A face do candidato Lula

Karen Muniz Feriguetti (UFES)

 

Introdução

Este trabalho está embasado em teorias americanas relativas à imagem: Goffman (1985) (na verdade uma reedição de 1975), à face: Brown & Levinson (1982) e às Máximas de Grice (1967). Entretanto prevenimos que procuramos nos isentar o mais possível do caráter sócio-político-ideológico, pois pensamos que isso poderia nos fazer fugir daquilo que idealizamos.

Num primeiro momento, chamou-nos a atenção a imagem mesma de Lula, em seguida, impactou-nos a sua linguagem em debates políticos e serão os recursos lingüísticos, extralingüísticos, bem como a héxica e a proxêmica. Esses recursos, utilizados na construção da face do candidato Luís Inácio Lula da Silva, é que serão avaliados para o efeito de sentido que buscamos. Quando realizamos esta investigação, levamos em conta não só a formação de face do candidato Lula, mas também a sua imagem e sua colocação frente ao público e aos outros debatedores. Devemos ressaltar também que o nosso estudo é apenas um pequeno e breve recorte da trajetória empreendida pelo candidato na corrida eleitoral, desta feita as colocações por nós realizadas dizem respeito única e exclusivamente aos Debates dos Presidenciáveis.

As pessoas vivem imersas em situações sociais as mais diversas e precisam ser aceitas e apreciadas, ou mesmo atingir objetivos e metas, para tanto podem se adequar àquela situação social específica para alcançar o sucesso. Avaliamos, então, esse comportamento e seus reflexos nesse recorte específico. Dentro dessa perspectiva, procuramos avaliar o discurso do candidato e de que forma esse discurso provocou a construção de uma imagem, como essa imagem criou uma impressão e como essa impressão construiu uma face. A face de Lula candidato.

A linguagem pode ser um espelho da tensão entre o firmar-se e o espatifar-se e sob esse aspecto torna-se mais difícil e mais penosa a exposição do “eu”, pois em conseqüência disso podemos ser logrados em nosso intento, já que toda a exposição pública gera essa tensão e pode nos “desmascarar”, pode nos despojar do nosso sentimento de bem estar. Não estamos inocentes quanto aos caracteres eminentemente políticos e ideológicos que permeiam as linguagens, procuramos apenas tentar responder a questionamentos pertinentes quanto à influência que a linguagem (que não vem sozinha) pode exercer na produção de uma imagem e conseqüentemente de uma face.

A linguagem é um dos aspectos formadores da imagem e dos mais importantes dentro da representação, e quando queremos dizer linguagem, estamos nos reportando ao leque de possibilidades que o ser humano possui para entrar em contato com o outro, para ter acesso a esse outro, para se fazer entender e se fazer aceitar por esse outro, para se mostrar a esse outro.

 

A imagem e a face
à luz da pragmática: conceitos

Em tempos de Pós-Modernidade, Big-Brother e Internet, o que mais importa é ver e ser visto. O planeta está saturado pela imagem e ludibriado por ela também, mas o problema vai mais além, estamos vivenciando uma época em que a imagem é tudo. Entretanto existe um tipo de imagem que não é formada somente pelo que vemos, esse tipo de imagem é estruturado por um conjunto de comportamentos dividido em camadas. Essa estrutura complexa pode delinear um país, uma corporação, um setor ou um indivíduo. Será com base nesses comportamentos é que teremos nossas impressões, um tipo de formação que vai além do que vemos, estabelecendo um conjunto uno que vai transparecer o objeto de nossa observação. Isso se aplica largamente a indivíduos, em especial na interação social, já que somos seres submergidos em vida social, para Goffman (1975) “A expressividade do indivíduo (e, portanto, a sua capacidade de dar impressão) parece envolver duas espécies radicalmente diferentes de atividade significativa: a expressão que ele transmite e a expressão que ele emite” (GOFFMAN, 1985: 12). A junção dessas duas atividades irão contribuir para que os indivíduos em interação possam deixar transparecer as características que possuem enquanto indivíduos, demarcando e sendo demarcados enquanto pessoas.

Brown & Levinson (1987) ao exporem sua teoria sobre a face, explicitam essa necessidade representativa de si mesmo que os indivíduos possuem e assim como Goffman (1985) acreditam nessa interação social, baseada muitas vezes na (re)presentação e na atuação expressiva complexa da qual lançamos mão inúmeras vezes: “Em vez disso, tratamos os aspectos da face como uma necessidade básica, em que todos os membros conhecem os desejos de todos os outros membros, e em geral os interesses de todos eles são parcialmente satisfeitos (BROWN & LEVINSON, 1987: 62; Tradução nossa). Essa figura do “eu socializado” também se forma por meio da linguagem, sendo, portanto, o uso dos discursos o que irá formar o que Brown & Levinson chamarão de face. Estruturadas neste percurso temos então a imagem, que usamos e que delineamos ao longo do tempo pelo nosso comportamento em muitas instâncias de nossas vidas, temos as impressões criadas pelo uso dessa imagem nas diversas instâncias em que temos vivido e compartilhado com diversas pessoas, sendo que essa impressão é propagada pelo meu comportamento diante de situações e de outros e por fim temos a “face”, uma noção mais voltada para o delineamento discursivo da minha imagem perante as pessoas do meu convívio direto e indireto.

