações encontram-se atualmente na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional e foram organizadas e publicadas sob o título de Diário do Hospício[3] por Diogo Hollanda.

O ambiente da loucura era familiar ao escritor, já que seu pai, João Henriques, havia trabalhado nas colônias de alienados da Ilha do Governador e, posteriormente, o mesmo enlouquecera. Não é à toa, então, que Lima Barreto faz várias referências à loucura em seus contos, crônicas e romances.

Através da leitura do Diário do Hospício, somos convidados a olhar de perto a loucura e a observar seus vários aspectos. Também nos são evidenciados mitos e situações nas quais nos perguntamos: quem é o verdadeiro louco? O louco internado no hospício ou o louco revestido de um título que lhe concede o direito de investir em loucuras?

Um dos aspectos que nos faz questionar o conceito de loucura e os critérios para reclusão de alienados é o fato de que um intelectual ativo, com raciocínio claro e lógico, como Lima Barreto, tenha sido considerado louco não só uma, mas duas vezes. Suas anotações revelam um pensar vívido e lúcido, de quem experimenta todas as sensações de forma consciente. Mesmo condenado ao ostracismo, o escritor procurava ler, estudar: era freqüentador assíduo da Biblioteca do Hospício. Tratava-se, assim, de um intelectual autêntico que extraía de cada experiência um aprendizado e ao mesmo tempo um estímulo para estudar mais e realizar conexões que geravam histórias, painéis literários e críticas para posteridade.

A Medicina era uma das ciências mais importantes e destacadas naquele momento, exercendo um papel mítico na sociedade. Ciência das doenças e anomalias corporais,visava à cura dos indivíduos e à eliminação de doenças físicas, bem como psicológicas. Os médicos psiquiatras tratavam dos males da mente humana “irracional”, que já não mais obedecesse à lógica. E como tratar deste tipo de doença? No Brasil, a solução primeira e mais comum era a internação. Na maioria das vezes não se dava um exame mais apurado, fruto de um estudo sério. Lima Barreto apresenta uma visão negativa acerca da cura de doenças mentais no Brasil, e, baseado em sua experiência, aponta para a precariedade intelectual no país:

Conheço loucos, médicos de loucos, há perto de trinta anos, e fio muito que a honestidade de cada um deles não lhe permitirá dizer que tenha curado um só.

Amaciado um pouco, tirando dele a brutalidade do acorrentamento, das surras, a superstição de rezas, exorcismo, bruxarias, etc. o nosso sistema de tratamento da loucura ainda é o da Idade Média: o seqüestro. (Barreto, 2004: 69)

O “seqüestro” de dementados se dava muitas vezes de maneira descuidada e, às vezes, com certa violência, já que em algumas ocasiões, a polícia se encarregava do processo. Assim, os loucos submetiam-se a humilhação de serem capturados como bandidos pela polícia, um processo um tanto traumático. O próprio Lima Barreto, fora parar no Hospício “pelas mãos da polícia”.

“Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos da polícia”. (Barreto, 2004: 19)

Em entrevista com um dos médicos do Hospício, que consultava os doentes, Lima Barreto deixa clara a sua aversão a deificação excessiva direcionada a ciência. Ele também denuncia o ar de arrogância que acometia os médicos, inflados de sua “certeza”.

Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quatro anos, nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me parece inteligente, estudioso, honesto; mas não sei porque não simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si.

(...)

Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do hospício. Creio que ele não gostou. (Barreto, 2004: 21 - 22)

Lima Barreto não acreditava em nenhuma idéia ou teoria que se pusesse enquanto verdade absoluta do mundo. Pensava o escritor que a vida era pontuada pelo mistério e informações obscuras que punham em questionamento qualquer afirmação.

Eu sou dado ao maravilhoso, ao fantástico, ao hipersensível; nunca, por mais que quisesse, pude ter uma concepção mecânica, rígida, do Universo e de nós mesmos. No último, no fim do homem e do mundo, há mistérios e eu creio neles.; Todas as prosápias sabichonas, todas as sentenças formais dos materialistas, e mesmo dos que não são, sobre as certezas da ciência, me fazem sorrir e creio que este meu sorriso não é falso, nem precipitado, ele me vem de longas meditações e de alanceantes dúvidas. (Barreto, 2004: 40)

Deste modo, seguindo a linha de pensamento do escritor, o problema da loucura é algo que não compete aos médicos materialistas e empíricos. A origem da loucura seria desconhecida.

Todas essas explicações da origem da loucura me parecem absolutamente pueris. Todo problema de origem é sempre insolúvel; mas não queria já que determinassem a origem, ou explicação; mas que tratassem e curassem as mais simples formas. Até hoje. Tudo tem sido em vão, tudo tem sido experimentado; e os doutores mundanos ainda gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os colos e os brilhantes, que a ciência tudo pode. (Barreto, 2004: 44)

Mencionando um alienista, Lima Barreto expõe o caráter modista da ciência no Brasil, personificada na figura do médico que comprava, praticamente, qualquer idéia européia, aglutinava-a e a transformava em um produto convenientemente adaptado à realidade brasileira.

