Uns braços – interpretação e crítica

Marillia Raeder Auar Oliveira (UERJ)

 

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Inserido no volume que constitui as Várias Histórias, o conto “Uns braços” foi recebido pela crítica contemporânea a Machado de Assis muito elogiosamente. Quinto livro de contos do autor, Várias Histórias chegou às livrarias em outubro do ano de 1895, dez meses após o contrato assinado com a editora. A respeito da obra foram publicadas seis resenhas críticas, sendo duas de Olavo Bilac, autor já então célebre e respeitado. Este sublima a riqueza psicológica e a ironia misteriosa que fazem de Machado de Assis um acurado observador da alma humana.

Em breve ensaio crítico publicado no Jornal do Comércio sem assinatura, o anônimo autor aponta uma característica identificável na obra de Machado, que considera de apurada sensibilidade artística: a capacidade que tem o escritor de Quincas Borba em velar a fealdade presente em determinadas histórias, suavizando a sordidez de um adultério, ainda que discreto, por exemplo, como no conto que constitui objeto de exame deste ensaio. Tal hediondez nos é apresentada com a elegância e delicadeza próprias do grande estilista que é Machado de Assis, que compõe fina e originalmente cada uma de suas histórias, cabendo-lhe, sem exageros, o epíteto de “a alma da nossa literatura”, pois, conforme aponta Valentim Magalhães, crítico seu contemporâneo, “a situação de Machado de Assis nas letras brasileiras é excepcional, é mesmo única atualmente” (Magalhães,1985, apud Machado, 2003). Lembra, ainda, a unanimidade e a incontestabilidade de que goza nosso maior escritor, em cujas obras contrabalançam-se a idéia e a expressão, o conteúdo e a forma, que constituem um todo admirável, digno de aplausos, talvez a principal qualidade desse escritor consciencioso e equilibrado.

Machado não emprega nunca tintas fortes e cruas; jamais lança mão de notas extremas nem chega às vias de fato, o que podemos comprovar com a leitura de “Uns braços”, onde dona Severina beija o rapaz, e este permanece dormindo; não acorda para surpreendê-la, seja positiva ou negativamente. Potencialmente, resta sempre uma dúvida, uma incerteza, uma sensação de desconforto provocada pela não resolução das questões no texto machadiano.

Em outro ensaio, intitulado “A literatura brasileira”, Valentim Magalhães se dá ao luxo de comparar o nosso romancista fluminense a Eça de Queirós, segundo ele, único autor vivo (na época) de língua portuguesa capaz de ombrear com Machado de Assis, havendo entre eles mais de um ponto de semelhança – “a originalidade da graça, a distinção do epíteto e a sobriedade do colorido” (Apud Machado, op. cit.). Machado, se houvesse escrito em francês, teria tido uma reputação universal, avalia Valentim Magalhães, pois, além de insigne prosador, admirável poeta e cronista e qualificado crítico, nosso escritor é também um louvável pensador, humorista e mesmo um filósofo sem exagerada vaidade.

Magalhães de Azeredo, em resenha intitulada “Machado de Assis”, recorda-nos que foi justamente na prosa que se desenvolveu seu caráter original, de magnífico humorista, atingindo seu grau máximo no Brás Cubas. Entretanto, se o sucesso de seus romances é freqüentemente comparado ao que obteve em seu tempo José de Alencar, no que diz respeito aos contos ninguém se lhe avantaja ou mesmo iguala.

Se pretendemos, neste ensaio, analisar o conto “Uns braços” orientados por pressupostos da estética da recepção, valorizando uma interpretação ligada a condicionamentos sociais, e sobretudo pelo reconhecimento de um elemento às vezes deixado de lado pela teoria da literatura (Souza, 2004) – o leitor da obra –, consideramos importante deixar claro, ainda que correndo o risco da repetição, o papel configurado pela figura feminina no século XIX. Segundo observação de Roberto Acízelo de Souza,