As pessoas procuram em convívio social manter a sua imagem, preferencialmente, uma imagem positiva e de aceitabilidade em todas as instâncias possíveis, diremos então que a “face” é um dos dados na expressividade total de sua imagem, assim definida por Brown & Levinson (1987):

Nossa noção de ‘face’ é derivada de Goffman (1967) e do termo inglês popular, no qual sujeita o ato de quebrar a cara à noção de estar embaraçado ou humilhado ou ‘perder a face’. Então a face é alguma coisa que é emocionalmente investida, e que pode ser perdida, mantida ou realçada, e mais, ser mais constantemente atendida na interação (BROWN & LEVINSON, 1987: 61, nota 4. Tradução nossa)

Encontramos com base nesses pressupostos que a “face” é um dado discursivo entretecido por dados sociais. Ao nos expormos em ação e reação diretas com outros, procuramos construir uma face, aquela que nos identificará. Uma pergunta então nos assalta nesse momento: pode a “face” ser construída? Com base nos estudos da representatividade do eu em sociedade, realizados por Goffman, a resposta é sim, bem como acreditamos que a pessoa pode delinear uma face ao longo de toda uma vida e não se dar conta disso, ou mesmo não admitir isso; ou então quando se dá conta querer mudá-la, obtendo sucesso ou não nessa empreitada.

Com base nesses pressupostos percebemos que não somos constituídos de uma só “face”. Temos uma face positiva que queremos que seja amplamente divulgada e uma face negativa que procuramos não ressaltar, mas esconder. E essa Face Negativa consiste no “desejo que têm todos os membros adultos competentes que suas ações não sejam impedidas por outros” (BROWN & LEVINSON, 1987: 62. Tradução nossa). Entretanto desejamos que essa face seja admirável, aceita por todos e, portanto, positiva Em nossos desejos mais profundos está a satisfação social sem que tenhamos que abrir mão do que. somos verdadeiramente. Queremos ser amados e aceitos socialmente, principalmente por aqueles que admiramos e que estão em convivência direta conosco. E a despeito de todo esse forte desejo possuímos uma “face negativa” em que há um afrouxamento na representação, mesmo que queiramos nos apresentar realmente como somos, existe todo um ritual que nos impede de realizarmos esses desejos. A Face Positiva é um outro lado da moeda de nosso ser, em que entram regras, sem muita flexibilidade, para a convivência com outros indivíduos. Brown & Levinson (1987) a definem como “[...] o desejo que todos os membros possuem que suas realizações sejam ansiadas ao menos por alguns outros membros.” (BROWN & LEVINSON, 1987: 62, nota 4. Tradução nossa). E finalmente, numa tentativa nossa de definição, temos que a face é a imagem que a pessoa trabalha e burila ao longo de toda sua vida social na interação com outros membros da sociedade.

A Teoria da Face é uma teoria dependente da Teoria da Polidez, e dela não prescinde. Tanto Brown & Levinson (1987) como Grice (1967), revelam a polidez como um ato social de significada relevância para as representações. A polidez é socialmente controlada, isso significa que temos também níveis de polidez segundo os papéis sociais que representamos, no momento em que representamos. Ela é um aspecto importante para a interação lingüística, e irá regular inclusive esses níveis de relações que temos com outros indivíduos. Com base nas considerações até então tecidas, assim como existe a “face negativa” e a “face positiva”, existe uma “polidez positiva” e uma “polidez negativa” Isso vai depender do nosso comportamento social em interação com outros falantes, sendo preciso prestar atenção à função social da linguagem para sermos bem sucedidos. Segundo os autores:

No caso da ‘lingüística pragmática’ uma grande parte dos mal entendidos entre o que é dito e o que é implicado pode ser atribuído à menor ou maior polidez, assim o que concerne à ‘função representativa’ da linguagem pode ser suplementado com uma atenção para a ‘função social’ da linguagem [...] (BROWN & LEVINSON, 1987: 02 e 03. Tradução nossa; grifos nossos).

Advindo-se daí a noção de implicatura. O que vai revelar um maior ou menor grau de polidez serão as implicaturas produzidas por esse falante. Ser polido de uma forma positiva está relacionado à capacidade que a pessoa tem de não produzir implicaturas graves, sendo socialmente solidário e evitando ser grosseiro, agressivo.

Grice estabelece a polidez lingüística social sob a forma de Máximas, que ele subdivide em quatro: Máxima da Quantidade, Máxima da Qualidade, Máxima da Relevância e Máxima do Modo, regidas pelo Princípio da Cooperação:

Princípio da Cooperação: “Faça sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está engajado” (GRICE, 1982: 86). É necessário que haja cooperação para haver a fruição necessária para o diálogo, pois esse princípio é básico.

Quantidade: “A categoria da QUANTIDADE está relacionada com a quantidade de informação a ser fornecida [..]” (GRICE, 1982: 86) Dessa forma, em situação de fala em que se esteja envolvido, tirar isso para colocar na transparência e deixar no texto “1) Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requerido (para o propósito corrente da conversação); 2) Não faça sua contribuição mais informativa do que é requerido” (GRICE, 1982: 87, nota 32). Dentro disso pode-se afirmar que para se infringir essa máxima é necessário conceder menos informação do que o requerido ou ser super-informativo.

