Negritude e Poesia Brasileira
um
olhar sobre Luiz Gama e Solano Trindade
[1]

Lenice Trajano da Costa (UESB e FFJC)
Verlaneyde Maniçoba de Sá Koch (UESB)

 

A negritude são negros no mundo que lutam por negros, são negros da terra que lutam pela terra. São negros nas terras enjeitados de todas as terras. São negros oprimidos lutando pela vida. (Henrique Cunha, apud Damasceno, 2003: 15).

 

Durante mais de três séculos de escravidão, os negros trazidos para o Brasil tiveram suas culturas e raízes escamoteadas pelo modelo político-social vigente. Após a “abolição oficial da escravatura no Brasil, em vez de criar políticas de integração dos negros por meio de programas de escolarização e saúde, a classe detentora do poder preferiu esquecê-los. Nessa nova aparente condição, embora não mais fossem escravos, não atingiram a cidadania, pois durante quase cem anos nem sequer figuraram como problema social ou cultural a ser resolvido no país, como se apenas a liberdade oficial lhes garantisse todas as condições de sobrevivência numa sociedade em que passaram a competir em condições da mais absoluta desigualdade.

Em pleno século XXI, a sociedade brasileira continua a eximir-se de sua responsabilidade por ter mantido durante séculos a escravidão, escondendo a exclusão e a intolerância raciais através do mito da “democracia racial” e estereótipos do tipo ”o brasileiro é um povo amistoso e cordial”, “negro de alma branca”, etc. Apesar de hoje haver uma política afirmativa que tenta preservar a cultura dos afro-descendentes, a sociedade brasileira continua a submetê-los a uma realidade não muito distante das senzalas.

Embora desde sempre tenha havido resistência negra à escravidão (como nos exemplos de Zumbi e de outros tantos quilombolas e no do poeta Luiz Gama), e mesmo o engajamento de não-negros à causa anti-escravista (como no caso da Conjuração Baiana e dos promotores da Confederação do Equador, ou ainda, do poeta Castro Alves), o processo de escravização negra quase eliminou todo traço de identidade desses povos, pois, logo após a abolição, no início da República, a pouca documentação sobre o tráfico negreiro e construções típicas de uma sociedade escravocrata (senzalas, pelourinhos, etc.) foram destruídas por ordem do ministro Rui Barbosa, que pretendia, assim, “eliminar do solo da pátria a escravidão (...) por honra à pátria e deveres fraternais de solidariedade para com a grande massa de cidadãos que, pela abolição do elemento servil, entraram na comunhão brasileira”. (Schwarcz & Reis, 1996: 81). Para os negros, essa crueldade foi ainda pior que a própria escravidão, na medida que lhes eliminou o passado, de forma que o atual conhecimento sobre a cultura negra foi, em sua maior parte, transmitido oralmente, conforme destaca Colina (1982: 7): “nossa História/Estória foram mantidas boca-a-boca. E de fogueiras a bocas-de-fogão e mesas, perduram até hoje, questionando a verdade encapuzada da história estabelecida”.

Depois de um passado de servilismo e de marginalidade social após a abolição, a tarefa maior com a qual o negro se defronta hoje é reconstruir sua identidade coletiva, na qual a comunidade se insere plenamente como sujeito, processo esse que também envolve a construção da auto-estima do negro, da valorização e do amor à suas raízes culturais e de sua adaptação ao mundo contemporâneo.

Esse processo de reconstrução de identidade se dá em todo o seu significado e importância quanto mais forem lembradas suas origens: uma sociedade escravista, cujo objetivo era destruir a identidade do negro e dominá-lo. Segundo Frizotti (1998: 113-4), “ideologicamente, esta destruição era reforçada pela brutalização da relação branco/senhornegro/escravo”.

Além da violência física, os negros eram submetidos a uma violência moral, na medida em que eram isolados de suas referências, sendo-lhes negados história e passado, controlando-se sabiamente as manifestações étnicas e culturais, demonizando-se sua vivência religiosa: “Nem os reis eram reconhecidos nesta terra, (...) nem a língua, (...) nem os sacerdotes, os ritos, os templos sagrados”. (Frizotti, apud Silva, 1998: 113).

Outra manifestação dessa violência moral talvez maior que a violência física –, encontra-se na imagem do negro veiculada por essa sociedade, como se nos seguintes excertos, retirados de textos da época colonial:

São muitos deles tão boçais e rudes, pondo seus senhores diligência em os ensinar, cada vez parece que sabem menos. (Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, apud Fragoso, ([s.d.]: 297)).

