Qorpo-Santo
um olhar vanguardista e crítico
acerca de uma época

Tatiana Alves Soares Caldas (UNESA e UniverCidade)

 

Qorpo-Santo é o pseudônimo literário de José Joaquim de Campos Leão, dramaturgo brasileiro do século XIX, nascido em 1829 e falecido em 1883. Tendo sofrido um processo de interdição judicial movido por sua própria esposa, que alegava a insanidade mental do marido, foi destituído de suas funções, dentre as quais o magistério e a escrita. E será justamente a alegação de insanidade aquilo que, segundo alguns críticos de sua obra, acabará por despertar-lhe o inconformismo. Guilhermino César, no estudo introdutório às obras do autor, atribui ao processo de interdição um caráter decisivo, ao ver nessa exclusão social o germe da insatisfação que permeará a obra qorpo-santense:

O certo é que, declarado inapto, por decisão judicial, para gerir sua pessoa e bens, tendo de obedecer a imposições do curador, privado do convívio familiar, Qorpo-Santo refugiou-se por inteiro na atividade literária. É quando sua mente começa a trabalhar com mais energia; é quando descobre em si mesmo, nos destroços morais do professor impossibilitado de ter alunos, um reformador social em germe. Premido, humilhado, quis romper cadeias, quebrar tabus, refundir a sociedade, instaurar a perfeita justiça, assegurar o integral cumprimento das leis. (Qorpo-Santo, 1980: intr.)

Geralmente versando em torno das relações sociais e dos embates entre indivíduo e coletividade, seus textos conduzem a uma ampla reflexão acerca das relações humanas, ou, parafraseando o autor, das relações naturais, como indica o título de uma de suas mais representativas obras. Abordando temas polêmicos, como os desvios e perversões sexuais, tornou-se maldito. Em enredos que por vezes contrariam a lógica, prenunciando o surrealismo, desnuda a moral de seu tempo e desafia convenções, numa estética a um só tempo iconoclasta e inovadora: 

Escrevendo peças como As Relações Naturais, Mateus e Mateusa, Eu sou vida; eu não sou morte, Qorpo-Santo põe a nu coisas que o teatro brasileiro ignorava, enfrenta problemas morais desdenhados (...) pela maioria dos comediógrafos e dramaturgos – que foram legião, numa quadra em que ir ao teatro era um preceito de bom-tom. Fala do sexo e seus desvios com uma liberdade de estarrecer. Chega ao patético, no entrelaçamento às vezes confuso das linhas de força que o seu talento criador instintivamente buscou seguir, como que para decifrar a si mesmo(...). (Ibidem)

Sua obra teatral, escrita em sua maioria no ano de 1866 e encenada pela primeira vez exatamente cem anos depois, é marcada por divagações e fluxos de consciência presentes nas falas de seus personagens. Os textos aqui abordados, encenados em conjunto há exatos quarenta anos, trazem como eixo norteador o olhar crítico sobre a sociedade do século XIX. A hipocrisia e a fachada conservadora da época são postas em xeque na obra de Qorpo-Santo, convergindo para uma temática recorrente: o embate Natureza X Civilização, em que os impulsos e desejos do ser humano chocam-se violentamente com a moral da época, e com as leis – religiosas ou não – em torno das quais a sociedade se articula. O vanguardismo de Qorpo-Santo é destacado por Yan Michalski em crítica publicada no Jornal do Brasil em 1968, época da encenação de algumas obras do autor. Segundo ele, o modernismo e a ousadia do autor gaúcho eram surpreendentes, se considerarmos a época em que ele viveu, e a aparente loucura observada em seus textos nada mais seria do que um golpe nas convenções sociais. 