Qualidade:

Sob a categoria da QUALIDADE encontramos a super máxima ‘Trate de fazer uma contribuição que seja verdadeira’ e duas máximas mais específicas: 1) Não diga o que você acredita ser falso; 2) Não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência adequada” (GRICE, 1982: 87, nota 32).

Essa máxima destaca a importância da ética e da verdade, conforme Grice, espera-se do falante que sua contribuição possa ser genuína e não espúria, que suas enunciações possam comprovadamente ser acreditadas por quem as ouve.

Para a Máxima da Relevância a que ele denomina RELAÇÃO destaca sob o seu domínio uma única máxima: “Seja relevante”. Grice considera essa máxima problemática porque envolve questões que particularizariam demasiadamente as questões que a ela concerne, como: “que tipos de foco de relevância podem existir, como se modificam no curso da conversação, como dar conta do fato de que os assuntos da conversação são legitimamente mudados?” (GRICE, 1982: 87, nota 32). Mesmo a despeito das considerações pessimistas de Grice (1967), Dascal (1977) considera que é preciso traçar um perfil da relevância, possuindo por tese principal que

É indispensável distinguir vários tipos de relevância, a fim de fornecer uma explicação satisfatória da operação máxima R. Mais especificamente, tais tipos devem incluir duas noções bastante diferentes de relevância, uma ‘pragmática’ e a outra ‘semântica’ (DASCAL, 1982: 4, 107).

Modo: essa máxima está relacionada “[...] não a ‘o que é’ dito (como nas categorias anteriores), mas sim a ‘como’ o que é dito deve (ou deveria) tirar do texto para colocar na transparência ser dito, incluo a super-máxima _ ‘Seja claro’ [...]” (GRICE, H. P., op. cit., p. 87, nota 32, grifos nossos) Com uma certa ousadia podemos afirmar que o modo está atrelado às sutilezas, tão significativas no que diz respeito à polidez.

O aspecto da polidez a que iremos nos referir, será a transgressão ou não-transgressão das máximas conversacionais, o que Grice (1967) denomina implicatura:

Implicatura: implicatura é o que se intencionou dizer com o que foi dito, sendo para tanto avaliadas a utilização das Máximas.

Para esse autor o infringir qualquer dessas máximas, ou mesmo mais de uma delas ao mesmo tempo, acarretariam as implicaturas, aspecto primordial para a análise do grau de polidez, tanto positiva quanto negativa.

O outro ponto de extrema importância para nós reside na situação social em que está inserido o candidato, pois ela é uma situação não-natural, contudo não artificializa os momentos de fala, apesar de ser uma situação melindrosa, por ser um momento público.

 

A Formação da impressão
Expressividade x Expressividade Discursiva

Para composição de nossa imagem, podemos interferir no corporal, no vestuário, até no gestual e no tom da voz. É exatamente assim que os artistas compõem seus personagens, e é nesses termos que Goffman teoriza, criamos personagens e nos revestimos de personas.

Muitos são os teóricos que acham que o lingüista é aquele que cuida do caráter constitutivamente da língua e ao que unicamente a ela concerne, acontece que a língua é uma das partes expressivas a que o ser humano recorre para se comunicar, o corpo é o lugar privilegiado da expressão do ser humano, o gerador motriz do expressivo. Rector & Trinta (1985) assim avaliam:

Nos últimos vinte anos, enquanto a lingüística se voltava à pesquisa da aquisição da linguagem e do modo pelo qual o cérebro humano a estrutura (ou vice-versa), outras disciplinas se ocupavam com o estudo de outras dimensões da expressão do homem, partindo de aquisições teóricas das ciências humanas, não raro, completando-as com contribuições de algumas ciências naturais (RECTOR & TRINTA, 1985: 28).

Também Landowski nos reitera esse lugar privilegiado do significado que o corpo abrange, não só como co-produtor da linguagem, mas também como fluxo de sentido, pois é “[...] somente pela mediação da matéria, do significante e, finalmente, de seu corpo que o sujeito constrói suas relações com o mundo circundante enquanto universo de valores e presença de sentido.” Corpo e fala se entrelaçam, como num ponto crochê, até que não se saiba onde se encontra a linha e onde está a forma, porque forma e linha estão unidas na significação. Temos então que “[...] a mobilidade manifesta-se, no caso, por meio da plasticidade própria ao rosto, quer dizer, nos jogos de fisionomia, como o registro praticamente sem limite das mímicas e das expressões faciais, a cada instante mutantes [...]”

