NAS ENTRELINHAS SEISCENTISTAS
PRAGMÁTICA DE LEITURA E ESCRITA
NA “ÉPOCA GREGÓRIO DE MATOS”.

Fernanda Pereira Milet

 

Antes de mais nada, cumpre enfatizar que discutir manifestações literárias brasileiras relativas ao século XVII pressupõe trabalhar com uma série de questões suscitadas por um certo anacronismo presente nas historiografias literárias ao analisarem-se os textos produzidos nesse século, anacronismo este já amplamente abordado pelos estudos acadêmicos que se propõem a trabalhar com o período.

Neste texto, pretendo analisar, especificamente, as condições de leitura e escrita que envolvem os poemas produzidos num espaço de tempo já comumente denominado pela crítica como “Época Gregório de Matos”, com uma ênfase em relação à sátira. Sempre dentro desse contexto, abordarei também algumas das questões que mencionei anteriormente, envolvidas no problema da análise do período literário conhecido como “Barroco” a partir de uma perspectiva romântica.

Para começarmos, é importante esclarecer o termo “Época Gregório de Matos”. Trata-se de uma espécie de solução encontrada pela crítica para o problema da autoria dos textos que hoje são atribuídos ao autor. De fato, três fatores nos levam a questionar se estes realmente foram escritos por Gregório de Matos. Em primeiro lugar, não há notícia de texto autógrafo do autor, nem de trabalho impresso em vida. Além disso, as condições de circulação dos poemas na época, através da oralidade ou por meio de folhas avulsas em que se copiavam textos da mais variada natureza, apontam para a possibilidade de se lhe terem atribuído produções alheias. (Cf. Oliveira, 2003: 33; Moreira, 205: 123). 

O fato é que a forma como hoje chegam até nós os textos seiscentistas está impregnada de uma ideologia por completo estranha àquela presente na época em que foram produzidos, e isso ocorre tanto pela apropriação desses textos por uma historiografia romântica quanto em razão da lógica de recepção na qual está envolvido o próprio leitor, influenciado pelos mesmos ideais oitocentistas ainda hoje determinantes no que diz respeito à questão da escrita e da leitura de textos literários, a qual me proponho a analisar. Dessa forma, minha abordagem se centrará nessa perspectiva passado/presente para buscar um melhor entendimento das práticas de escrita e recepção e à relação entre autor e leitor dentro das representações letradas do período em questão.

Ao situarem-se os poemas da “Época Gregório de Matos” em seu devido contexto histórico de produção, é inevitável discutir uma prática que, no século XVII, era indissociável da produção literária – usarei, por ora, o termo literatura para me referir aos textos seiscentistas, me atendo posteriormente à análise da inadequação do termo. Trata-se de uma prática conhecida como poética da emulação, que se baseava na imitação de autores clássicos, considerados “autoridades” na arte poética – o termo latino auctor denotava alguém que era, ao mesmo tempo, um escritor e uma autoridade (auctoritas, em latim), e por isso deveria não apenas ser lido, mas também respeitado e imitado (Cf. Jobim, 1996: 17). Isso não significa, entretanto, que os seiscentistas tivessem aversão à inovação, mas esta só existia dentro de algo já criado. Emular significava tentar aperfeiçoar um discurso previamente existente. Além disso, a poética da emulação pressupunha um contrato implícito entre autor e leitor: ambos deveriam possuir valores compartilhados sobre os discursos socialmente aceitos. O escritor seguiria o modelo discursivo de um auctor, sempre buscando aperfeiçoá-lo, e o leitor, por sua vez, teria com o texto emulado um prazer semelhante ao que teve com o original. Na verdade, o que impedia de fato que o discurso se autonomizasse era o compromisso que os textos em questão tinham com os princípios horacianos do docere et delectare, ensinar e agradar, sempre dentro da moral cristã.

A partir do século XIX, os valores românticos, que ainda prevalecem hoje, alteraram por completo essas normas e conceitos. A arte poética como imitação de modelos perde terreno para o mito romântico do autor como gênio (singular, único e especial), cujos textos têm origem absoluta nele próprio, privilegiando-se, assim, a imaginação livremente criadora e negando-se qualquer tipo de influência que não parta da subjetividade privilegiada do autor. A utilidade dos textos na educação moral do público perde espaço para o prazer estético e a contemplação desinteressada. A mudança, portanto, não ocorreu somente na forma de produção das obras por parte do autor, mas também no que tange à sua recepção por parte do leitor e à relação entre ambas as entidades, autor e leitor, dentro do circuito literário.