Curiosamente, a primeira marca da genialidade criativa do autor é percebida na ironia com que assina sua produção literária: os vocábulos Qorpo e Santo já encerram, em si, um aparente paradoxo, pois atribuem uma suposta santidade ao que há de mais carnal no homem. Sua transgressão, contudo, não pára por aí, uma vez que ousa subverter os cânones gramaticais ao adotar uma grafia que destoa dos padrões da Língua Portuguesa, algo ainda mais sugestivo se lembrarmos que o autor era professor, sendo, portanto, a adoção de tal grafia algo intencionalmente desafiador. Esse desafio em relação às normas vigentes será, como dissemos, a grande diretriz de sua obra, constituindo mesmo o mote a partir do qual as situações se desenrolam, conduzindo invariavelmente ao conflito entre os impulsos do indivíduo e o choque destes com as leis da sociedade dita civilizada. Tem-se, então, uma obra de caráter iconoclasta que acentua ainda mais a ironia contida em seu pseudônimo literário. 

Dessa forma, o presente estudo tem por objetivo uma análise da produção literária qorpo-santense a partir das transgressões e desvios nela detectados ou da onomástica dos personagens, marcando, nos planos lingüístico e lexical, o olhar crítico e vanguardista de um escritor à frente de seu tempo. As situações enfocadas nas peças completam a crítica mordaz da sociedade oitocentista. Deter-nos-emos em As Relações Naturais, Mateus e Mateusa e Eu sou vida; eu não sou morte, exibidas em conjunto em uma mostra em 1966.

Um dos aspectos sobre os quais Qorpo-Santo lançou sua pena transgressora foi a desordem ortográfica vigente na época. Lança, então, um inovador projeto com o objetivo de simplificar a ortografia da língua portuguesa, chegando mesmo a publicar textos no jornal A Justiça, editado e custeado por ele, defendendo sua posição. Suas inovações abrangem a grafia, os códigos e os costumes, fazendo com que a crítica vislumbre – ainda que tardiamente – seu valor. Ao comentar uma das peças presentes nas obras completas, o crítico e editor Guilhermino César destaca o que há de vanguardista no teatro do autor, chegando mesmo a considerá-lo o precursor do teatro do absurdo:

(...) Empregando falas já modernas, no concernente à estrutura, o autor despreza a narração passiva e anódina. (...) Há um saudável tom de farsa, como no geral em todas as outras. Por meio do teatro, Qorpo-Santo vinga-se da sociedade e dos desacertos humanos. (...) Qorpo-Santo deve ficar (...) na mesma área reservada aos criadores de mérito excepcional. Pois, se faltou ao rio-grandense perfeito equilíbrio mental, não lhe escasseou talento dramático. Embora não merecesse a imediata compreensão dos críticos, parece-nos que a importância de sua obra, precursora do teatro de Ionesco, de Ghelderode, de Jarry, de Vian, será um dia unanimemente reconhecida. As soluções de Ionesco não representam nenhuma novidade, ante o que realizou modestamente, no mais completo desamparo moral, o autor gaúcho morto em 1883. (Qorpo-Santo, 1980: intr.)