Assim, além das inserções lingüísticas do candidato, um certo abrandamento e uma certa receptividade fisionômica e corporal, são detalhes que formam um todo indiviso que pode ser avaliado em camadas: o cuidado com o rosto, o cuidado físico, barba aparada, cabelos cuidadosamente penteados; em seguida, um cuidado quase meticuloso com os movimentos corporais, mais contidos e próximos da receptividade, para então culminarem na inclusão quase afetiva da linguagem, bem como o cuidado ao se expor e ao opinar. Ainda sobre os cabelos chama-nos a atenção o fato de estarem grisalhos, bem como a barba. Fazendo-se uma leitura disso, temos aí os sinais de sua madureza etária e política, bem como uma representação icônica de confiabilidade e respeitabilidade. Dentre um leque de escolhas visuais que Lula poderia fazer, estariam a barba raspada ou o bigode, porém desde suas primeiras apresentações ao eleitorado ele vem ostentando a barba. Essa simples característica é representativa dele, seja por uma questão política e ideológica ou por uma questão pessoal. A forma suave com que se coloca pode ser observada por meio do gestual, sendo que antes de dar as suas respostas, havia sempre um sorriso, um abrandamento fisionômico e uma modalização da voz que não expressava a “emoção” deflagrada pelo ataque.

Queremos chamar a atenção para o sorriso, uma arma poderosa de simpatia e uma das expressões corporais representativa da ironia, uma forma refinada de agressividade. O sorriso por si só provoca um desarme quando é despertado, é o sinal claro do gostar e da receptividade, quando se sorri explicita-se claramente “eu te recebo e gosto de sua aproximação”, além de ser uma forma relaxada de lidar com situações embaraçosas, porque o sorriso descontrai e acaba por destensionar. Existe, porém, aquele sorriso que compõe e acompanha uma fala irônica. Percebe-se que houve o uso dos dois tipos de sorriso pelo candidato.

Esse todo composicional não pode prescindir de nenhum momento expressivo que signifique em seu conjunto, para que fique bem apreendido. Portanto faz-se necessário que a expressividade junto à expressividade discursiva seja avaliada como aspectos da face. Concordamos com Rector & Trinta (1985) quando afirmam que os aspectos relacionados ao não-verbal

[...] levam-nos a crer que não só da palavra vive o homem. Os trabalhos da sociolingüística, da lingüística antropológica, da etnolingüística, da filosofia da linguagem e da análise interacional, além de outros ramos do saber, estariam, porém, em conformidade com os interesses da lingüística (RECTOR & TRINTA, 1985: 40, nota 58).

O fato de considerar a expressão humana como um todo indiviso, a relação que o contexto sócio-cultural tem na formação da imagem e que os discursos têm na formação da face e da polidez, faz-nos ainda acrescentar que “Em outras palavras, o que se diz e como se diz e o papel que os movimentos corporais desempenham na mensagem. Nenhum destes níveis está isolado, quer estrutural, quer semântica, quer, ainda, pragmaticamente” (RECTOR & TRINTA, 1985: 41, nota 58).

 

A face de Lula
o exímio manejo das Máximas Griceanas

Ao analisarmos as falas do candidato, podemos percebemos o grau de polidez em que se encontra, colocando-se com formalidade. A formalidade contraposta à informalidade. Observamos no candidato Lula um grau de polidez elevado e elaborado, nesse ambiente de tensão e inóspito para isso, porém, na verdade, ambiente com que ele estava largamente familiarizado, já que nessa mesma situação esteve por três vezes. Chama-nos a atenção o reforço e o esforço para repisar constantemente a face positiva, construída passo a passo a cada detalhe e a cada Debate dos Presidenciáveis que o candidato participava. A deferência e cortesia acompanharam as falas por ele construídas ao longo desses. Essas falas pressupõem um não-relaxamento, um elevado grau de vigilância, bem como um grau de cortesia e urbanidade mais aparente. Isso vai ao encontro do que fala Goffman (1985), quando expõe que para se validar uma representação é necessário que ela seja coerente. Um outro dado importante, que nos chamou atenção, foi a maneira exemplar com que foi considerada a participação de Lula nos Debates Políticos, a ponto de ao longo deles não agredir diretamente nenhum outro oponente e assim foi reconhecida por Bóris Casoy no episódio que ora descrevemos:

Lula: Olha, Bóris, eu quero alertar o seguinte, eu quero lembrar a vocês o seguinte, eu nesses últimos treze anos sou o único candidato à presidência que está em primeiro lugar nas pesquisas que estou indo a todos os debates, não é praxe nesse país, portanto eu quero respeito, igualdade de oportunidade para todos.

Bóris: É verdade, e tem sido elogiado inclusive por mim [...]

Debate dos Presidenciáveis, Rede Record, 2002.

Nos aspectos concernentes às Máximas de Grice, vimos anteriormente que quanto maior o grau de polidez de uma pessoa, maior é a sua familiarização com o manejo das máximas, não podendo deixar de dizer, inclusive, que o seu domínio pressupõe um reconhecimento prévio da situação social que se está vivenciando. Desse modo numa conversação tida por natural o Princípio da Cooperação encerra a atuação das quatro máximas: a Quantidade, a Qualidade, a Relevância e o Modo, no Debate dos Presidenciáveis esse princípio atua de forma diferente, do ponto de vista esquemático ele tem suas bases assentadas nas regras propostas por cada emissora, assim a Quantidade vem regulada pelo tempo de participação e a Qualidade pode ser contestada pela oposição de um oponente à veracidade da afirmativa; quanto ao Modo e à Relevância, procedemos a uma avaliação dessas máximas e percebemos que a situação base se manifesta da seguinte maneira: quanto ao Modo, há um pedido de resposta do oponente alegando ofensa; quanto à Relevância pudemos ouvir algo nesse sentido: “o candidato X não respondeu a minha pergunta”. No que concerne ao candidato Lula pode-se perceber que ele lutou por meio do cuidado lingüístico para não se expor e avaliamos em sua participação um pequeno grau de violação às máximas Griceanas no que diz respeito a implicaturas graves, mas quando houve essa violação, foi com o objetivo claro de esfacelar a face do oponente.