Como já mencionei, o problema decorrente de tão profundas alterações na lógica literária é que os textos luso-brasileiros do século XVII, que conhecemos como pertencentes ao “Barroco”, chegaram até nós apropriados, no século XIX, em programas nacionalistas que os adaptaram a usos interessados, analisando-os a partir de categorias valorativas completamente anacrônicas ao contexto em que foram produzidos, e que continuam sendo aplicadas até hoje. Até mesmo quando nos referimos aos textos seiscentistas como “literatura”, estamos usando um termo pertencente ao século XIX, quando foram produzidas as primeiras historiografias literárias brasileiras. No século XVII, o critério estético que hoje é fundamental numa obra literária era visto como secundário em relação à sua utilidade prática.

Outro fator que merece destaque e é, ainda hoje, pouco considerado pela crítica é a questão da materialidade de um texto e a forma como ela pode influenciar sua leitura. Roger Chartier, num ensaio intitulado “Do livro à leitura”, busca associar as condições materiais de circulação do texto literário à sua apropriação pelo público, afirmando que

(...) duas tradições (...) pesam, implícita e explicitamente, sobre as pesquisas historiográficas. A primeira é antiga e lê os textos ignorando seus suportes. Os textos que se prestam a escrever a história são tomados como portadores de um sentido que é indiferente à materialidade do objeto manuscrito ou impresso através do qual ele se dá, constituído de uma vez por todas e identificável graças ao trabalho crítico. Uma história do ler afirmara, contra esse postulado, que as significações dos textos, quaisquer que sejam, são constituídas, diferencialmente, pelas leituras que se apoderam deles. (Chartier, 2004:79).

Associando-se as idéias colocadas por Chartier ao contexto brasileiro do século XVII, não poderíamos deixar de considerar as precárias condições que envolviam as práticas de leitura e escrita nesse período. Como já citei, estavam implicadas, simultaneamente, na produção e na circulação de textos, tanto a escrita quanto a oralidade. Como a grande maioria da população não sabia ler, estando essa capacidade restrita a letrados que ocupavam cargos nos aparelhos administrativos, burocráticos e clericais (Cf. Hansen, 1999, p.172), era bastante comum a prática da leitura pública em voz alta. Dessa forma, era um fato auto-evidente dentro da estrutura social que a apropriação dos textos pelo público era, em sua quase totalidade, coletiva, e o que chamamos de leitores eram, na verdade, ouvintes. Através da contraposição entre as condições de recepção dos textos seiscentistas e a prática de leitura comum nos dias de hoje, ou mesmo no século XIX, é possível relacionar essas diferentes práticas ao objetivo dos textos nos séculos em questão. A oralidade estimula uma recepção não-individual, de acordo com valores socialmente aceitos, numa espécie de decodificação das práticas discursivas, enquanto a escrita encoraja uma leitura mais individual e subjetiva, o que implica diferentes leituras e, conseqüentemente, diferentes significados atribuídos a um mesmo texto. Essa íntima relação, de que fala Chartier, entre a leitura do texto e sua significação, nos remete, na verdade, a duas questões diversas presentes em sua fala, ainda que entrelaçadas entre si. A primeira seria a que já mencionei, referente à questão da audição e da leitura silenciosa e individual. A segunda seria a questão também já discutida aqui da apropriação contemporânea das obras do século XVII, que podemos associar, dentro das idéias de Chartier, à tradição antiga que vê os textos como portadores de um sentido que é indiferente à materialidade do objeto manuscrito ou impresso através do qual ele se dá, e, portanto, que prescinde de todo o contexto histórico-cultural em que estão envolvidas as produções. Essa capacidade da leitura de atribuir diferentes significados um texto aponta para o importante papel desempenhado pelo leitor dentro da prática discursiva.