Em As Relações Naturais, comédia em quatro atos, assiste-se a um desfile de personagens, em que a ação parece por vezes dar lugar a diálogos sobre as relações humanas, sendo por vezes impossível estabelecer conexões entre os personagens, significativamente dotados de nomes que sugerem sua função na sociedade. Assim, Impertinente, o primeiro a entrar em cena, não por acaso é aquele que se coloca como um escritor, autor do texto em questão. Sua impertinência parece traduzir a ousada e ingrata função de retratar a misérrima condição humana, aprisionada entre suas pulsões e limites, prenunciando o conflito entre os Princípios da Realidade e do Prazer, cunhados décadas mais tarde por Freud. Trata-se de uma perspectiva transgressora e dionisíaca em uma sociedade apolínea e regrada, gerando infortúnios e desgraças a todos aqueles que desafiam o status quo. A fragmentação observada nos personagens e, por vezes, no próprio texto, não apenas antecipa técnicas que seriam posteriormente desenvolvidas por grandes nomes e correntes do século XX, como acentuam o isolamento do indivíduo frente à sociedade. Truquetruque, outro personagem que traz no nome a marca de sua singularidade, representa o fingimento e a máscara social, acentuados pela reduplicação contida em seu nome. Presentifica a hipocrisia presente nas relações sociais. Sua primeira fala já mostra o papel que tenta representar na sociedade – o de um intelectual – e sua verdadeira condição, de um ignorante que se utiliza de termos pretensamente eruditos sem lhes conhecer o sentido. O texto já evidencia um dos motivos pelos quais Qorpo-Santo foi considerado louco: numa reunião de perversões e desvios de caráter, apresenta uma galeria de personagens bem comuns à sociedade de então. Ambientada num bordel, a peça mostra a cafetina com suas prostitutas, tratando-as como filhas, mas explorando-as. Malherbe, o marido da cafetina, é um dos que se aproveitam delas. Seu nome, que pode ser visto como uma sugestão de seu caráter nocivo – erva daninha, Herbe du Mal – sugere ainda uma remissão a François Malherbe, conhecido poeta francês que comparou a efemeridade da condição humana à brevidade das rosas, que não duram mais de um dia. A perspectiva epicurista, de buscar o prazer diante da fugacidade da existência, também parece justificar as atitudes condenáveis do personagem. O criado, sintomaticamente denominado Inesperto, é outro dos que se valem da hipocrisia para se beneficiar, bem como outros rapazes que trabalham na casa.

Malherbe, Mariposa e outros sintetizam, cada um a seu modo, aspectos / elementos da sociedade, que se chocam entre si ou que se adaptam, reproduzindo ou negando um discurso de cunho moralizante vigente à época. As normas e regras como cerceadores da vontade, de um lado, e o desejo de liberdade, de outro, representam a tônica do texto. Mariposa, sugestivo nome utilizado para as prostitutas velhas ou cafetinas, aparece aqui como uma das vozes que questionam as leis, que nada fazem senão coibir os desejos e impulsos. Entretanto, utiliza-se desse mesmo código para sobreviver. As mulheres apresentadas como tentações ou a intenção de enforcar as autoridades, num levante simbólico de tom libertário, ilustram o pensamento e o desejo velado de determinados segmentos da sociedade oitocentista. A ânsia pela destituição do status quo aparece, por exemplo, no incêndio que ocorre no início do quarto ato, momento em que há uma aparente mudança na situação. A regeneração sugerida pelo fogo é acompanhada pelo enforcamento simbólico do patriarca Malherbe, odiado por todos, em cujo lugar é posto um boneco de papelão, para que sirva de exemplo. A disparidade entre seu discurso e suas atitudes pervertidas coloca-o como alvo da revolução proposta pelas mulheres. Digna de destaque é a presença da personagem Intérpreta, marcada por um discurso feminista, conferindo um tom vanguardista ao texto. Apesar de ter apenas dezesseis anos, mostra-se segura e assertiva ao contestar as palavras misóginas de Malherbe. Como que a interpretar os anseios femininos, reivindica igualdade de direitos e respeito às mulheres, numa fala insólita para os moldes da sociedade patriarcal da época.

Logo após o incêndio, contudo, Inesperto reverte a situação, atirando em todas as direções. E, numa talvez constatação da inviabilidade da mudança, o final do texto apresenta todas as mulheres, singularmente Elas, a defender, em coro, a moral e os bons costumes, comportamento que a sociedade esperava da mulher:

(...) Cantemos todas:
Não nos meteremos
Mais com relações;
Maridos procuremos;
Pois temos corações!

A nenhum mais tentaremos
Destruir seus sentimentos!
A um só nós serviremos,
P’ra não ter duros tormentos!

(...)
Tenhamos pois juízo!
Cada qual com seu esposo!
- Se não, não há paraíso!
Tudo inferno! – nenhum gozo!