Do ponto de vista da Qualidade não houve episódios em que foi-lhe dito que estava faltando com a verdade, fato que o deixou numa posição confortável, não havendo incidência de pedido de resposta por parte do candidato. Pode-se dizer o mesmo no que diz respeito ao Modo, pois não houve incidência de pedido de resposta por parte de outros oponentes e na única vez em que foi pedido, pelo candidato Serra, foi negado por se entender que não houve ofensa moral; o mesmo pode-se dizer no tocante a pedidos de resposta por parte do candidato, havendo um único pedido que foi prontamente aceito. Só que isso não significa que ele não tenha infringido a máxima do Modo, conforme afirmamos, houve momentos em que o candidato, a título de se defender, realizou a violação de uma ou mais máximas.

Do ponto de vista da Relevância foi o candidato menos requisitado no que diz respeito à afirmação acima, porém há um episódio que gostaríamos de destacar:

Serra (pergunta): Lula você há pouco disse o seguinte: que não se opõe à privatização por princípio, mas é o problema da forma, não foi? Você acabou de dizer isso. No entanto as mudanças constitucionais que permitiram as privatizações, inclusive da área de telecomunicações, e outras, o PT sempre tendeu a ser contra, não era na forma, era na autorização para privatização. E outra coisa, o PT votou contra a criação do FUNDEF - Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e do Magistério, que teve um papel tão importante para o Brasil. Por quê o PT votou contra? Por que essa dualidade, essa diferença do discurso e da prática?

Lula (resposta): Bem, primeiro porque nós vamos criar o FUNDEB, para melhorar ainda mais o sistema de educação no Brasil, porque hoje não basta uma criança ter progressão continuada, é preciso que a criança esteja na escola para aprender, e nós queremos melhorar a qualidade de ensino do nosso povo. É por isso que estamos propondo aumentar o crédito educativo, é por isso que estamos pensando em aumentar o número de doutores nas universidades brasileiras, porque sem centros de excelência nós não vamos a lugar nenhum. Com relação ao processo de privatização, eu fui até motivo de um processo do Fernando Henrique Cardoso, que depois retirou, quando eu disse que tinha maracutáia na privatização dos Sistemas de Telecomunicações. Porque o Sérgio Mota era vivo, ele passou o tempo inteiro dizendo que ia privatizar por quarenta e seis bilhões de dólares, de repente ele morre, dois meses depois é privatizado por treze e aí o ágio vai para vinte e seis. O presidente Fernando Henrique Cardoso moveu um processo, eu achei que deveria mover, estava doidinho pra ir a justiça pra discutir as Telecomunicações, e ele recebeu orientação e retirou o processo contra mim na justiça. Eu acho que as privatizações no Brasil tiveram problemas sérios, muito sérios e, sobretudo, nas telecomunicações, porque o PT entendia e entende que as telecomunicações é um setor estratégico para o desenvolvimento do nosso país.

Serra (réplica): Eu acho que o Lula não respondeu a pergunta, porque ele disse que não era contra a privatização, não era em tese, era contra a forma, mas as votações para permitir que as privatizações fossem feitas, independentemente da forma o PT votou contra. A valorização do ensino fundamental e do magistério, principalmente das regiões mais pobres, foi feita através do FUNDEF. O Lula, ou melhor, o PT, o partido dele, votou contra. Ele está falando agora de ampliar o FUNDEF, eu estou perguntando porque votaram contra. Me impressiona muito essa dualidade, entre o que o Lula diz e aquilo que o PT fez até muito recentemente. É um discurso eleitoral? Houve uma mudança de fato? Ou o leão petista passou a comer verduras, grama? É uma coisa nova, um leão que agora come vegetal, ou é apenas um discurso eleitoral e o Lula não respondeu, eu queria saber porque votou contra o FUNDEF, qual era o motivo pra votar contra uma coisa que se revelou tão positiva.

Lula (tréplica): (abrandando a fisionomia) Olha se dualidade fosse algum problema, o Serra nem seria candidato, porque o que tem mais de dualidade entre o que você fala e o que está acontecendo no Brasil hoje é uma coisa anormal, ou seja, você finge que não tem nada a ver com o governo, finge que tudo que é feito ... você foi ministro do planejamento, não planejou nada, eu acho ô Serra, que o PT votou contra porque naquele momento entendeu que deveria votar contra e hoje no nosso programa de governo nós estamos propondo a ampliação, ao invés de FUNDEF o FUNDEB, pra cuidar das crianças da pré-escola até o ensino técnico, sabe, nós estamos tranqüilos em relação a isso, e se o PT evoluiu pra mudar de posição, não vejo nenhum problema, isso não tem dualidade não, nós votamos contra muita coisa e votamos favoravelmente a muita coisa, isso é uma evolução da espécie chamada parlamentar, chamada partido político, não há nenhum trauma com isso.