Entre essas gentes gente que mais tem de burro que de gente. Há alarves em Guiné tão rudes e bossais  que o vosso poder lhes poderá meter o Padre Nosso na cabeça. Há Minas tão brutos e incapazes, que mil vezes nos havemos de benzer deles, primeiro que eles aprendam a benzer-se. (Fragoso, ([s.d.]): 205-6).

ou, ainda, na definição de escravo constante da Consolidação das Leis Civis do Governo Imperial: bem móvel, semovente, equiparado aos animais.

Guardadas as devidas proporções, ainda hoje prevalece esse mau trato moral na forma pela qual o país priva o negro do exercício pleno de sua cidadania e pela imagem que dele apresenta.

Desse contexto, resulta, no Brasil atual, a grande importância da literatura negra, manifestação artística cujo surgimento, segundo Bernd (1988), está ligado à compreensão do conceito de negro, termo que pode nos remeter a duas realidades: “tanto (...) à ofensa e à humilhação, quanto” à “expressão de orgulho”. (Bernd, 1988: 96). Ainda segundo essa estudiosa, ”através da poesia, o negro se liberta da imagem quase sempre estereotipada com que foi apresentado desde sua chegada ao Novo Mundo”.

Quando se discute a legitimidade da expressão poesia negra, tem-se costumeiramente apontado para temáticas relacionadas ao combate ao racismo e à miséria. Hoje, porém, encontram-se motivos como o amor, o erotismo, a beleza, assim como a aliança entre música e poesia, através do samba, do pagode, maracatu, congada, reggae, etc., o que parece coincidir com a avaliação de Fernandes (1972, p. 12-5), para quem, ao lado da religião, as artes, em geral, e, sobretudo,

...a poesia, o teatro (...) permitem chegar ao homem negro, às ambições e frustrações mais profundas e ao que há de irremediável e irredutível no empobrecimento humano e cultural de uma sociedade que converte a democracia racial em um falso idealismo.

Nesse sentido, a profundidade de uma consciência negra para uma nação mestiça é fundamental e a expressão artística foi o meio que inúmeros poetas encontraram para combater e libertar seu povo do preconceito e integrá-los à sociedade. O discurso poético, então, é o locus onde afloram o conceito de negritude e a tomada de consciência. Daí, a necessidade da poesia negra, porque expressa a verdade de uma comunidade que fala de si própria com orgulho e expressão assumida.

Descobrimos que no Brasil há um número razoável de poetas afrodescendentes, mas suas obras não são ainda tão divulgadas, não por conta da qualidade, mas pelo desinteresse do público leitor (talvez por puro preconceito) e, também, do mercado editorial. Logo, muito do material que conseguimos para analisar neste estudo foi fruto de árduo trabalho de pesquisa.

Através da pesquisa e da análise das obras dos poetas negros brasileiros Luiz Gama (1830-1882) e Solano Trindade (1908-1974), pretendemos enfocar a questão da negritude e, assim, contribuir para o rompimento da imagem negativa que sempre foi mostrada do negro não em nosso país, mas no mundo, e mostrar o quanto se sabe e o quanto para se revelar dos poetas negros.

Iniciemos pelo precursor da poesia negra brasileira, Luiz Gonzaga Pinto da Gama, filho de fidalgo e da escrava Luíza Mahim[2]. Embora tenha nascido livre, Luiz Gama foi vendido como escravo pelo pai aos dez anos para pagar dívidas de jogo. Autodidata, aprendeu facilmente as letras e a arte da retórica. Enveredou pelo campo do Direito, criou fama de bom advogado, ganhou muito dinheiro, aplicado na alforria de escravos. Suas atitudes desdobraram-se em múltiplas frentes de combate à escravidão: na ação jornalística, à frente da sociedade emancipadora, na participação de organizações secretas destinadas a facilitar as fugas e nos tribunais, onde afirmava: “Perante o Direito, é justificável o crime do escravo perpetrado na pessoa do senhor”. (Silva, apud Luna, 1976: 279).