A posição subalterna ocupada pelas mulheres na sociedade brasileira oitocentista constitui noção que integra o saber do senso comum, mesmo porque se trata de um estado de coisas que se conservou no essencial até pelo menos os anos 50 do século XX. (Apud Machado, In: Santos, 2005)

A personagem feminina do conto a que nos dedicamos ocupa papel semelhante a este que nos descreve Roberto Acízelo de Souza. Porém, dona Severina, na tentativa de recusa a esta clausura, não se conforma com esta posição, permitindo que, através de ações ambíguas e movimentos contraditórios que comentaremos posteriormente, revele-se a vontade de ser desejada por um outro homem e, por sua vez, a de desejá-lo também. Trata-se de um quadro de adultério pintado com suaves tintas por Machado de Assis, cuidadoso que é na estruturação de suas histórias, nunca ferindo as vistas dos leitores.

A contradição e a ambigüidade em Machado de Assis estão presentes, inicialmente, nos recursos lingüísticos e estilísticos adotados, ou seja, na forma que utiliza para expressar seu conteúdo. Então, de saída, percebemos a linguagem por ele usada possibilitando e incentivando movimentos contraditórios e ambivalentes dentro de sua narrativa.

O “procedimento menos” (Campos, 1990) na literatura brasileira aparece quando Sílvio Romero, com sua delicadeza paquidérmica, denuncia o estilo “gago” de Machado de Assis. Para Romero, a arte de Machado é pobre porque se opõe ao colorido abundante, porque lhe falta a vibração de períodos amplos e fortes, como os de um Coelho Neto, por exemplo. Para o crítico, não há em Machado uma cadência oratória, nem uma riqueza vocabular enquanto acumulação de efeitos. No entanto, encontramos no texto machadiano uma “alta temperatura informacional estética” (idem) muito valorizada enquanto característica literária, e que não foi reconhecida por Sílvio Romero, talvez por sua cegueira pessoal em relação à obra e à figura de Machado de Assis.

Sim, encontramos na produção do autor de Quincas Borba um certo tartamudeio, mas que abre espaço para reflexões, sejam elas filosóficas, psicológicas, históricas ou sociais; não se trata simplesmente de um gaguejar nulo que trava a narrativa sem nenhum propósito, ou por falta de requinte estético ou de domínio do texto, como queria Romero. O próprio Machado de Assis atenta, em seus textos, para as diversas pausas que faz na narração, abrindo espaço para reflexões, sugerindo ao leitor, sempre ironicamente, que salte o capítulo, caso não seja dado a tais elucubrações, caso muito freqüente em Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direto à narração. (2004: 25)

Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. (2004: 21)

E quanto ao freqüente “tartamudear”, temos, ainda, o próprio autor, que nos alerta:

[...] porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... (grifo nosso) (2004: 103)

Trata-se, portanto, de uma escolha consciente de recursos estilísticos e lingüísticos, e não de alguma deficiência na forma ou de falta de domínio do vocabulário ou da sintaxe.

Apontamos, pois, guardadas as proporções, certa semelhança com a escrita também econômica de Oswald de Andrade, cuja prosa se insurge justamente contra o estilo excessivamente ornamental “parnaso-acadêmico” já superado.

Por outro lado, o “tartamudeio” estilístico de Machado de Assis também pode ser considerado uma forma voluntária de metalinguagem, como observou Haroldo de Campos.

O “perpétuo tartamudear” da arte pobre machadiana é uma forma de dizer o outro e de dizer outra coisa, abrindo lacunas entre as reiterações do mesmo, do “igual”, por onde se insinua o distanciamento irônico da diferença. (1990: 224)

O distanciamento é irônico justamente por se apresentar como o mesmo, sendo, na verdade, diferente, e não apenas uma variação do que foi dito.

Em Machado, o estilo lacunar abre espaço para reflexões e críticas, não somente à literatura e à sociedade, mas a a ele próprio. Também em Oswald o mesmo ocorre, mas em tom mais paródico, colocando em xeque o vício retórico nacional.