Todas as ocorrências supracitadas – Debate dos Presidenciáveis, Rede Record, 2002.

Nesse episódio o candidato Serra pleiteia uma resposta mais direta do candidato Lula, que até então vinha protegendo a sua face e do ponto de vista da Relevância, realizando um discurso considerado cuidadoso. Todo esse cuidado se traduz na vontade de não ser colocado em situação difícil e de franca ameaça à face, à própria face e à face do partido, mas ao mesmo tempo de não ser irrelevante. Como vimos dizendo até o presente momento, o candidato procurou manter uma conduta exemplar nos Debates dos Presidenciáveis para as eleições 2002, contudo não é possível se esquivar sempre. Entretanto, mesmo colocado em situações como essa, de franca ameaça a face, o candidato consegue se sair bem. A tônica do discurso do candidato Serra se inicia com a reivindicação de que a pergunta não foi respondida, para mais adiante revelar as suas verdadeiras intenções para com o candidato, a dualidade entre o que se diz e o que se fez, ponto central de todos os seus ataques ao Lula, para ele existe uma incongruência entre o discurso do candidato Lula e as ações diante de fatos reais, com isso dizendo que existe uma distância entre o discurso político eleitoral e um mandato. Numa manobra perspicaz, com base na vulnerabilidade mesma da posição do candidato Serra, faz com que “o feitiço se volte contra o feiticeiro”, devolvendo-lhe a crítica da dualidade, colocando-lhe na mesma posição de dualidade entre o que ele está falando e o que o Governo, da qual participava, fez. Com essa manobra defendeu-se e ao mesmo tempo não houve uma repercussão agressiva a ponto de produzir um direito de resposta.

 

Um enfoque especial na ironia

Até então o aspecto que mais nos chamou a atenção nas inserções do candidato Lula foi o fato de se abster de um discurso agressivo e da agressividade abrir mão durante todo o percurso que realizou em debates políticos televisivos. Todavia, queremos ainda frisar o caráter da situação contextual, de disputa e de acirramento, que exigia de alguma maneira que em dados momentos houvesse uma atitude defensiva ou até mesmo destrutiva de face.

Partindo do princípio que enquadrar o discurso irônico não é tarefa fácil, tentaremos abordar alguns conceitos a fim de procurar entender essa manobra. Kerbrat-Orechioni (1978, 1980) apud Brait (1996) conseguiu abordar os componentes centrais da ironia, que são: o ilocutório, o lingüístico e o actancial, para Catherine:

A atividade ilocutória é precisamente o que se destaca no caso da ironia. Esse destaque se dá na medida em que a ironia caracteriza-se como uma atividade dupla, pois descreve uma ação presente do locutor e, por meio da enunciação, tem por função realizar essa ação (BRAIT, 1996: 49, nota 58).

O segundo componente, o lingüístico, pode ter suas considerações baseadas também nos princípios gerais da conversação formulados por Grice, demonstrando que a violação a alguns deles serve de estratégia para a ironia. Por fim, o actancial, que para Catherine se resume numa trilogia estrutural: um locutor, um ouvinte e um alvo ou vítima desse discurso. Para Kierkaard a ironia é uma espécie de “liberdade subjetiva”, um traço da personalidade de determinados sujeitos, sujeitos esses que se consideram de algum modo superiores pois “[...] desejamos [...] despir o hábito que cada um é obrigado a vestir e carregar, muito humildemente, segundo as normas de sua posição social e por exigências de classe [...] (KIERKEGAARD, 1991: 220). Assim, de modo irônico, o autor defende que existe uma certa aristocracia no domínio da ironia, que observamos alcançadas pelas inserções lingüísticas do candidato, que procura então passar uma impressão de estar acima das disputas menores até então empreendidas pelos outros candidatos, e sim inserido na disputa maior que o colocará no cargo de Presidente da República.

Pode-se concluir que a ironia é um procedimento agressivo, com uma nuança diferenciada, por exemplo, do insulto. Se trouxermos para o contexto que estamos analisando podemos tomar a ironia como uma forma não-frontal de ataque à face negativa do outro, ou mesmo um ataque que não age diretamente para a destruição da face positiva de quem o faz, o que é muito mais interessante, mas se vem pleiteando uma face menos agressiva e mais polida por parte do candidato Lula, como conciliar um procedimento de ataque com essa face mais refinada? Encontramos a resposta na violação deliberada, este é um recurso usado para transmitir uma informação que escapa ao sentido literal, omitindo-se ou acrescentando-se, o que de alguma forma transgride qualquer das máximas. Aliás, a violação deliberada sempre é utilizada de forma a produzir um significado, um efeito outro além daquele que ele produziu por meio de sua locução e quanto mais polida a pessoa é, menor é a sua produção de implicatura e nesse caso o inverso proporcional também é verdadeiro. O contexto caracterizado pela situação de fala em que está inserido o candidato Lula é um ambiente de disputa e, portanto, movediço,.sendo necessário defender-se e se preciso for atacar, mas é necessário também não comprometer a sua imagem nesse ataque.