Fazendo de sua poesia uma arma, ele denunciou as mazelas sociais decorrentes da escravidão de maneira distinta do que faziam outros poetas e escritores de seu tempo como Castro Alves –, que apenas tematizavam a problemática negra de forma superficial, mas engajada, generalizante, humanitarista, justiceira, advocatícia. Em Gama, vê-se o negro tratando de sua própria realidade, desnudando-a, criticando-a. Na poesia de Gama, não lamentos pela escravidão, mas denúncias contra o sistema.

Assim, em seu livro Primeiras Trovas Burlescas do Getulino, o poemaQuem sou eu?” apresenta um panorama da sociedade brasileira, mostrando que o negro está presente em todas as camadas sociais, ainda que, por preconceito, aqueles que conseguiram alcançar altos cargos queiram negar sua origem. O texto é um exemplo da criatividade e talento do poeta, que usa seus versos com precisão e maestria para mostrar a inconsistência do preconceito racial. Com humor ferino e inteligência, o poeta ridiculariza a pretensa fidalguia branca da elite brasileira, ao mesmo tempo em que assume sua negritude e mostra a expansão de sua gente nessa mesma sociedade.

Se sou negro ou se sou bode,
Pouco importa, o
que isto pode?
Bodes há de toda casta
Pois
que a espécie é muito vasta...                                (Gama, 2000).

Gama utiliza a sátira para criticar e desprezar o mulato que nega sua origem africana e, pretendendo-se puramente europeu, esforça-se por parecer branco, negando sua origem, e à força ostenta sua nobreza. No poema Sortimento de Gorras para a Gente do Grande Tom, ele registra sua indignação e denuncia:

Se os nobres desta terra empanturrados,
Em Guiné têm parentes enterrados,
E cedendo à prosápia,
ou duros vícios,
Esquecem os negrinhos seus patrícios
Se
mulatos de cor esbranquiçada
Já se julgam de
origem refinada                     (Gama, 2000)

Por outro lado, Gama é o primeiro poeta a cantar a beleza da mulher negra sem tentar imprimir-lhe características da musa branca, como faziam outros poetas de sua época, e evidenciado nos fragmentos abaixo:

... Mãe da água fora,
Talvez, se a cor de seus quebrados olhos
Imitasse a do
céu, se a tez morena,
Morena como a esposa dos cantares...           (Assis, 1973: 138)


...Onde vais à tardinha
Mucama tão bonitinha,
Morena
flor do sertão?                                 (Alves, 1990: 141)

Em ambos os textos, observa-se que foram atenuadas as características africanas por ventura existentes na mestiça e dignificada sua cor morena. No texto machadiano, essa dignificação é, ainda, enfatizada pela referência à morena bíblica.

Essa tentativa de embranquecimento da mulher negra é uma outra forma de tematização do negro na literatura nacional, decorrente mesmo entre autores negros contemporâneos, como denuncia Bernd (1988) e demonstra o texto abaixo, de Gil (1984):

Negra é a mão de quem faz a limpeza
Lavando a
roupa encardida, esfregando o chão,
Negra é mão, é a mão da pureza,

Negra é a vida consumida ao do fogão.
Negra é a mão nos preparando a mesa,
Limpando as
manchas com água e sabão.

Nos versos acima, o negro é tomado apenas como temática, não havendo elementos capazes de demonstrar nem uma intenção do poeta em revelar sua negritude. Além disso, o eu-lirico do poema faz parte daqueles que são servidos pelas mãos negras.

Por sua vez, Gama ressalta a beleza da negra por seus traços de negritude (pele escura e cabelos crespos), rompendo com as convenções sociais e estéticas que impunham – e, em certa medida, ainda o fazem –, a brancura como condição indispensável à beleza.

Uma comparação dos versos abaixo de Tereza, de Álvares de Azevedo, e de A cativa, de Luiz Gama, revela que, enquanto Álvares de Azevedo condiciona o seu amor à Tereza por suas características de brancura (os louros anéis dos cabelos, os verdes olhos safira), Gama canta a beleza da mulher amada, exaltando suas características negras:

O que eu adoro em ti é teu rosto
O angélico
perfume da pureza
São
teus quinze anos numa fronte santa
O
que eu adoro em ti, minha Tereza!

São os
louros anéis de teus cabelos,
O
esmero da cintura pequenina,
Da
face a rosa viva, e de teus olhos
A
safira que a alma te ilumina!                      (Azevedo, 1942)

Como
era linda, meu Deus!
Não
tinha da neve a cor,
Mas no
moreno semblante
Brilham
raios de amor.