(...)
Basta o trabalho,
Certo, não falho;
Para vivermos;
E mil gozos termos. (Ibidem: 84-85)

Como não há nada em As Relações Naturais que aponte uma transformação verdadeira por parte das personagens, a mudança repentina em seu discurso revela a ironia do desfecho, em que as personagens femininas pregam, em uníssono, a resignação e o comportamento adequado. O tom irônico atua como crítica velada à hipocrisia reinante, mostrando um discurso em nada condizente com as atitudes praticadas.

Em Mateus e Mateusa, novamente a reflexão gira em torno das relações humanas, particularmente as afetivas. Mateusa renunciara ao nome de batismo, sintomaticamente masculino, para adotar um que seria a mera derivação do nome do marido. Sabendo-se que o nome simboliza a singularidade do indivíduo, a opção pelo nome do cônjuge traduz a anulação da mulher na sociedade do século XIX.

As filhas do casal são: Silvestra, Pêdra e Catarina, sendo os insólitos nomes das duas primeiras remissões à Natureza, ou seja, numa alusão ao aspecto mais primitivo do ser humano, não contaminado pela civilização. Entretanto, constituem flexões de nomes originalmente masculinos, traço recorrente na obra do autor e que, acreditamos, evidencia a falta de identidade que acometia a mulher na sociedade de então. Curiosamente, Silvestra é justamente aquela que nega seu lado mais natural, pois, em dado momento, propõe-se a exterminar as ervas daninhas ou ervas do mal – lembremo-nos de Malherbe, d’As Relações Naturais – que eventualmente possam surgir, numa metáfora da extirpação social de todos aqueles que se opusessem à ordem vigente. Numa defesa dos valores considerados corretos em seu meio social, reproduz e reitera os valores do pai, típicos da sociedade patriarcal do século XIX, adotando o código civilizatório:

MATEUS (voltando-se para Silvestra) – Pois a Srª esteve no quintal?

SILVESTRA – Pois então, Papai:eu não havia de ir cortar, arrancar todas as ervas perniciosas, que crescendo destroem as plantas, as flores preciosas?(Ibidem: 95)

Catarina, cujo nome significa purificada, representa a pureza esperada da mulher na misógina sociedade oitocentista. Fazendo eco ao discurso das irmãs, também encarna a aura de santidade cobrada da mulher, defendendo a ordem e a virtude, numa fala coletiva que reproduz os valores vigentes:

(As filhas cantam:)
Nós somos três anjinhos
(...)
- Mataremos ao algoz
Destes dois nossos paizinhos!
(..)
Não queremos que a maldade,
Para nossa felicidade,
Maltrate a ele ou a ela...
Mataremos tresloucadas!
(...)
De principados – exércitos
Temos também de virtudes!
De tronos! Não mudes,
Papai! Vivam as ordens! (Ibidem: 93-94)

Mateus, cujo nome remete a um dos difusores dos ensinamentos bíblicos, representa o patriarca alicerçado no pensamento judaico-cristão, código responsável pela misoginia característica do pensamento ocidental. Simboliza a postura masculina na referida sociedade, e não por acaso refere-se às filhas sempre exaltando sua inocência e santidade. Orgulha-se da castidade das filhas, vendo nelas seres destituídos de sexualidade, e referindo-se a elas como santas e virgens, num tom moralista típico da sociedade da época:

MATEUS: - Meus anjos (tãobém querendo acomodá-las). Minhas santas; minhas virgens... não quero que briguem, porque isso me desgosta. Sabem que já sou velho e que os velhos são sempre mais sensíveis que os moços... quero vê-las contentes; contentezinhas; ao contrário fico triste. (Ibidem: 93)

