ESTRATÉGIAS DE RELATIVIZAÇÃO
NA ESCRITA PADRÃO DO PORTUGUÊS
BRASILEIRO E EUROPEU

Elenice Santos de Assis Costa de Souza (UFRJ e UFRRJ)

 

Sabe-se que há na língua portuguesa três estratégias de relativização: uma gerada por movimento, deixando uma lacuna não preenchida (vestígio), e considerada padrão (exemplos 1 e 2); outra gerada por apagamento, denominada cortadora (exemplo 3); e uma terceira, conhecida como copiadora, ou relativa do pronome lembrete ou cópia, na qual a lacuna deixada pelo movimento é preenchida por uma pró-forma ou por um SN (exemplo 4).

Exemplo 1

Curvei-me para amarrar o cadarço dos sapatos naquele chão que Dante pisou sem Beatriz e, ao levantar a cabeça, distraído, senti nos olhos pela primeira vez a luz de Florença - uma luz aveludada, sem a qual não teria havido a Renascença. (Andrade, Luís Edgar de. Como esses primitivos. Jornal do Brasil, 02/06/03.)

Exemplo 2

Faltam menos de dois meses para o grande acontecimento astronómico de 2005. Tem lugar na manhã de segunda-feira 3 de Outubro. É um eclipse anular do Sol que atravessa o norte de Portugal e pode ser visto em todo o país. Ao contrário de eclipses parciais a que temos assistido, este evento não poderá passar despercebido. (Crato, Nuno. A caminho do eclipse. Expresso, 18/08/05.)

Exemplo 3

Encaixava com a minha família até o ponto (em) que encaixava melhor com as babás. Comparecia às suas festas nos seus quartos (naquele tempo as dependências de empregados das casas equivaliam a um amplo quarto-e-sala moderno), (a)onde iam as outras empregadas da casa e também as da vizinhança e seus noivos eternos. Lá elas me mostravam os seus enxovais guardados em malas, tenho a impressão que para sempre. (Dahl, Maria Lúcia. O quebra-cabeças. Jornal do Brasil, 01/11/02.)

Exemplo 4

Vai por aí um coro de indignação com a nomeação de Fernando Gomes para administrador da Galp Energia. Um coro que causa alguma perplexidade.[1] (Lima, José Antônio. Gomes e os gestores públicos.  Expresso, 02/06/05.)

Dentro desse quadro, é de se esperar que a primeira estratégia citada seja a privilegiada nas práticas de ensino do vernáculo em detrimento das outras, embora não seja a mais usada na modalidade falada da língua, como já foi comprovado por várias pesquisas.

O presente estudo correlaciona-se à hipótese de Kato (2005) de que o vernáculo é um, e a língua portuguesa (escrita) ensinada nas escolas é outra; tese defendida também por Mattos e Silva (2004). Assim, não é difícil constatar que a estratégia preconizada pelas gramáticas normativas e pelos manuais de redação e estilo, quando é apre(e)ndida pelos nossos estudantes – principalmente os de ensino fundamental e médio –, processa-se com dificuldades visto que não faz parte do seu vernáculo. Além de, na escrita, nossos alunos preferirem a estratégia cortadora, a ampliação do emprego do morfema relativo onde também tem sido observada nos textos escritos pelas gerações mais jovens.

Partindo do pressuposto de que uma das principais fontes da língua escrita padrão são os textos jornalísticos, principalmente aqueles publicados nos jornais e revistas de grande circulação, os dados aqui analisados foram coletados dos seguintes periódicos: Jornal do Brasil e O Globo, para a variante brasileira; Expresso, Diário de Notícias e JN, para a variante européia. Foram usados artigos assinados e não assinados dos anos de 2005, 2004, 2003 e 2002.