As
madeixas crespas, negras
Sobre os
seios lhe pendiam
Onde os
castos pomos de ouro
Amorosos se escondiam.                                               (Gama, 2000)

Embora pouco numerosa, a obra de Luiz Gama é extremamente relevante no panorama da literatura nacional devido ao seu caráter inovador. O autor reivindica o reconhecimento do negro como fator significativo na formação do povo e da cultura brasileira, motivo pelo qual ele, o negro, não pode ser menosprezado ou negado. O clamor do bardo é pela liberdade e, principalmente, pela valorização e respeito de sua gente, pela glorificação de sua cor, numa reação aos preconceitos e estereótipos.

Esse mesmo tipo de reação pode ser encontrada na lavra do poeta negro pernambucano, Solano Trindade, nascido a 24 de julho de 1908, filho de um sapateiro e uma quituteira. Ao longo da vida, ele foi vítima de vários tipos de preconceito por ser negro, pobre e nordestino. Foi operário, colaborador na imprensa, atuante no cinema e mantenedor de um grupo teatral folclórico por vários anos. Com o objetivo de divulgar os intelectuais e artistas negros, fundou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-brasileiro. Editou seu primeiro livro em 1944 (Poemas de uma vida simples), o segundo, em 1958 (Seis tempos de poesia) e o terceiro em 1961(Cantares ao meu povo).

Como se vê, Trindade desenvolveu uma intensa atividade cultural voltada para o folclore e para a denúncia do racismo, prestando significativa contribuição à cultura nacional, quer pelas realizações, quer pela pesquisa dos fatos da cultura popular. Poeta que viveu o seu tempo, construindo uma obra de grande importância pela força da sua mensagem, confidencia na abertura do seu último livro:

Agradam-me profundamente os títulos de ‘poeta negro’; ‘poeta do povo’; ‘poeta popular’, às vezes dito de modo depreciativo - mas que me dão uma consciência exata do meu papel de poeta na defesa das tradições culturais do meu povo, na luta por um mundo melhor. Unir o Universal do Regional, num poema participante ou amoroso, num verso de protesto ou ternura – mas em palavras bem compreensíveis. Quem me ouvir, ouça. (Trindade, 1961)

Através de suas poesias de estilo popular, concreto e objetivo, diversas cortinas do mascaramento social são historicamente ameaçadas. Em suas obras, o humor e ironia são empregados para questionar a ordem escravocrata de outrora e a ordem social excludente de seu tempo. Ao manipular as palavras, o poeta reconstrói as relações e reorganiza as informações desencontradas, permitindo um olhar diferenciado. Nesse sentido, como se em resposta às agressões de outrora e às contemporâneas, o poeta escreve:

Eita negro!
quem foi que disse
que a gente não é gente?
quem foi esse demente,
se tem olhos não vê...                   (Trindade, 1961: 10)

Nesse trecho do poema Conversa, percebe-se um desgosto do eu-lírico por ver seu povo diminuído, além de uma expressão muito contida, cortante, nos dois últimos versos. Continua o poeta:

Que foi que fizeste, mano,
pra tanto falar assim?
— Plantei os
canaviais do nordeste

— E
tu, mano, o que fizeste?
Eu plantei algodão
nos campos do sul
pros
homens de sangue azul que pagavam o meu trabalho
com surra de cipó-pau.                  (Trindade, 1961: 10)

Nessas estrofes, há um questionamento a respeito de por que o negro ser tão maltratado, embora tenha contribuído para a prosperidade econômica e social do Brasil – com seu trabalho no plantio da cana-de-açúcar no Nordeste, cujos engenhos tornaram o país o maior produtor de açúcar da era colonial –, e de sua antiga metrópole e seus aliados com seu trabalho no Sul, no plantio do algodão que, uma vez exportado para Portugal e daí para a Inglaterra, contribuiu para o desenvolvimento da indústria têxtil desse país e para a própria Revolução Industrial iniciada, berço do capitalismo contemporâneo.

Porém, é na última estrofe que a angústia se revela com maior intensidade:

Basta, mano,
pra eu não chorar                          (Trindade, 1961: 10)

Em todo o poema, o autor utiliza-se de uma narrativa para denunciar o mundo que negou o negro como ser humano e sempre o condenou a não ser. Há no texto uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva e conclama os negros a se conscientizarem, a assumir orgulhosamente sua identidade e a lutar contra a discriminação.