Não lhe tenho nenhuma antipatia, mas julgo-o mais nevrosado e avoado do que eu. É capaz de ler qualquer novidade de cirurgia aplicada à psiquiatria em uma revista norueguesa e aplicar, sem nenhuma reflexão preliminar, num doente qualquer. É muito amante das novidades, do vient de paraître, das últimas criações científicas ou que outro nome tenha. (Barreto, 2004: 30)

E quem eram estes seres cujas vidas eram manipuladas? E quem eram estas pessoas que perdiam o direito sobre o próprio corpo? Certamente, a maior parcela daqueles que se encontravam internados, não era composta por pessoas poderosas, ricas ou destacadas por seu saber na sociedade, e sim por pessoas simples, pobres, marginalizadas simbolicamente. As instalações das casas de internação públicas eram insatisfatórias, como delata Lima Barreto:

O mobiliário, o vestuário das camas, as camas, tudo é de uma pobreza sem par. Sem fazer monopólio, os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres da nossa gente pobre. (Barreto, 2004: 23)

Os mais frágeis compunham o caldo do hospício. Aqueles que não eram fortes o suficiente para enfrentar o sistema ou aqueles que por motivos vários não se encaixavam no mesmo, eram retidos, impedidos de viver e destinados à morte em vida, ou seja, ao cemitério dos vivos. Não há nada ou ninguém que vá proteger os pequenos insetos da sociedade: as leis, a ética só são seguidas quando para favorecer os grandes e fortes.

Vejam só esta observação de um antepassado dos atuais bolchevistas, do cita Anacarsis, feita a Sólon: “As leis são como as teias de aranha que prendem os fracos e pequenos insetos, mas são rompidas pelos grandes e fortes”. Os nossos milionários e políticos não pagam os impostos e, muitas vezes, os criados, quando os alugam, se não mandam buscá-los na polícia militar e na guarda civil; entretanto, há uma porção de leis, de fiscais, etc.etc.

Ora, a lei! Que burla! Que trabuco para saquear os fracos e ingênuos... (Barreto, 2004: 84 - 85)

Lima Barreto supõe, em suas observações quando internado, que o amor, paixão obsessiva direcionada a um objeto, seja uma das bases da loucura. A obsessão em relação à concretização de certos objetivos, muitos deles estabelecidos pela sociedade, pode ser considerada uma mania. Alguns loucos, companheiros de Barreto, tinham mania de grandeza; queriam ser brilhantes doutores, com grande estima diante da sociedade, ricos e poderosos.

Essa questão do álcool, que me atinge, pois bebi muito e, como toda gente, tenho que atribuir as minhas crises de loucura a ele, embora sabendo bem que ele não é o fator principal, acode-me refletir por que razão os médicos não encontram no amor, desde o mais baixo, mais carnal, até a sua forma mais elevada, desdobrando-se num verdadeiro misticismo, numa divinização do objeto amado; por que — pergunto eu—não é fator de loucura também?

Por que a riqueza, base da nossa atividade, coisa que, desde menino, nos dizem ser o objeto da vida, da nossa atividade na terra, não é também causa da loucura?

Por que as posições, os títulos, cousas também que o ensino quase tem por mérito obter, não é causa de loucura?” (Barreto, 2004: 44-45).

Esta obsessão pode ser aplicada à mania da ciência, doença esta que acometia a sociedade brasileira. Os valores da sociedade estavam invertidos; esta passa a se distanciar de si mesma e projeta-se na figura de uma personagem rica, inteligente. Suas manifestações típicas, seu povo, sua cultura são rejeitados porque quer ser européia. Doença social, o cientificismo exacerbado se enquadraria na classificação de distúrbio mental, seguindo a lógica de Lima Barreto. A loucura científica se espalhou, atingindo não só membros da elite como membros de camadas mais pobres.

A mania de grandeza é observada, no Diário do Hospício, a partir de anotações acerca de um doente particular, o F.P.

Há muita coisa de infantil nas suas atitudes, nas suas manias de amor, na estultície de se julgar com grande talento e saber, de provir de uma raça nobre ou parecida. (p. 45)

(...)

Mania de grandezas, delírio de saber, de família, de valentia e coragem, uma agitação que não o faz dormir. (Barreto, 2004: 46)

Alguns loucos presentes no Hospício eram bacharéis. Coincidentemente, a maioria deles pouco falava. Eram depressivos, e tendiam a internalizar todos seus pensamentos. Lima Barreto menciona um louco, que apesar de se votar a um mutismo absoluto, não se esquecera do poder do anel, símbolo acadêmico.