Cabe ainda ressaltar, no que diz respeito às Memórias Sentimentais de João Miramar (1978), o prefácio de Machado Penumbra, que, sendo uma alusão a Machado de Assis (além do próprio título, que evoca as Memórias Póstumas, conservando o substantivo e, embora mudando o adjetivo para “sentimentais”, mantendo a ironia presente em “póstumas”), é muito semelhante ao estilo da “Carta pras Icamiabas”, capítulo de Macunaíma, de Mário de Andrade, onde temos o (falso) estilo pomposo e intelectual do herói. Com isso, Oswald também critica o mal da retórica vazia e desnecessária; rejeita a ordem social conservadora, os estilos artísticos precedentes, critica toda uma classe ociosa (da qual fazia parte), ou seja, critica ironicamente seu próprio passado: trata-se de uma autocrítica, inclusive.

Portanto, não estamos falando de uma “arte pobre”, como pretendeu Sílvio Romero, mas de um descolorido e tropeço voluntários, tanto na prosa machadiana como na miramarina em questão. A ambigüidade, a variação e a contradição em Machado são propiciadas pelas escolhas estilísticas e lingüísticas, pois, como já apontou Edward Lopes,

[...] a lingüística já provou que os códigos precisam incluir a possibilidade do desvio, do equívoco, e da construção anormal como propriedades normais suas, inerentes, de fato, a todo sistema semiótico, já que eles têm de ser, a nível da manifestação, multissêmicos, ambíguos, se quiserem funcionar como sistemas de comunicação eficazes, capazes de traduzir, com termos e regras velhas diferencialmente contextualizadas, novas experiências, assimilando as derivas e mudanças aportadas ao longo das eras pela transformação histórica das culturas. (1987: 5)

 

2

Como no presente ensaio pretendemos fazer uma leitura do conto “Uns braços” norteados pelo conceito de interpretação para Todorov, uma breve exposição acerca das idéias do teórico faz-se necessária. Cabe, pois, lembrar mais uma vez a definição de interpretação que ele nos fornece:

O termo interpretação refere-se [...] a qualquer substituição de um texto outro pelo texto presente, a qualquer processo que procure descobrir, através do tecido textual aparente, um segundo texto mais autêntico. (s. d.: 253)

Ainda seguindo a linha de pensamento de Todorov (s.d.), sabemos que a leitura de uma obra consiste em estabelecer relações entre cada um dos elementos de um texto e todos os outros, sendo estes passíveis de descrição pelo seu emprego específico, único e particular no texto.

O trabalho de projeção[1] recusa tanto a autonomia da obra como a sua particularidade; o comentário[2], por sua vez, é uma leitura atomizada, enquanto a leitura é um comentário sistemático. Durante o processo de leitura, o crítico é levado a colocar entre parênteses, ainda que momentaneamente, algumas partes do texto; a reformular, completar, alterar outras, quando sente uma ausência relevante. Conforme aponta Derrida,

Reciprocamente, aquele cuja “prudência metodológica”, as “normas de objetividade”, e as “muletas do saber” lhe impedem de emprestar algo de seu à leitura, nem sequer chega a ler. (apud Todorov, s.d.: 252)

Lembramos, ainda, que existem em cada obra pontos de focalização, ou seja, núcleos que dominam estrategicamente o restante do texto. Esses núcleos são escolhidos conforme sua importância dentro da obra, e é esta escolha que situa uma leitura em relação a outra. Essa atenção preferencial, por parte do leitor, é o que determina a existência de tantas diferentes leituras possíveis de uma mesma obra. Se cada leitura não privilegiasse certos e diferentes pontos do texto, poderia facilmente esgotar-se; poderíamos fixar a “boa” ou “correta” leitura de cada obra, o que seria extremamente redutor. Percebemos, portanto, o papel crucial do leitor diante do objeto literário.