Tendo em vista que o norte da pesquisa era o exame dos supostos “desvios” da variante escrita padrão, os dados nos quais o morfema relativo era o que nas funções sintáticas de sujeito, objeto direto ou predicativo não nos interessavam, salvo quando apresentavam algum comportamento lingüístico relevante. Os dados que permitiriam a análise da estratégia cortadora eram aqueles nos quais o morfema relativo exercia as funções sintáticas de objeto indireto, oblíquo (argumental ou não argumental), adjunto adnominal e complemento nominal.

O outro tipo de dado relevante em função dos objetivos desta pesquisa é aquele com morfema relativo onde, também alvo de controvérsias e de dificuldades de emprego de acordo com a variante padrão. Por fim também foram coletados dados em que o morfema quando funcionava como relativo, caso, em geral, que não é levado em consideração nas gramáticas normativas nem nos livros didáticos. Assim, as sentenças relativas que não satisfaziam os critérios acima estabelecidos não foram codificadas, embora constituíssem a maioria das ocorrências de relativização.

Foram coletadas 113 ocorrências do PB, e 112 do PE perfazendo um total de 225 dados, que foram analisados sob a luz da Teoria Gerativa. Segundo tal enfoque, as sentenças da língua se organizam em função das relações de predicação. Além dos verbos, “palavras predicativas por excelência” (Mateus et alii, 2003: 183), alguns nomes substantivos, adjetivos e advérbios também podem projetar argumentos necessitando, assim, de complementação. No entanto só os verbos podem atribuir caso (nominativo, acusativo, dativo), os nomes não podem fazê-lo.

Desse modo, com base nas relações gramaticais e esquemas relacionais propostos por Mira Mateus et alii (2003), os 225 dados do corpus foram analisados e codificados.

Segundo Mateus et alii (2003:655), “na sua modalidade mais típica, as relativas são formas de modificação de uma expressão nominal antecedente, mas podem ser igualmente uma forma de modificação de uma outra oração”. Partindo dessa definição, o antecedente modificado pela relativa não precisa, necessariamente, fazer parte de uma oração. Mas essa não é, em geral, a descrição feita nas gramáticas normativas, nos manuais de redação e estilo nem nos livros didáticos. Contudo, no uso real da língua, deparamo-nos com dados como o seguinte.

Exemplo 5

Dez livros [que mudaram o mundo] (Crato, Nuno. Dez livros que mudaram o mundo. Expresso, 25/08/05.)

O SN antecedente nem sempre faz parte de uma outra oração. Como o nexo semântico e sintático estabelecido por essas estruturas se dá entre a relativa e o antecedente, nada impede que este seja simplesmente um sintagma nominal.

O outro aspecto relevante já citado são os demais valores, além do espacial, assumidos pelo morfema onde. De fato, no corpus examinado, o valor locativo constitui o emprego predominante, mas não podemos fechar os olhos para o uso cada vez mais freqüente do valor nocional (cf. exemplos 6 e 7).

Exemplo 6

Com a perda dos meus pais e dos privilégios, fiquei reduzida a alguns pedaços meus e, com a nostalgia dos outros, fui fazer análise de grupo, onde parecia finalmente pertencer a alguma coisa. (Dahl, Maria Lúcia. O quebra-cabeças. Jornal do Brasil, 01/11/02.)

Exemplo 7

Contudo, o que emerge, nestes dias em que a guerra santa se mistura com o espectáculo catártico da morte, é a apropriação da máscara por cada rosto na multidão, lá onde somos persona de uma nova tragédia grega, enfrentando a sacerdotisa do ódio, tal como os médicos da Idade Média afivelavam ao rosto a máscara semelhante a uma cabeça de ave, para se protegerem da peste, enchendo os bicos das máscaras aladas com especiarias capazes de "purificar o ar" que transportava a morte. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Lavínia que fitou Medusa. [s/d].)