Coisa curiosa, entretanto, os formados nisto ou naquilo, que me apontam aqui, quase todos eles são possuídos de uma mania depressiva que lhes tira não só a enfatuação doutoral, como também se votam, em geral, a um silêncio perpétuo. Mostram-me vários, e todos eles eram de um mutismo absoluto. Contudo, um deles, bacharel, o mais mudo de todos, na sua insânia, não se esquecera do anel simbólico e, com um pedaço de arame e uma rodela não sei de que, improvisara um, que ele punha à vista de todos, como se fosse de esmeralda. (Barreto, 2004: 48-49)

A não concretização de objetivos grandiosos, a exclusão monetária, dentre outros fracassos incompatíveis com os valores da sociedade de consumo e de aparências, isolava automaticamente certos indivíduos do mundo. E o que não funcionava naquele momento onde tudo deveria parecer belo, não podia circular livremente aos olhos de todos. Doentes mentais, vadios, bêbados eram misturados, sem critério em um mesmo espaço de reclusão; não poderiam fazer parte da sociedade que se queria perfeita, com pessoas nobres, ilustradas e, sobretudo, chiques.

Conforme observado através de exemplos, o discurso científico penetrou no Brasil sob a forma da retórica. Seus adeptos o utilizavam como meio de ascensão social; estar associado à ciência significava ter um status elevado no país. Com a pretensão de operar progressos no país, os intelectuais portadores da ciência colocaram-se à frente da elaboração de uma nova identidade nacional. Este novo conceito da nação brasileira dissociava-se dos elementos típicos e inerentes ao país para ir ao encontro de elementos presentes na configuração cultural européia.

Tentando passar por cima de traços irrefutáveis do Brasil, a elite intelectual e política encontrou problemas: o progresso que se queria não passou de fachada. O período em que o desejo de ser europeu tornou-se predominante, foi um período de grande crise social, onde a miséria da maioria era evidente.

Apesar de identificado um descompasso entre a realidade brasileira e a européia, o modelo de nação baseado em teorias deterministas originários de países como a França, continuou a ser a adotado por um bom tempo. No entanto, muitas das teorias que pré-determinavam o futuro de uma raça ou de uma localidade de acordo com suas características geográficas, haviam saído de moda na Europa por não terem larga aceitação.

Em uma visão asséptica, procurou-se excluir da nação, negros, doentes, pobres, etc. Aqueles que não eram brancos e de “boa família” deveriam ser escondidos e saírem do campo de visão dos que queriam ver um Brasil rico, bonito e branco. Prisões, hospícios, cortiços, morros tornaram-se o habitat das espécies humanas “não civilizáveis”.

A incoerência e a desumanidade encontradas no discurso científico brasileiro foram veementemente expostas ao longo das obras de Lima Barreto. A crítica à ciência e a discriminação dela recorrente é uma das tônicas de seu trabalho.

Através de suas observações, Lima Barreto nos leva a enxergar o que se encontra por trás da fachada que a loucura científica desejou imprimir ao Rio de Janeiro, e por conseqüência, em todo país.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Afonso Henriques Lima. Contos reunidos (Contos, 1915; Histórias e Sonhos; Contos Recolhidos, 1949; Outros Contos Recolhidos, 1951). Org. Oséias Silas Ferraz. Belo Horizonte: Crisálida, 2005.

BARRETO, Afonso Henriques Lima. O cemitério dos vivos. São Paulo: Planeta do Brasil; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.

BARRETO, A. H.L de. Obras de Lima Barreto. Organizadas sob a direção de Francisco de Assis Barbosa, com a colaboração de Antonio Houaiss e M. Cavalcanti Proença. São Paulo: Brasiliense, 1956. 17 v.

BARRETO, Afonso Henriques Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Org. Beatriz Rezende e Rachel Valença, Rio de Janeiro, Agir, 2004.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz; EDUSP, 1987.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. Ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê, 2003.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1985.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.


 


 

[1] O diário é visto como a forma mais comum de escrever sobre si. Sua escrita se dá como uma conversa de si para si ou com algum amigo, ou qualquer pessoa que possa vir a ler o texto hipoteticamente (“outro”). O diário não é só um registro de um indivíduo isolado, mas de situações/fatos históricos, políticos, sociais e morais que envolvem o diarista. Assim, o diário abarca fatos internos e externos. Além disto, o diário apresenta uma forma descontínua, intercalada, pois não reúne todos os pensamentos e experiências em um bloco único, dependendo de informações prévias ou posteriores. Geralmente as experiências são separadas por dia, ano ou mês e uma anotação não necessariamente tem a ver com uma anotação anterior ou posterior.

[2] Sua primeira internação, devido ao alcoolismo,se deu em 1914.

[3] Nesta edição estão incluídas as anotações “pessoais” feitas acerca da realidade no hospício, bem como o esboço de um romance baseado nestas observações : O Cemitério dos Vivos.