Cabe lembrar que Wolfgang Iser (1978) teve o mérito de construir, ao lado de uma teoria da recepção, uma teoria do efeito, que busca compreender a literatura no momento em que o leitor com ela interage. Trata-se, pois, de um processo fenomenológico. Iser atribui um caráter de imagem ao significado, e atenta para o fato de que a construção de uma obra literária só se realiza com a participação ativa do leitor. Assim, instaura-se um fenômeno de constante percepção imagética, uma vez que é o próprio leitor quem constrói o objeto estético, podendo haver, portanto, diversas percepções diante de um mesmo texto. Tais percepções podem também variar no curso do processo de comunicação durante a leitura, já que nossa mente faz constantes mudanças perceptivas.

Em sua teoria do efeito, Iser valoriza textos que contêm vazios, que constituem a condição básica para o processo de comunicação. Isso porque eles se encontram intimamente relacionados à provocação do texto, para que o leitor reflita sobre os conflitos não solucionados.

 

3

No conto “Uns braços” encontramos também tais vazios, que variam de acordo com as interpretações dos leitores, ou, em outros termos, variam segundo as respostas que formulamos diante da experiência estética.

No conto em questão temos o personagem Inácio, que está hospedado na casa do solicitador Borges, para quem trabalha de agente. Isso ocorre por ordens de seu pai, a quem a idéia de que Inácio se tornasse procurador parecia muito lucrativa. O menino apaixona-se por D. Severina, esposa de Borges.

Logo no início do conto temos os primeiros sinais dessa paixão, já que o mocinho é repreendido por Borges por andar tão distraído, confundindo documentos e errando casas. Em seguida, o narrador faz a seguinte observação acerca de Inácio: “Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada”. Essa frase já aponta para o próprio final do conto, e poderia mesmo ser repetida, em se tratando de um adiantamento de expectativas, já que é exatamente o que ocorre: Inácio sonha com Severina, adivinha que está por perto, indaga-se, e acaba não sabendo de nada, nem do interesse correspondido, nem da fusão do sonho com a realidade. Imediatamente após, temos certeza do interesse de Inácio pela senhora, já que o narrador diz assim:

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Durante as refeições, Inácio procura ao máximo prolongar sua permanência na mesa para poder continuar na presença de D. Severina:

Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa.

Severina, por sua vez, trazia sempre os braços nus à mesa, podendo tratar-se de uma provocação, ainda que inconsciente, mesmo se já gastara todos os vestidos de manga comprida que possuía.

Ao apontar a diferença de idade entre Severina e Inácio, Machado é elegante e delicado; prefere a sugestão em vez da obviedade. Primeiro anuncia a idade do menino: “Tinha quinze anos feitos e bem feitos”, para mais a frente deixar-nos a par da idade da senhora: “Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos”. Assim como em “Missa do galo”, a sexualidade de um rapaz bem novo é despertada por uma mulher mais velha e casada. O leitor em sociedade, ou leitor real, como pensou Iser, sofre efeitos históricos produzidos pelo texto através da descrição de costumes e de padrões sociais, tudo isso experimentado pelo leitor durante o processo de recepção textual.

O sentimento de Inácio era “confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor”. Nesta passagem, Machado descreve exatamente o sentimento da paixão, que é por si só algo contraditório, dúbio e perturbador. Trata-se, aqui, do despertar da sexualidade do rapaz que implica, pelo menos, duas significativas barreiras a intervirem na relação entre Inácio e a mulher: Severina não só é mais velha como casada, e ambos estão inseridos na sociedade oitocentista, impregnada de valores morais e sociais muito rígidos. Severina, em seu íntimo, se sente, por vezes, lisonjeada com o interesse do rapaz por seus braços, e nós, leitores, só ficamos sabendo disso porque o narrador em terceira pessoa se mistura aos pensamentos dela em discurso indireto livre, mostrando uma onisciência cúmplice com a personagem.

Machado também trata a questão do tempo como uma abstração, tal como faz em outras obras suas, como nas Memórias Póstumas, mais especificamente no capítulo “O delírio”. Sim, o tempo é uma abstração, e não importa o que passou, mas o que vem. O tempo também pode curar tudo e fazer com que mudemos de idéia, mesmo as que parecem fixas, definitivas e trágicas, como no conto “Noite de Almirante”, quando Deolindo promete suicidar-se e não o faz. Em “Uns braços”, Inácio promete um dia fugir daquela casa, e também não consegue fazê-lo:

– Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais.

Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos.

Inácio, porém, não é o único a ter comportamentos contraditórios. Severina, principal figura do conto, adota uma postura essencialmente ambígua, contraditória e misteriosa, como muitas personagens femininas criadas por Machado de Assis, diga-se de passagem. Magalhães de Azeredo, na antes citada resenha intitulada “Machado de Assis”[3], datada de 1897, já apontava tal característica nas personagens de Machado:

Por isso, os personagens de Machado de Assis são geralmente caracteres indecisos, hesitantes, atormentados pela moléstia da dúvida; incoerentes? contraditórios? de acordo; mas verdadeiros por isso mesmo.

Na seguinte passagem do conto temos um exemplo deste tipo de comportamento por parte da mulher machadiana:

D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa. Rejeitou a idéia logo, uma criança! [...] Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada.

Primeiro nossa personagem rejeita a idéia de que o rapaz estivesse mesmo demonstrando interesse, certamente por obediência aos padrões sociais da época, para logo depois descartar essa rejeição: afinal, ela não podia ser amada ou desejada? D. Severina começa a procurar justificativas para a atitude do rapaz, por querer, justamente, se sentir mais viva, e conseqüentemente, menos submissa.

Magalhães de Azeredo faz ainda outra observação muito pertinente em se tratando das figuras femininas de Machado de Assis, e que se aplica muito bem a D. Severina, cujo nome já aponta para certa perversidade e conseqüente sedução, ou, conforme o próprio nome, severidade mesmo:

As mulheres, evocadas por Machado de Assis - para quem o eterno feminino é um vasto elemento moral -, têm de ordinário uma soberania de beleza, de sedução, de resistência ou mesmo de virtude, que lhe confere a vitória na luta com o sexo rival. Perversa, em rigor, não vejo nenhuma; perturbadoras há muitas, e de penosa decifração.

D. Severina, visivelmente perturbada com a presença de Inácio em sua casa, passa também a devanear e a assumir um comportamento semelhante ao do rapaz. Na passagem seguinte, a atitude do solicitador pode ser uma simples repressão, mas pode ser também que estivesse desconfiando de algum interesse por parte de sua mulher e de seu escrevente. Trata-se de um vazio que o texto cria e que ao leitor cabe preencher, porque a narrativa machadiana não se compromete em solucionar os conflitos que ela mesma cria:

– Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.

– Não tenho nada.

– Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...

A sujeição feminina encontra-se também manifesta na passagem em que Severina teme acariciar seu próprio marido por medo de irritá-lo ainda mais: “fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais”. No entanto, como quem se indigna com essa submissão, Severina tem atitudes mais que ousadas para uma senhora casada inserida na sociedade brasileira oitocentista. Como achasse por bem observar o rapaz Inácio antes de tomar uma atitude inapropriada e precipitada, aceitou estrategicamente que tudo fora apenas ilusão, e “percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo.”

Machado, através de seu texto, consegue transportar o leitor de qualquer época para dentro do seu conto, fazendo com que haja uma real comunicação entre texto e leitor, que, por sua vez, consegue se inserir de tal modo na própria narrativa que passa a vivenciar as mesmas experiências dos personagens, como se de fato estivesse fazendo parte daquele contexto, daquele exato momento histórico em que surge a narrativa.

Numa atitude tipicamente confusa, Severina conclui que se tratava de uma criança e que não havia o que temer. A partir disso, assume um comportamento essencialmente perturbador, indeciso e incoerente.

Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

Por fim, na conclusão do conto, temos a fusão do sonho com a realidade. Inácio está dormindo em sua rede, e sonha com Severina encarando-o, pegando-lhe nas mãos, cruzando-as nos braços, e dando-lhe um beijo na boca. Este exato momento do sonho coincide com a realidade, pois que Severina de fato beija o rapaz para de imediato sair do quarto, assustada, confusa e arrependida com sua atitude. E não somente por vergonha, mas como forma de punir a si mesma por tamanha ousadia. É possível assim interpretar seu gesto, porque Severina passa a cobrir os braços à mesa, estabelecendo também uma punição ao próprio rapaz, a quem atribui uma parcela de culpa. A princípio Inácio não percebe que o famoso par de braços não mais está à vista, tão embriagado estava pela sensação do beijo. Ao final, o rapaz deve ir embora da casa do solicitador, mas não consegue despedir-se de Severina, que diz sentir uma forte dor de cabeça. O mocinho jamais saberia que não foi um mero sonho, muito embora nunca mais viesse a achar sensação igual a daquele domingo pela vida afora.

 

4

Machado de Assis, como nossa análise evidenciou, incita o leitor a criar um significado próprio para a obra. Isto porque a narrativa não constitui uma reprodução da realidade pragmática. Em nenhum momento o narrador interfere no sentido de julgar as atitudes de Severina e de Inácio. Apenas coloca o leitor diante das ocorrências. As perspectivas textuais orientam as linhas de leitura, e não podemos atribuir a elas uma escala hierárquica de valor, como é comum nos contextos pragmáticos. Aí é que se espera que as ações de sujeitos sejam guiadas por convenções acordadas e aceitas socialmente. Já no contexto ficcional machadiano, as tais regras são suspensas. Além disso, uma única perspectiva não produz o significado do texto, pois tal significado é resultado da convergência das diferentes perspectivas que se cruzam num específico ponto de encontro (meeting point), e que só é determinável pelo ponto de vista do leitor. O significado do texto não está dentro dele, nem fora; é um efeito a ser experimentado, não mais um objeto que se define. É, portanto, resultado da compreensão do leitor.

A literatura de Machado, não se comprometendo com soluções prontas, valoriza o papel do leitor, assim como Iser atribui ao leitor um caráter essencial para a compreensão da obra. Machado e Iser se cruzam, portanto, neste ponto de encontro que tanto valoriza essa perspectiva textual tão fundamental.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1978.

BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Teoria do efeito estético. Niterói: EdUff, 2003.

––––––. Tópicos de teoria para a investigação do discurso literário. Rio de Janeiro: 7letras, 2004.

CAMPOS, Haroldo de. “Arte pobre, tempo de pobreza, poesia menos”. In: –––. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1990.

ISER, Wolfgang. The act of reading: a theory of äesthetic response. London: Routledge & Kegan Paul Ltd., 1978.

MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro da consagração. Rio de Janeiro: Eduerj, 2003.

MAGALHÃES, Valentim. “Correio literário”. In: O Estado de São Paulo, São Paulo, 31 de outubro de 1985.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da Literatura. São Paulo: Ática, 2004.

––––––. Protofeminismo no Brasil do Século XIX: Contribuições de alguns letrados. In: SANTOS, Francisco Venceslau dos; MONTEIRO, Maria Conceição. Sobre mulheres e suas representações. Rio de Janeiro: Caetés, 2005.

––––––. A literatura brasileira. Lisboa: Antônio Maria Pereira, 1896

TODOROV, Tzvetan. Como ler? In: –––. Poética da prosa. São Paulo: Martins Fontes; Edições 70, s.d. Coleção Signos.

Revista Moderna, Paris, 5 de novembro de 1897. Transcrito em Homens e livros. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1902. In: Machado (2003).


 

[1] Para Todorov, a projeção seria a primeira atividade sobre o texto literário, que é concebido como uma transposição feita a partir de uma série original. A projeção pode ser biográfica ou psicanalítica; crítica ou sociológica; filosófica ou antropológica.

[2] O comentário seria uma segunda atividade sobre o texto, complementar e oposta, tendo por mais relevante característica sua inferioridade em relação à obra comentada, procurando explorar seu sentido, e não traduzi-lo. Fidelidade ao texto, portanto, é o princípio motriz do comentário; a paráfrase, seu limite.

[3] Revista Moderna, Paris, 5 de novembro de 1897. Transcrito em Homens e livros. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1902. In: Machado, Ubiratan. Op. Cit.