Embora qualquer falante nativo do português perceba como gramatical e aceitável o uso de quando como morfema relativo (cf. exemplos 8 e 9), as gramáticas normativas, em geral, não o incluem no quadro dos pronomes relativos (cf. Cunha, 1982; Lima, 1982; Cunha & Cintra, 1985; Bechara, 1999). Luft (1985:122) insere-o nesse quadro dentro de sua perspectiva tripartida de pronomes substantivos (que, quem, o qual, o que), adjetivos (cujo, o qual) e advérbios (como, onde e quando). Mateus et alii (2003:664) tratam do assunto em extensa nota de rodapé, mas não o assumem explicitamente no quadro desses morfemas.

Exemplo 8

Para a pouco cultuada memória afetiva da cidade, vale reavivar a nossa lembrança. A história começa em 1853, quando foi aberto um longo caminho ligando a mansão da Chácara do Rozo, na boca do Vale das Laranjeiras, à Praia do Flamengo. (Atala, Fuad À sombra das palmeiras imperiais. Jornal do Brasil, 16/08/2002.)

Exemplo 9

No final dos anos 60, quando vivia na Roménia, sobressaltou-se certa noite ao sentir entrar no prédio a polícia política do ditador Nicolai Ceausescu. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS. O revolucionário Cláudio Torres, [s/d ].)

Tarallo (1983), em seu estudo exemplar sobre as estratégias de relativização no PB, provou que na modalidade falada da língua a estratégia cortadora é a privilegiada pelas classes média e alta constituindo, assim, a provável substituta da estratégia por movimento, ainda considerada padrão. O autor mostra também que as relativas com pronome lembrete (ou copiadora) sempre estiveram presentes no português; já a estratégia cortadora teria surgido na segunda metade do século XIX em conseqüência da mudança no sistema pronominal. As relativas com pronome cópia são menos aceitas pelos falantes mais escolarizados e de classes mais elevadas. A estratégia por movimento, embora não seja tão produtiva na língua falada, nem mesmo pelos usuários dessas classes sociais, está presente no conhecimento gramatical passivo desses falantes e é reconhecida como a padrão. Na língua falada, os dados têm apontado para uma mudança que culminaria com o desaparecimento da estratégia por movimento e a supremacia da estratégia cortadora, que co-existiria com a do pronome lembrete.

E na escrita, o que vem ocorrendo? O mesmo autor afirma que há poucos casos da estratégia por movimento na fala, mas na escrita ela continua predominando. Nossos dados corroboram essa constatação tanto para o PE quanto para o PB.

Em um mundo onde a informação é um dos principais instrumentos de trabalho e meio de inclusão no mercado e na sociedade, a linguagem da mídia vem ocupando o lugar antes reservado aos textos literários no estabelecimento de um modelo para a língua escrita. O referido autor, que trabalhou também com o discurso da mídia, aponta o caráter conservador da escrita. No presente estudo, tendo em vista que os dados levantados são todos da escrita midiática, os resultados não poderiam ser diferentes: a estratégia por movimento é privilegiada nas duas variantes, na americana e na européia. Se por um lado Tarallo (1983) registra a atitude estigmatizante de dois informantes de classe alta diante da utilização de cujo na fala, em nosso corpus esse morfema é relativamente bastante empregado (13% dos 225 dados).

O caráter conservador dessa modalidade lingüística, como afirma Pagotto (2001: 40-41), não se justifica

...porque a escrita seja opaca a mudanças, mas porque a escrita é o terreno em que se joga um jogo mais amplo, de identidade nacional e de relações de poder mais amplas na sociedade, que se colocam acima das relações locais, ou etárias ou sexuais.

As ocorrências foram codificadas de acordo com os critérios do pacote de programas computacionais GOLDVARB2001, desenvolvido especificamente para pesquisas sociolingüísticas. No caso particular deste estudo, em função do pequeno número de dados, a análise não foi processada em termos de pesos relativos, só de freqüência de uso.