Nos últimos tempos, a crítica literária vem dando uma especial atenção ao papel do leitor como colaborador na construção de sentidos de um texto, o que contribui para um melhor entendimento das práticas de leitura relativas ao passado e ao presente. Umberto Eco, a esse respeito, criou dois conceitos: a do leitor-empírico e a do leitor-modelo. Os leitores-empíricos, segundo Eco, podem ler um texto de várias formas, pois em geral o utilizam como receptáculo para suas emoções pessoais, que podem ser exteriores ao texto ou provocadas por ele. Dessa forma, não existe lei ou regra que determine como deve ser sua leitura. Para introduzir o conceito de leitor-modelo, Eco utiliza como ilustração um filme de comédia. Um suposto espectador que assistisse a esse filme num momento de profunda tristeza certamente não conseguiria se divertir, pois, como “leitor empírico” do filme, o estaria “lendo” a partir de emoções subjetivas. Não há dúvida, entretanto, de que o autor de um filme, ou livro desse tipo, o tenha escrito tendo em vista um tipo específico de leitor, um leitor disposto a sorrir e a se divertir com sua história. Esse seria o leitor-modelo de Eco, “uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar” (Eco, 1994: 15). Estabelecendo uma simetria com a questão do leitor, o crítico distingue também duas entidades presentes na figura do autor: o autor-empírico seria a entidade concreta, social, extratextual, a que a nomenclatura literária costuma chamar simplesmente de autor. O autor-modelo, ao contrário, só existe dentro do texto, mas não se trata propriamente do que conhecemos, no caso de um poema, como eu-lírico. O autor-modelo é a voz que, através do eu-lírico, dá as instruções que deve seguir aquele que decide ser um leitor-modelo.

Transportando-se as idéias de Eco para o contexto do século XVII, podem-se realizar uma série de associações. O leitor-empírico, por exemplo, pode ser claramente relacionado à leitura anacrônica da matéria literária seiscentista, que se apropria dos textos segundo critérios pessoais exteriores a seu contexto. Já o leitor-modelo de Eco associa-se ao leitor presente na sociedade brasileira colonial, aquele que os autores tinham em mente e a quem destinavam suas obras. Para melhor esclarecer essa questão, retomarei uma idéia evocada no início deste trabalho, a respeito dos valores sociais compartilhados entre autor e leitor na lógica poética seiscentista. Ana Lúcia Oliveira, a esse respeito, ressalta que

No século XVII contra-reformista o envolvimento do público tinha de ser obtido por meio dos requintes persuasivos da eloqüência, voltados para os objetivos de difundir a ortodoxia católica e de fazer face à Reforma protestante. (...). Daí o número considerável de tratados sobre retórica e eloqüência então produzidos, apontando para a predominância de uma rígida codificação das práticas discursivas (...). (Oliveira, 2003: 37).

Tratando especificamente dos poemas satíricos produzidos no século XVII, que conhecemos como pertencentes a Gregório de Matos, alguns fatores merecem destaque. Em primeiro lugar, as condições teatrais sob as quais se desenvolvia a sátira, “como ato de comunicação entre um cantador e seus ouvintes” (Oliveira, 2003: 38). Os poemas tinham o objetivo claro de persuasão, ao qual a oralidade torna-se extremamente vantajosa.

A questão que quero enfatizar, entretanto, é o pacto de cumplicidade existente entre o autor barroco e o seu leitor, em que está subentendida, de acordo com João Adolfo Hansen, uma dupla normatividade: retórica e teológico-política. Hansen atesta que:

Sua forma [dos discursos coloniais], sempre realizada como adequação a esquemas aristotélicos de gêneros poético-retóricos, prescrevia a audição e, às vezes, a leitura como reconhecimento de tópicas e preceitos técnicos aplicados à sua invenção e, ainda, como reconhecimento dos modos autorizados de sua interpretação teológico-política. (Hansen, 1999: 173).

O “reconhecimento de tópicos e preceitos aplicados à sua invenção”, de que fala Hansen, corresponde ao que já chamei anteriormente de contrato implícito entre autor e leitor, baseado na pressuposição do conhecimento de um universo de procedimentos retóricos que constituíam a base do discurso seiscentista. Assim, havia um conjunto de normas que formavam o destinatário como personagem do discurso, já que este seria construído pelo autor para partilhar com ele as mesmas virtudes éticas da discrição, agudeza e prudência, colaborando assim na formação dos sentidos do texto. Para esclarecer simplificadamente esses valores comuns a autores e leitores, eles se caracterizavam pelo bom desempenho técnico e persuasivo do autor, inclusive em relação a sua capacidade de superar o auctor emulado. No caso do leitor, essas virtudes significavam, basicamente, a capacidade de julgar adequadamente o desempenho do autor, distinguindo os “melhores” dos tipos vulgares. Dessa forma, o “contrato enunciativo” constitui o destinatário como sinônimo do enunciador. (Cf. Hansen, 1994: 35 e 36 e 1999: 176-178).