Durante os três Debates dos Presidenciáveis por nós analisados, houve três episódios na qual Lula se utiliza da ironia para se defender, e ao mesmo tempo atacar. Ressaltamos que nos três debates por nós analisados Lula só pediu direito de resposta por uma vez e não gerou nenhum pedido de direito de resposta por insulto, conforme já falado. Os ataques irônicos deflagrados por Lula não causaram grandes danos do ponto de vista de sua face negativa, ou seja, não foram considerados insultos e não geraram implicaturas tão graves a ponto de arranhar a sua face positiva, nem de provocar direito a pedido de resposta do candidato oponente, o que não impediu que houvesse reforço de face negativa naquele que foi atacado.

Para ilustrar vamos exemplificar com um episódio entre o candidato Lula e o candidato Garotinho:

Garotinho (réplica): Primeiro eu quero deixar claro que em momento nenhum eu fui a São Paulo buscar apoio do Maluf, segundo lugar eu quero deixar claro pra você telespectador que a nossa candidatura se manteve pura, diferente de outros candidatos que buscaram apoio a qualquer preço, falam de ética, falam de manter o partido com a sua história e com a sua trajetória, a eleição tá ficando clara, todo mundo fez acordo com todo mundo, eu não quero ganhar a eleição a qualquer preço, eu quero ganhar a eleição com o compromisso de mudar o Brasil. Se for pra ganhar a eleição e continuar da forma como está, fazer estes acordos pra manter essas elites que há anos vem massacrando o povo brasileiro, não dá, com os velhos políticos, as velhas oligarquias, toda essa gente que está incorporada em todas as candidaturas, exceto na candidatura do Partido Socialista Brasileiro.

Lula (tréplica): (modulando o tom de voz) Ô Garotinho, com todo carinho e respeito, a sua candidatura tá tão pura que se você continuar assim vai ficar sozinho [...] eu acho que você não fez aliança maior porque não conseguiu, porque eu não fiz maior porque não consegui, como o Ciro não fez maior porque não conseguiu [...] não vamos vender aqui a idéia de que somos menos favoráveis, mais favoráveis a alianças políticas, só fizemos as que foi possível fazer.

(Debate dos Presidenciáveis, Rede Bandeirantes, 2002)

Existe na fala do candidato Garotinho algumas implicaturas que devemos destacar: deixa claro que os outros candidatos aceitaram qualquer apoio para vencer, que se fala em ética e em trajetória (e isso diz respeito mais especificamente ao candidato Lula), mas não as respeitam, ficam somente no falar, e que quaisquer dos candidatos que se eleger as elites vão continuar governando. Note-se, porém, que o candidato Lula, muito marotamente, não se reporta às suas alianças e nem tenta se defender diretamente, coloca-se de modo indireto e inclusivo, dessa vez colocando o “nós” como partícula inclusiva dos outros opositores, inclusive o próprio Garotinho, ao dizer “não vamos vender aqui a idéia de que somos menos favoráveis a alianças políticas [...]”. Entretanto o que nos chama a atenção é a primeira parte da fala em que o candidato faz uso da ironia, sendo a ironia uma forma de discurso em que a pessoa se coloca acima do oponente, até desconsiderando sua capacidade de articulação. Assim, quando Lula fala que a candidatura do Garotinho está tão “pura” que ele vai ficar sozinho, joga todos os argumentos postulados por Garotinho contra ele mesmo e a tensão fixa residência nas palavras “pura” e “sozinho”. Na verdade, pleiteia que se a candidatura de Garotinho é pura, certamente ele está sozinho, pois não existem candidaturas puras, ou então, a pureza da sua candidatura só se mostra porque ele está sozinho, ele está puro porque não tem competência para conseguir apoio, criando assim um ciclo paradoxal, revelando um engenho raro, na qual afirma Kierkegaard (1991) que “A forma mais corrente de ironia consiste em dizermos num tom sério o que contudo não é pensado seriamente. A outra forma, em que a gente brincando diz em tom de brincadeira algo que se pensa a sério, ocorre raramente” (KIERKEGAARD, 1991: 216, nota 70). Vemos nesse episódio que o tom de Lula beirou a galhofa, em especial pela rima Garotinho/carinho, quebrada apenas pela palavra respeito, mas nesse tom apresenta a sério sua posição quanto ao tema. Notamos aqui, além da ironia irreverente, uma violação de duas máximas, a máxima da Qualidade e do Modo. É necessário que a sua participação seja verdadeira, e ao dizer o contrário do que se quer realmente dizer, está se violando essa máxima, só que aqui caímos numa armadilha, com a enunciação irônica estamos não querendo comunicar a mentira, mas sim dizer a verdade de forma menos direta. Eis o lugar onde reside a competência e a maestria, na indiretividade, minando as defesas do oponente sem atingi-lo para que ele não tenha o direito de resposta, nesse caso o direito de resposta que o contexto exige quando vítima de insulto. Definitivamente, isso não se enquadra na categoria do insulto, é, contudo, uma forma patente de ataque. Chama-nos a atenção a violação da máxima do Modo, mais precisamente à submáxima “evite ambigüidades”, destacando-se também a como o dito foi pronunciado. Apesar de não estarmos analisando a prosódia o “como” o dito foi enunciado para nossas observações é pertinente já que além do significado ambíguo das palavras de Lula, tem-se ainda a estruturação prosódica em tom de “brincadeira”. Do ponto de vista da polidez e da face, pode se considerar essa manobra capciosa, já que houve um ataque com reforço de face negativa do oponente, mas não houve, do ponto de vista contextual, uma falta tão grave a ponto de o oponente se sentir insultado. Essa forma de agir vai ser a principal marca do candidato, observada e utilizada em seu favor pelo candidato Serra, que dos três foi o mais sagaz em perceber esse direcionamento e em atentar para o preparo do candidato no que concerne ao “palco” dos Debates Políticos.