A imagem que o Brasil passa de nação em que diferentes grupos étnicos convivem em relativa estabilidade não é verdadeira, pois os negros sofrem preconceito de todo o tipo, apesar dos eufemismos que o camuflam, sobretudo depois que o país passou a se reconhecer mestiço e a criar alternativas de afirmação para afro-descendentes. De toda forma, isso reproduz uma verdade dada, uma justificativa para sociedade admitir incontestável a inferioridade deles e, assim, atribuir a essa visão estereotipada um caráter universal natural, tornando-os cada vez mais socialmente excluídos em função da maneira pela qual são representados: marginais.

O perfil do negro sempre foi colocado a partir de uma identidade global, havendo diferenças apenas no campo econômico social, entre ricos e pobres, o que propiciou sua despersonalização, pelo fato de seu corpo ser aprisionado pelos olhares que o excluem e revelam não nos modos como o negro é olhado pelo outro, como também na maneira como olha para si mesmo.

A questão do reconhecimento do negro é relativa, pois não basta ter pele escura para pertencer à comunidade de irmãos ou possuir os mesmos interesses. Segundo Gomes e Pereira (2001), ao lado da semelhança da cor, devem-se considerar outros fatores que tanto aproximam como podem afastar, isso porque muitos negros tiveram de se auto-negar para se afirmarem. É o que se percebe nos versos da segunda estrofe de “Negros”, constante em Trindade (1988):

Negros senhores na América
a
serviço do capital
Não são meus irmãos.                    (Trindade, 1988: 15)

Aqui, sente-se como se dá a tomada de consciência do poeta e como a auto-identificação liga-o ao destino de sua gente. Nesses e, mais ainda, nos últimos versos, o eu-lírico mostra que o reconhecimento se dá não pelos bens que se possui, mas pela negritude:

Só os negros oprimidos
escravizados
em luta por liberdade
são meus irmãos.                           (Trindade, 1988: 15)

No poema acima, o eu-lírico se coloca na condição de negro e fala de si mesmo, sem pretender definir sua identidade apenas por meio de ideologias em prol da classe menos privilegiada, porque sua ideologia/bandeira é muito mais complexa. Na construção da identidade do negro estão, portanto, incluídas experiências simbólicas enraizadas e integrantes de sua cultura, como a arte e a religião, bem como o espírito libertário desse povo que quer ser visto não pelo corpo ou pela cor da pele.

Nesse sentido, no poema abaixo, do livro Poemas de uma Vida Simples, verifica-se a construção da identidade pessoal por meio de um relato que perpassa pela reconstrução de imagens da infância para o fluxo da memória dos labores e acontecimentos da vida adulta para, enfim, chegar à conclusão da imutabilidade de sua condição e caráter:

Poema Autobiográfico

Quando eu nasci,
Meu pai batia sola,
Minha mana pisava milho no pilão,
Para o angu das manhãs...
Portanto eu venho da massa,
Eu sou um trabalhador...

Ouvi o ritmo das máquinas,
E o borbulhar das caldeiras...
Obedeci ao chamado das sirenes...
Morei num mucambo do "Bode",
E hoje moro num barraco na Saúde...

Não mudei nada...                          (Trindade, 1944: 78)

No poema Para que vim, do mesmo livro, Trindade apresenta o conteúdo da sua esperança (cuidar de jardins, oferecer flores aos deuses e às mulheres, trabalho, liturgia e amor), algo insondável em tempo de guerra; por isso, é preciso mudar de atitude e atualizar o conteúdo da esperança às contingências históricas, transformando-o numa luta pela paz. Nesse processo, não há repostas prontas, nem o próprio Deus está presente, como uma mão invisível, para preencher o lugar humano, a tarefa de fazer a história. É isto que o poeta parece querer dizer:

Eu vim para cuidar de jardins
Plantar coloridas flores
Regá-las ao
sair do sol
Fazer lindos buquês
E ofertá-los aos
deuses e às mulheres.