Dentro desse contexto, torna-se mais lúcida não apenas a associação do leitor seiscentista ao leitor-modelo de Eco, mas também a correspondência entre o autor do século XVII e o autor-modelo, caracterizado como aquele que define as normas que deve seguir o leitor-modelo, como “uma voz que nos fala afetuosamente (ou imperiosamente, ou dissimuladamente), que nos quer a seu lado” (Eco, 1994: 21).

E o autor seiscentista quer o leitor a seu lado não apenas como cúmplice que partilha dos mesmos valores sociais e discursivos ou como colaborador na construção dos sentidos que quer dar a seu texto. A intenção poético-retórica da voz afetuosa, imperiosa ou dissimulada vai além disso. Ela busca no destinatário o “reconhecimento dos modos autorizados de sua interpretação teológico-política”. (Hansen, 1999: 173). Afinal, as representações seiscentistas não visavam apenas ao deleite, mas também, e, sobretudo, à educação moral do leitor-ouvinte. Em relação à sátira, há uma identificação “com a boa política e a boa religião, oposta à decadência do presente mau e corrupto, negado como teatro da falha, falta e culpa”. (Hansen, 2004: 201). Interpretada anacronicamente como obscenidade alheia à moral, numa associação com a biografia do “Boca do Inferno”, a sátira gregoriana reúne uma série de significados que a definem, muito ao contrário do que propõe a crítica contemporânea, como moralizadora e hierarquizante. O sentido de moralização ocorre justamente através do que, a partir de uma leitura mais ingênua, poderia parecer imoral. Através da inversão de regras, a sátira segue as mesmas regras, buscando doutrinar o leitor a respeito do comportamento social adequado, sempre dentro da ortodoxia católica. Em outras palavras, o texto satírico tem como objetivo regulamentar o bom uso social a partir da teatralização do seu inverso; ele busca educar moralmente por meio da ridicularização do mau proceder. Assim, “ensina divertindo e castiga rindo” (Oliveira, 2003: 40), constituindo-se num duplo movimento: critica o vício para propor a virtude. Simultaneamente a isso, a sátira propõe uma rigorosa hierarquia dos valores, de acordo com a razão do Estado. A mulher, por exemplo, era sempre vista como inferior ao homem. Dessa forma, a poesia satírica gregoriana não se coloca como oposição aos poderes, como prega grande parte da crítica contemporânea, mas, pelo contrário, se mostra submissa a sua divisão hierárquica.

Ao leitor, cumpre reconhecer os modos socialmente autorizados da interpretação teológico-política do poema satírico, a que João Adolfo Hansen denomina “legibilidade doutrinária da sátira” (Moreira, 2005: 119). Segundo esse conceito, a voz que fala no poema é interpretada como um personagem, a persona satírica, que se apresenta para captar a benevolência do destinatário (Cf. Hansen, 2004: 223). Assim sendo, no contexto da sátira, é possível a comparação entre a persona satírica e o autor-modelo de Umberto Eco, da mesma forma como ocorre em relação às outras representações literárias relativas ao século XVII. A construção do leitor, no caso, assume extrema importância, uma vez que, como já citei, a sátira tem em vista o destinatário e espera dele uma posição favorável. Citando João Adolfo Hansen, “a sátira atinge seu fim quando o destinatário adere ao lugar da enunciação e assume a ponderação como critério avaliativo e corretivo do mal” (Hansen, 2004: 213). O leitor-modelo construído pela persona satírica é aquele capaz de identificar a figura satirizada e demonstrar a cumplicidade e o deleite favoráveis à crítica.

No que se refere à obscenidade e ao pessimismo característicos da sátira do autor, outra consideração relativa ao contexto seiscentista das práticas letradas merece destaque: o pessimismo e a obscenidade são prescrições retóricas da maledicência satírica, uma vez que é preceito retórico o de que o orador enraivecido obtém mais sucesso que o tranqüilo. (Cf. Hansen, 2004: 229).