Na medida em que se domina um discurso mais polido, aprende-se a usá-lo em seu favor para se colocar de uma maneira mais sofisticada, reforçando sua face positiva e enfraquecendo sua face negativa, mas o que torna uma pessoa realmente destra na mantenenção de sua face é o saber violar as máximas sem causar implicaturas graves. Segundo Grice (1967) o valor da palavra dizer está intimamente relacionado com o valor semântico real[1] das palavras, por isso que a implicatura causada pela ironia pode ser considerada menos agressiva, porque não está relacionada com o valor “real”[2] das palavras, conforme Brait (1996), o que está realmente em jogo não é o sentido literal das palavras, mas o que se quis dizer nos “implícitos”, daí implicatura. Apesar do caráter de não-agressividade pactuado por Lula ao longo dos debates, não se pode deixar de perceber sua performance combativa e esse dado só é mais francamente observado quando ele se utiliza da ironia. Todo o tempo, Lula estava passando uma “moeda falsa”, como afirma Kierkegaard,

Mas ele saboreia esta alegria sozinho e tem todo o cuidado para que ninguém perceba sua impostura. – Esta é uma forma de ironia que só ocorre raramente, embora ela seja tão profunda e fácil de ser executada como aquela ironia que aparece sob a forma de uma oposição” (KIERKEGAARD, 1991: 217, nota 70).

Portanto, o sujeito que se apropria da ironia, possui consciência dela e faz uma violação deliberada dentro do jogo social em que está inserido para obter o efeito que quer. Isso pode ser aprendido e internalizado, fazendo parte de uma sutileza social profunda.

 

Considerações finais

A linguagem será então o espaço privilegiado para se tentar apreender a imagem. Num conjunto mais abrangente, lugar da interpretação semiótica, em que já o preconiza Barthes, tudo pode ser aferido em termos de significação, da roupa à comida, da linguagem aos esquemas comportamentais, tudo “signi” “fica” (fica signo) na revelação de um “eu” em determinadas circunstâncias. Na natureza mesma do discurso, tudo pode ser pleno de significado ao formar a face. Conseguimos perceber que a face, inserida na imagem, é constitutiva do indivíduo e amplamente marcada pelo social. Brown & Levinson (1987) tocam nesse aspecto ao dizer que as pessoas querem atingir seus objetivos, bens, e realizações para serem, no entanto, desejáveis não por qualquer um, mas por algumas pessoas especialmente relevantes para seus objetivos particulares[...].” (BROWN & LEVINSON, 1987: 63, nota 4. Tradução nossa)

Em outras palavras, as pessoas se mostram: em diferentes momentos sociais, por meio de toda uma gama de atitudes expressivas e por meio da linguagem no discurso que utilizam, porém, ao mesmo tempo em que se mostram, procuram preservar esse “eu”, tentando em muitas situações “manter” e “reforçar” a face positiva, enquanto procuram “ocultar” e “enfraquecer” a face negativa.

 

Referências BIBLIOGRÁFICAS

BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: UNICAMP, 1996.

BROWN, Gillian; LEVINSON, Stephen. Politeness: some universal language usage. [S.l.: s.n.] 1987.

DASCAL, Marcelo. In: –––. Fundamentos metodológicos da lingüística. Campinas: UNICAMP, v. 4, p. 105-131, 1982.

GOFFMAN, Erving. A representação do Eu na vida cotidiana. Tradução de Maria Célia Santos Raposo. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

GRICE, H.P. Lógica e Conversação. In: DASCAL, Marcelo. (Org.). Fundamentos metodológicos da lingüística. Tradução de João Wanderley Geraldi. Campinas: UNICAMP, v. 4, p. 81-103, 1982.

KIERKEGAARD, Søren Aabye. O conceito de ironia: constantemente referido a Sócrates. Tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991.

POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

RECTOR, Mônica; TRINTA, Aluízio R. Comunicação não verbal: a gestualidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1985.


 

[1] Aqui relacionado ao sentido denotativo, não só considerado o dicionarizado, mas também o sentido sócio-contextual, bem como o sentido literal. Podemos afirmar com relativa segurança que seria a palavra provida de um sentido polissêmico.

[2] Aqui não como sentido de verdade, mas no sentido de não-literalidade.