Todas as ocorrências que integram o corpus foram coletadas a partir da análise de 128 textos, sendo 75 escritos por brasileiros e 53, por portugueses. Como era esperado, em decorrência do registro e da modalidade aos quais pertencem os textos, a estratégia padrão é, nitidamente, predominante tanto no Brasil quanto em Portugal, conforme demonstra a tabela 1.

 

Tabela 1 – Distribuição das estratégias relativas segundo a variedade

 

Padrão

Não padrão

Total de oco

PB

106 (94%)

6 (5%)

112

PE

109 (96%)

4 (3%)

113

TOTAL DE OCO

215 (96%)

10 (4%)

225

Cumpre esclarecer que, em função do pequeno número de dados, as relativas cortadoras e copiadoras foram codificadas sob o mesmo rótulo (“não padrão”) constituindo, portanto, o valor de aplicação.

No caso das relativas cortadoras, as preposições apagadas são, à exceção de uma única ocorrência, monossilábicas e semanticamente mais esvaziadas.

Desse modo, as 10 ocorrências de relativas não padrão no corpus em estudo não são tão relevantes, nem do ponto de vista quantitativo (apenas 8%), nem do ponto de vista qualitativo. Elas não correspondem, em sua maioria, àqueles casos típicos das estratégias cortadoras ou copiadoras (cf. exemplos 3 e 4). As ocorrências transcritas a seguir (de 10 a 15) exemplificam o emprego da estratégia padrão com os morfemas relativos o qual, quem e cujo nas duas variedades do português aqui investigadas.

Exemplo 10

No âm­bito da economia, por exemplo, temos o crônico desequilíbrio ex­terno - no momento, em vias de ser solucionado conjunturalmen­te - diante do qual tanto o can­didato tucano José Serra quanto seu adversário petista Luiz Inácio Lula da Silva acenam para o eleitor com po­líticas de incentivo às exportações e à produ­ção no país de bens  ­importados. (O GLOBO. Tudo por fazer. 22/10/02.)

Exemplo 11

[O Presidente da República] Perdeu uma boa ocasião para ter uma atitude política exemplar e fazer respeitar a dignidade do Estado, do qual é o principal representante. (Lima, José Antônio. O Estado da baderna. Expresso, 08/06/06.)

Exemplo 12

Os políticos e os colegas de profissão com quem conversei, mesmo os que apóiam Lula, eram unânimes em ressaltar a certeza, pensando nos então quatro candidatos: "igual a Fernando Henrique, jamais". (Ventura, Zuenir. Contra o medo, Fernando Henrique. Jornal do Brasil, 19/10/02. )

Exemplo 13

Quem se desse ao trabalho de prestar atenção verificaria que foram inúmeras as vezes - muitas mais do que qualquer cidadão de um país moderno e politicamente avisado permitiria a alguém a quem deu licença temporariamente através do seu voto para gerir os seus interesses - que José Sócrates nos levantou a voz para nos admoestar, [...]. (Monteiro, Fátima. Lusofonia e défice democrático. Expresso, 12/09/05.)

Exemplo 14

E dentro dessa máquina arrecadadora uma das principais engrenagens é a CPMF, cujos resultados costumam seduzir autorida­des a perpetuar esse imposto dis­farçado de contribuição. Mesmo que se saiba dos seus efeitos da­ninhos sobre a economia. (O Globo. Sem desculpas, 22/01/03.)

Exemplo 15

Talvez seja excessivo o que Mourinho disse à «Visão»: «Sou o rosto de Portugal no mundo.» Mas o que não há dúvida é que ele é, hoje por hoje, o português de maior sucesso mediático em todo o mundo, mais que Figo, cuja estrela começa a empalidecer, mais que Cristiano Ronaldo, cuja ascensão ainda está a dar os primeiros passos, mais que Durão Barroso, cuja liderança da Comissão Europeia colhe mais críticas que elogios. (Santos, Nicolau. O rosto de Portugal. Expresso,  02/05/05.)