Antes de concluir, gostaria de deixar algumas observações para a reflexão do leitor. O crítico literário francês Roland Barthes, que se dedicou amplamente à análise dos papéis do autor e do leitor, assim como à relação entre eles, defendeu, em toda a sua obra, a teoria da leitura como reescritura do texto. Para ele, o ato de ler deve pressupor a criação de um texto novo, a partir de sentidos que existem virtualmente, na imaginação do leitor. Ler, portanto, não seria apenas captar os significados que são indicados pelo autor, como faz o leitor-modelo de Eco, mas interagir com a obra, “deixando seguir o texto em todos os seus extravasamentos semânticos e simbólicos” (Barthes, 1995). Barthes defende a liberdade de leitura, rejeitando a prisão no texto a que é submetido o leitor-modelo; afirma que ler é deslocar a linguagem do centro de poder e não aplicar modelos. O crítico defende a teoria radical de que o nascimento do leitor pressupõe a morte do autor, pois “a escrita é a destruição de toda a voz, de toda a origem” (Barthes, 1987: 49).

Suas idéias apontam, portanto, para a impossibilidade de se definir um sentido único para o texto a partir de sua origem, do seu autor, como busca a crítica ao associar a obra de Gregório de Matos à sua biografia, inclusive através das famosas didascálias. Por outro lado, o que o presente trabalho, juntamente com boa parte da crítica contemporânea, busca fazer é recuperar o contexto das práticas de escrita referente à época em que viveu o autor. Nesse sentido, são pertinentes dois questionamentos: em primeiro lugar, tentar reconstruir os sentidos originais dos textos seiscentistas não seria também dar ao texto um sentido único, assim como fez a historiografia literária romântica? Além disso, essa apropriação oitocentista da prática letrada do século XVII não seria justamente um exemplo da “liberdade de leitura” que propõe Barthes?

As respostas para essas perguntas nos indicam, como leitores dos textos do período, dois caminhos: o primeiro é a tentativa de reconstrução de seus sentidos originais, que só será possível através de uma leitura que abdica de valores pessoais e contemporâneos e se coloca no lugar do leitor do século XVII, buscando restituir o pacto de cumplicidade quebrado. O outro seria rejeitar, como prega Barthes, a aplicação de modelos e dar ao texto significações que existem em nossa imaginação.

Evidentemente, a primeira opção é a mais adequada se o objetivo for realizar uma análise pertinente da literatura seiscentista, como foi minha intenção aqui. Seja qual for o caminho eleito, entretanto, vale ressaltar que ambos privilegiam o papel do leitor como co-autor do texto literário, fato, há alguns anos, desconsiderado pela crítica.

Para concluir, me aproprio de algumas palavras de Roger Chartier que considero bastante significativas:

Antes de mais nada, dar à leitura o estatuto de uma prática criadora, inventiva, produtora, e não anulá-la do texto lido, como se o sentido desejado por seu autor devesse inscrever-se com toda a imediatez e transparência, sem resistência nem desvio, no espírito de seus leitores. Em seguida, pensar que os atos de leitura que dão aos textos significações plurais e móveis situam-se no encontro de maneiras de ler, coletivas e individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas ou públicas e de protocolos de leitura depositados no objeto lido (...). (Chartier, 2004, p.78).

 


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. As práticas urbanas do impresso. In: Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: UNESP, 2004, p.77-105.

ECO, Umberto. Entrando no bosque. In: Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Cia. das Letras, 1994, p.7-31.

HANSEN, João Adolfo. Pós-Moderno e Barroco. In: Cadernos do Mestrado/Literatura nº 8. Rio de Janeiro: UERJ/Instituto de Letras, 1994.

––––––. A proporção do monstro. In: A sátira e o engenho. São Paulo: Ateliê; Campinas: UNICAMP, 2004, p.191-233.

––––––. Leituras Coloniais. In: ABREU, Márcia (org.). Leitura, história e história da leitura. Campinas: Mercado das Letras; São Paulo: Fapesp, 1999.

JOBIM, José Luís. A leitura e a produção textual. In: A poética do fundamento. Niterói: EDUFF, 1996, p. 13-27.

MOREIRA, Marcello. Materiam Superabat Opus – Recuperação de critérios setecentistas da legibilidade da poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra. In: ABREU, M & SCHAPOCHNIK, N. (orgs.) Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: FAPESP, 2005.

OLIVEIRA, Ana Lúcia M. de. Breves anotações sobre a musa praguejadora da “Época Gregório de Matos”. In: ROCHA, Fátima C.D. Literatura Brasileira em foco. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.