Como se pode notar, o tom de Mateus para com as filhas assemelha-se àquele utilizado com crianças. A infantilização das moças constituía uma eficaz estratégia de controle no século XIX, numa atitude que mesclava proteção e vigilância. Já no que se refere à esposa, a fala de Mateus revela-se ainda mais machista e hipócrita, baseando-se nas leis – civis e canônicas – para exigir obediência por parte dela. Numa demonstração da hipocrisia reinante, Mateus despreza a esposa, mas implora pela manutenção do casamento por considerar a separação algo condenável:

MATEUS (correndo a abraçá-la apressadamente) – Minha queridinha; minha velhinha! Minha companheirinha de mais de 50 anos (agarrando-a), por quem és, não fujas de mim, do vosso velhinho! E as nossas queridas filhinhas! Que seriam delas, se nós nos separássemos; se tu buscasses, depois de velha e feia, outro marido, ainda que moço e bonito! Que seria de mim? que seria de ti? Não! Não! Não! tu jamais me deixarás. (tanto se abraçam; agarram; pegam, beijam-se, que cai um por cima do outro.) Ai! Que quase quebrei uma perna! Esta velha é o diabo! Sempre mostra que é velha e renga! (...) Isto é o diabo!... (Ibidem: 98)

Por meio do contraste entre as palavras carinhosas do início e o tom depreciativo do final, nota-se que a determinação manifesta por Mateus em manter o casamento resume-se à permanência do status quo, sem nenhum afeto ou respeito pela esposa. Lembra-a de sua responsabilidade, referindo-se à união como se de uma obrigação se tratasse:

- Não há de ir; não há de ir; não há de ir porque eu não quero que vá! Você é minha mulher; e pelas leis tanto civis como canônicas, tem obrigação de me amar e de me aturar; de comigo viver, até eu me aborrecer! (Ibidem: 99)

Mateusa então surpreende com palavras pejorativas em relação às leis, que segundo ela, não seriam senão papéis borrados, numa reflexão sobre a moral e os costumes da época. Em sua revolta, refere-se de forma depreciativa às leis, tanto as civis quanto as canônicas, nunca respeitadas de fato nem mesmo por aqueles que as representam no dia-a-dia:

– Não hei de! Não hei de! Não hei de! Quem sabe se eu sou sua escrava!? É muito gracioso, e até atrevido! Querer cercear a minha liberdade! E ainda me fala em leis da Igreja e civis, como se alguém fizesse caso de papéis borrados! Quem é que se importa hoje com Leis (...). Pegue lá o Código Criminal, - traste velho em que os Doutores cospem e escarram todos os dias, como se fosse uma nojenta escarradeira! (Ibidem: 99)

A visão crítica em relação às leis repressoras e retrógradas – tônica do texto – é vista no final apoteótico, em que o casal chega às raias da agressão física. O criado encerra a história com um discurso moralista, mostrando os efeitos do não-cumprimento das leis, o que, segundo ele, traria um retrocesso à sociedade. A ironia é sutil ao mostrar o casal, que permanece unido e preso a uma relação doentia marcada pela humilhação e pela violência.

Em Eu sou vida; eu não sou morte, a dicotomia ser / parecer perpassa o texto, mostrando serem a hipocrisia e a dissimulação lugares-comuns nas relações sociais. Já na primeira cena, a protagonista adverte o marido para a falsidade que permeia as relações humanas:

Não te fies, meu Lindinho,
Dos que te fazem carinho,
Crê que te devoram
Os lobos; e não coram! (Ibidem: 125)

O texto reflete acerca da existência oprimida em virtude de amarras impostas pela sociedade e, diante de tantas limitações, a Vida afigura-se como uma espécie de Morte, uma vez que os desejos, pulsão vital do ser, são cerceados pelas regras da civilização. Os protagonistas são Lindo e Linda, numa possível alusão à pieguice romântica em voga na sociedade. Entretanto, em meio às doces palavras trocadas pelo casal, a sutil crítica transparece na imagem do fingimento, fazendo ruir qualquer leitura romântica da união Lindo / Linda:

LINDA: - Meu Lindo, tu sabes o quanto te amo! (...) Adoças-me pois sempre com tuas palavras; com teus afetos; com teu amor ainda que fingido! Sim, meu querido amigo, bafeja-me sempre com o aroma de tuas palavras; com o perfume de tuas expressões! Sim, meu querido, lembra-te que hei sido baixel, sempre batido das tempestades, que por cinco ou seis vezes quase há soçobrado; mas que por graça Divina ainda viaja nos mares tempestuosos da vida. (grifos nossos) (Ibidem: 125-126)

A falsidade fica ainda mais patente quando, imediatamente após as gentilezas e elogios, o casal começa a trocar acusações e farpas, revelando um ódio mútuo. O que poderia ser mais uma crítica à instituição do matrimônio agrava-se com a chegada de um personagem chamado Rapaz, que, posteriormente, descobrimos tratar-se do verdadeiro marido de Linda. Apresentando um discurso que reproduz o status quo, o Rapaz evidencia que a liberdade e a vontade são contrárias à manutenção da ordem vigente, sendo, por isso, perniciosas. Reivindica seu direito sobre Linda por ser legalmente seu marido. O tom transgressor do texto surge também na denúncia, por parte de Linda, de que o casamento seria uma forma legalizada de aquisição da mulher, e as leis que respaldam esse procedimento não passariam, para a protagonista, de letras mortas, ou de papéis borrados, numa reiteração de termos utilizados na obra anteriormente citada. O texto acena com reivindicações de feição feminista, e o fato de tal questionamento ser feito, nesta e em outras peças, por personagens femininas, acentua-lhe o tom reivindicatório. O descompasso entre a essência das leis e sua aplicação põe em relevo a inconsistência da sociedade de então, como se verifica a seguir:

LINDA: - O que mais?! Não ouviu já ele dizer que sou mulher dele?! O que mais quer agora? Agora fique solteiro, e vá casar com uma enxada! Não quer acreditar que não há direito; que ninguém faz caso de papéis borrados; que isso são letras mortas; que o que serve, o que vale, o que dá direito – é a aquisição da mulher?! Que quem se pega com uma, essa tem, e tudo o que lhe pertence! (Ibidem: 128)

E, numa espécie de duelo pela posse de Linda, defrontam-se duas forças distintas: a do homem que diz tê-la conquistado, e a daquele que afirma seu direito sobre ela amparado pelas leis, uma vez que se casaram no passado:

O RAPAZ: - O Sr. tem estoque, pois eu tenho punhal e revólver! (Mete a mão na algibeira da calça, puxa e aponta um revólver.) Agora, de duas uma: ou Linda é minha, e triunfa o Direito, a Natureza, a Religião – ou é tua, e vence a barbaria, a natureza em seu estado brutal, e a irreligião! (Ibidem: 129)

Quando Lindo reaparece no segundo ato, ele e Linda são apenas Ele e Ela, sugerindo a despersonalização das relações humanas. Surge, então, outro fator de conflito: descobre-se que a filha de Linda é, na verdade, filha bastarda de Lindo, gerando-se outra polêmica: quem tem direito à mulher? Aquele que é legalmente casado com ela ou o pai de sua filha? Cumpre destacar que se trata de uma disputa em que somente o direito sobre ela é reivindicado, sendo o discurso do Rapaz marcado pelo conservadorismo e pela defesa das tradições:

O RAPAZ: - Hoje decidiremos (à parte) quem é o marido desta mulher, embora esta filha fosse fabricada pelo meu rival. (Desembainha a espada e pergunta para o rival:) A quem pertence esta mulher? A ti que a roubaste... que lhe deste esta filha? Ou a mim que depois com ela liguei-me pelo sangue; pelas Leis civis e eclesiásticas, ou de Deus e dos homens!? Fala! Responde! Ao contrário, varo-te com esta espada! (Ibidem: 133)

A resposta de Lindo, bem como a réplica do rapaz, evidenciam um duelo verbal em que se enfrentam dois pontos de vista, duas ideologias acerca das leis e códigos da cultura de oitocentos. Note-se como os argumentos apontam o conflito entre desejo e ordem, onde a liberdade e a vontade são cerceadas pela estabilidade decorrente de valores cristalizados e estanques:

LINDO: - Ela quis; e como a vontade é livre, não podeis ter sobre ela mais direito algum!