Outro aspecto relevante no que diz respeito à relativização são os sinais de pontuação empregados com essas estruturas. A orientação contida nas gramáticas normativas, nos manuais de redação e estilo e nos livros didáticos é a do emprego da(s) vírgula(s) com as relativas explicativas (consideradas aqui não restritivas). Mas além desse sinal, também são usados os parênteses, os travessões e, até mesmo, o ponto, como ocorre no exemplo 10.

Exemplo 10

Um país e um Estado que consente, sem consequências, a linguagem de taberna de Alberto João Jardim é um Estado que vai perdendo o respeito por si próprio. E cujos responsáveis políticos vão abdicando de se fazerem respeitar. (Lima, José A. O Estado na taberna. Expresso, 08/06/05.)

Pode-se afirmar, a partir da análise empreendida, que, no tocante às estruturas de relativização, na modalidade escrita considerada padrão, a estratégia copiadora prototípica inexiste, e a estratégia cortadora, prestigiada e mais freqüente na fala de pessoas com alto nível de escolaridade, é inexpressiva qualitativa e quantitativamente. Tais resultados comprovam que a norma dita culta do português do Brasil, estabelecida na segunda metade do século XIX e consolidada, principalmente, na primeira metade do século XX, ainda predomina na escrita formal.

A condição brasileira de submissão política, econômica e cultural, mesmo quase dois séculos após o desligamento político entre a metrópole e a colônia, reflete-se até os nossos dias, está arraigada na nossa cultura e, portanto, na nossa visão de mundo e de nós mesmos. Em outras palavras, nós, brasileiros, somos bastante obedientes à norma culta ao escrevermos, ainda que esta se distancie do nosso vernáculo. Eis aqui um dos grandes nós para o ensino de língua portuguesa nas escolas brasileiras.

Negar o acesso à língua portuguesa padrão é não só antidemocrático como perverso. O que não se deve fazer é ignorar a realidade lingüística do estudante, e a nossa própria, idealizando a prática de uma única norma para todas as situações de interação. “Dominar” uma língua é, antes de mais nada, saber que ela não é uma e, sendo várias, saber utilizá-las nas diferentes situações comunicativas de forma coerente.

Tendo o professor essa consciência e conscientizando seus alunos, o primeiro passo terá sido dado rumo a um ensino eficaz. Mas isso não basta! Travaglia (1997) defende, entre outras, a tese de que, principalmente no nível médio, devem-se instigar os alunos a ter uma postura crítica e científica diante dos usos da língua.

O referido autor estabelece uma correlação entre objetivos do ensino de língua materna, as várias concepções de gramática e as diversas metodologias. Para ele, o ensino de língua pode ser basicamente de três tipos: prescritivo (que visa à substituição de uma norma lingüística por outra, considerada ideal e superior), descritivo (que visa à descrição do funcionamento de qualquer variante de uma dada língua) e produtivo (que visa à ampliação das habilidades lingüísticas do educando nas mais diversas situações de interação).

Há, por parte dos alunos, dos pais e de muitos professores, uma preocupação excessiva com o ensino prescritivo em função de concursos públicos e vestibulares. Recentemente, contudo, principalmente depois da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, tem havido um relativo consenso de que o ensino do português deve ser prioritariamente descritivo e, sobretudo, produtivo.