Mas ameaça de guerra
E os
jardins não sobreviverão ao fogo
Não levarei flores aos deuses
Nem às mulheres
Pregarei a paz.                                              (Trindade, 1944: 62)

Em sua poesia, Trindade também ressalta o valor da beleza da mulher negra, como se pode ver no poema abaixo:

Linda Negra

Naquela noite
ficou o teu olhar branco
vagando no escuro
entre ternura e medo
teus olhos grandes
dançavam como loucos
na música do silêncio

Eu era animal e poeta
a procurar em ti
o que perdi em outra

Linda negra.                                  (Trindade, 1961: 79)

Em todas as suas dimensões, a poesia de Trindade revê as relações entre negros e não-negros na sociedade brasileira, como também indaga sobre o grau de aceitabilidade da condição de homem de pele escura. Não se trata de um discurso de autocomiseração pelo passado de sofrimento do povo negro nesse país, mas de uma busca de identidade por meio de uma reflexão histórica e pela valorização das virtudes e capacidades criativas e de luta desse povo.

Se olhadas numa perspectiva comparatista que leve em conta as demandas de seus diferentes momentos históricos, as obras de cada poeta enfocado no presente estudo apresentam similitudes e (des)continuidades temáticas. Todavia, acima de tudo, o que as une é o fato de serem expressões artísticas de uma etnia socialmente marginalizada devido à injusta condição de servilismo que outrora ocupara e que hoje enfrenta a tarefa histórica de reconstruir sua própria identidade para adaptar-se às exigências do mundo contemporâneo e resistir, desta vez, ao discurso hegemônico da globalização das economias e do apagamento de culturas minoritárias em favor da cultura de base judaico-cristã, ocidental e capitalista.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. In: Rosa Helena Blanco & Márcia Rios da Silva. (Org.). Estampa das Letras: literatura, lingüística e outras linguagens. Salvador: Quarteto, 2004.

CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: GRD, 1987.

CASTRO ALVES, Antônio de. Canto da esperança: poesia social, libertária e lírica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

COLINA, Paulo. Antologia contemporânea da poesia negra brasileira. São Paulo: Global, 1982.

DAMASCENO, Benedita Gouveia. Poesia negra no modernismo brasileiro. 2ª ed. Campinas: Pontes, 2003.

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difel, 1972.

 

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Visibilidade e ocultação da diferença: imagem de negro na cultura brasileira. Belo Horizonte: PUC-Minas, 2001.

FRAGOSO, Frei Hugo. O etnocentrismo na primeira evangelização do Brasil. Convergência, 233, 199?.

FRIZOTTI, Heitor. O resgate da identidade negra. In: Antônio Aparecido da Silva (org). Existe um pensar teológico negro? São Paulo: Paulinas, 1998.

GIL, Gilberto. Raça humana. São Bernardo do Campo: Emi-Odeo/WEA, 1984.

GAMA, Luiz Gonzaga Pinto da. Primeiras trovas burlescas e outros poemas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HISTÓRIA negra. parte 2. Disponível em: www.racablac.vilabol.uol.com.br./historiablac.htm

LUNA, Luiz. O negro na luta contra a escravidão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra/INL, 1976.

ASSIS, José Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973, v3.

PEREIRA, Edimilson de Almeida & GOMES, Núbia Pereira de M. (2001). Ardis da imagem: exclusão étnica e violência nos discursos da cultura brasileira. Belo Horizonte: Maza/ EDPUCMG.

RACISMO: o gato que continua. Disponível em www.racablack.vilabol.uol.com.br/racismo.htm

SCHWARCZ, Lilia Moritz & SOUZA REIS, Letícia Vidor de. (Org.). Negras imagens: ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil. São Paulo: EDUPS, 1996.

TRINDADE, Solano. O poeta do povo: Solano Trindade. São Paulo: Cantos e Prantos, 1999.

TRINDADE, Solano. Tem gente com fome e outros poemas. Rio de Janeiro: [s.e.], 1988.

www.terrabrasileira.net/floclore/origens/africana.cultura.html

www.portalafro.com.br/artesafricana.htm

www.feranet21.com.br/artes/culturanegra.htm


 


 

[1] Trabalho Final da disciplina Seminário Interdisciplinar de Pesquisa do curso de Letras do Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias do Campus XXIV da Universidade do Estado da Bahia, feito sob a orientação do professor João Evangelista Neto e co-orientação do professor Ricardo Tupiniquim Ramos e apresentado como comunicação oral ao X Congresso Nacional de Lingüística e Filologia (Rio de Janeiro, UERJ, 21 a 25/08/2006).

[2] Esta mulher levou a vida a conspirar contra a escravidão e teve seu nome ligado às rebeliões dos negros muçulmanos na Bahia, mulher inteligente e rebelde, tão convicta que fez de sua casa quartel general de todas as revoluções negras na Bahia.