O RAPAZ: - Em tal caso... e se ela amanhã disser que não quer? E se o mesmo fizer no dia seguinte para com outro? Onde está a ordem, a estabilidade em tudo que pode convir às famílias e aos Estados!? Onde iríamos parar com tais doutrinas!? O que seria de nós?de todos!? (Ibidem: 133)

Nesse embate de forças e opiniões, a vontade parece triunfar. Mas, como que a conceder um desfecho moralizante, o Rapaz mostra o que, segundo ele, ocorre em sociedades em que há o triunfo do desejo:

O RAPAZ: - Pois como as vontades são livres e cada qual faz o que quer; como não há leis, ordem, moral, religião!... Eu também farei o que quero! E porque esta mulher não me pode pertencer enquanto tu existires – varo-te com esta espada! (Atravessando-o com a espada;)(...) Morre, cruel! (...) e a tua morte será um novo exemplo para os Governos; e para todos os que ignoram que as espadas se cingem; que as bandas se atam; que os galões se pregam; não para calcar, mas para defender a honra, o brio, a dignidade, e o interesse das Famílias! A honra, o brio, a dignidade, a integridade Nacional!

(...) O que não pude vencer, ou fazer triunfar com a pena, razões, discursos, acabo de fazê-lo com a espada! (Ibidem: 133-134)

Após o discurso reacionário do rapaz, que proclama a vitória da honra, ainda que lavada a sangue, a trama encerra-se com uma sugestiva rubrica, em que o autor afirma que assim finda a comédia, que mais parece – Tragédia, assinalando, de forma sarcástica, as tênues fronteiras entre o que há de patético ou de trágico nas relações humanas.

Um aspecto recorrente nos textos aqui trabalhados é o fato de as mulheres surgirem como a fala destoante e questionadora ou como aquelas que põem todo o equilíbrio por terra, destruindo a harmonia. Aparecem como as grandes culpadas na quebra do trinômio Tradição, Família e Propriedade. Uma vez que se trata de um olhar crítico lançado sobre a sociedade, o tom por vezes feminista da obra qorpo-santense evidencia ainda mais o que nela havia de inovador. Sendo considerado por alguns críticos o precursor do Teatro do Absurdo ou mesmo do Surrealismo na dramaturgia, Qorpo-Santo fica no entanto relegado à margem em função do diagnóstico de loucura, diagnóstico refutado por médicos do Rio de Janeiro, onde foi submetido a novos exames. A pluralização ou mesmo o automatismo da escrita, técnicas que seriam posteriormente utilizadas por dadaístas ou surrealistas, acabaram por reforçar o estigma que o acompanhou ao longo da vida. Uma nova leitura de sua obra faz-se necessária, e certamente alçaria seu texto à sua real perspectiva, conduzindo à devida dimensão da genialidade desse autor à frente de seu tempo, rotulado e estigmatizado por uma sociedade incapaz de perceber o brilhantismo de seus papéis borrados.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Qorpo-Santo, pseud. de José Joaquim de Campos Leão. Teatro completo. Fixação do texto, estudo crítico e notas de Guilhermino César. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro / Fundação Nacional de Arte, 1980.

––––––. A justiça – Reimpressão de alguns artigos. In: A saúde e a justiça, Livro 7. Porto Alegre: Tipografia Qorpo-Santo, 1877.

Michalski, Yan. O sensacional Qorpo-Santo. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 08/02/1968.