A aparente facilidade de realizar essa proposta político-pedagógica rapidamente se esfacela quando nos deparamos com os alunos na sala de aula ou com uma reunião de planejamento. Segundo Castilho (2002), o ensino de língua portuguesa vem sofrendo não uma crise, mas três: a social, a científica e a do magistério. A primeira decorre do processo tardio (se comparado à Europa) de urbanização por que tem passado a sociedade brasileira com a progressiva vinda da população rural para o meio urbano culminando, entre outros fenômenos, com a mudança no perfil sócio-cultural do alunado dos níveis fundamental e médio. A segunda crise diz respeito às teorias lingüísticas e, grosso modo, decorre do embate entre algumas correntes centradas no enunciado, e outras centradas na enunciação, conflito que tem conseqüências diretas na formação do professorado. E assim se chega à terceira dimensão da crise – a do magistério. Além das graves falhas na formação dos professores, que os deixam em uma encruzilhada teórica e metodológica, estes vêm sofrendo uma vertiginosa perda salarial, resultando em desmotivação e desprestígio social. Soma-se a isso tudo a baixa qualidade dos livros didáticos que, com raras exceções, estão calcados no mito da unidade lingüística da língua portuguesa e centrados no ensino prescritivo e na concepção normativa de gramática.

Enfim, por vários momentos chegamos a pensar que esse problema é grande demais para nossa capacidade de resolução. Castilho (2002: 13) afirma que “a tarefa da atual geração de educadores é muito pesada: reciclar-se, reagir contra o círculo de incompetência e de acriticismo que se fechou à volta do ensino brasileiro, e lutar pela valorização da carreira”.

A complexidade da crise em que se insere o ensino da língua portuguesa no Brasil demanda soluções igualmente complexas, mas não impossíveis, desde que articuladas com o poder público, com as universidades, com os sindicatos de docentes, com os professores, com os alunos e seus pais, enfim, com os principais setores da sociedade envolvidos mais diretamente nesse processo.

Voltamos às questões, levantadas por Travaglia (1997), de concepção de língua e de gramática e dos objetivos pretendidos pela escola. Se a meta principal é ampliar a competência comunicativa sem perder de vista a pluralidade da língua em uso e a necessidade de uma gramática reflexiva, as três estratégias de relativização devem ser descritas, sem preconceito lingüístico, atentando para o fato de que, a depender das condições de produção do texto e dos fatores de coerência textual – contextualização, informatividade, intencionalidade, aceitabilidade, intertextualidade, para citar apenas alguns –, uma variante será mais adequada que outra. E, se mesmo assim, alguns alunos não conseguirem se apropriar da estratégia ainda considerada padrão ao construir seus textos (falados ou escritos), que eles sejam capazes de ler (no sentido pleno do termo) qualquer texto em que ela for empregada.

Em resumo, a análise dos dados revelou que: a) o morfema que é, indubitavelmente, o mais empregado, mesmo na língua escrita padrão; b) apesar da grande diferença entre a freqüência de uso do que e do onde, este é o segundo morfema relativo mais empregado; c) o qual e cujo ainda são bastante empregados no português escrito padrão; d) o morfema quando também deve figurar no inventário dos relativos; e) o morfema quem é o menos empregado; f) as relativas por movimento, nas funções oblíquas, ainda predominam na modalidade escrita padrão tanto em Portugal quanto no Brasil.

A análise aqui empreendida, em cotejo com outras pesquisas, confirma a hipótese de Kato (2005) de que a aquisição do português escrito no Brasil assemelha-se à aquisição de uma língua estrangeira (L2) tamanhas são as diferenças estruturais que caracterizam a fala informal e a escrita formal.

É evidente e natural que à independência política do Brasil em relação a Portugal suceda também a independência cultural e lingüística, ainda que esta seja mais lenta, gradual e sutil. Com lentes (nos sentidos d’aquém e d’além mar) provido(a)s de suporte teórico e desprovido(a)s de preconceito lingüístico, pode-se encarar a questão de forma mais coerente e isenta e constatar que o sonho romântico de Alencar de uma língua brasileira estaria mais próximo da realidade que o pesadelo colonialista de alguns escritores e estudiosos. Afinal língua é também uma questão política e, portanto, ideológica.

 

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[1] Embora essa não seja uma copiadora prototípica, o SN “um coro” é copiado na sentença em análise. Tal uso, na escrita, não é estigmatizado. Todos os dados do corpus são desse tipo.