A PREVALÊNCIA DE UMA FUNÇÃO DA LINGUAGEM
NO TEXTO ACADÊMICO

Lucia Maria Moutinho Ribeiro (UNIRIO)

 

Convém recapitular os elementos da comunicação detectados por Karl Bühler e, posteriormente, por Roman Jakobson. Este os desenvolveu, aprofundou e lhes acrescentou mais dados, que vieram a concorrer para a compreensão do ato comunicativo.

Além dos componentes primeiros como emissor, receptor e contexto, Jakobson percebeu que para que se realize uma comunicação participam também dessa atividade o código, o canal e a mensagem.

Definamo-los. O emissor tem a intenção de transmitir uma informação, logo, ele é o eu que inicia o discurso. Para isso, serve-se de um código que traduza a sua intenção comunicativa e sua mensagem, isto é, a informação que tem a transmitir. Serve-se igualmente de um canal que é o suporte físico no qual escorre a mensagem em direção ao receptor, aquele que deverá receber a mensagem. Este só estará de posse plena (ou parcial) da mensagem à medida que a decodificar, à medida que puder decifrar o código que terá reproduzido o assunto, o contexto ou referente que enformou a mensagem. Exemplificando: o usuário de um microcomputador a partir do momento em que liga o aparelho, que aí funciona como canal e receptor, se comportará como o emissor da mensagem ao digitar seu texto, servindo-se dos sinais do teclado cujas combinações lhe fornecerão o código, estabelecendo-se, então, a comunicação.

As funções da linguagem, segundo o lingüista russo, serão determinadas pela predominância deste ou daquele elemento em dada comunicação. Se a ênfase da mensagem for sobre o emissor tem-se a função emotiva, como nos versos célebres “Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida vou te amar”, em que a primeira pessoa do discurso prevalece, embora o tu também esteja aí presente de forma passiva como receptor da mensagem, à qual reagirá. Dificilmente deixa de haver intromissão de uma função na outra, ou não haveria discurso. Os textos não são unívocos, não são puros. Pelo contrário.

A função conativa incide sobre o receptor, como nas ordens, no emprego imperativo dos verbos, nos anúncios de propaganda. O predomínio da função referencial interessada em reproduzir o contexto podemos encontrar nos noticiários de jornais; o da função metalingüística que se reporta ao próprio código lingüístico está presente nos dicionários, gramáticas, nas aulas de línguas.

A função poética faz prevalecer a própria mensagem que por outro lado não se encontra só no texto poético. Encontramo-la nos textos de propaganda que exerce principalmente a força da função apelativa. A função poética parece apagar o próprio emissor e tornar a mensagem quase autônoma em relação àquele que a produz tal a força de que impregna a palavra. O exemplo fornecido pelo autor de Lingüística e comunicação para exemplificar a função poética não é extraído de poema. Trata-se da popular frase da campanha de Eisenhower à presidência dos Estados Unidos na década de 50 do século passado. A frase é “I like Ike”. Servindo-se da camada fônica da rima que ecoa nas três breves palavras de tão curto período reforça o som do eu ai em inglês: a primeira pessoa do discurso, que representa aí grande parte da população americana que a repetiria de forma tão apelativa e eufônica, de acordo com a intenção do marqueteiro que a criou, que pode ter ajudado a eleger, sim, o político que de fato governou o país durante todo o seu mandato.

Se assim ocorre na comunicação corrente o que dirá a produção acadêmica?

Os manuais de metodologia de pesquisa e de redação científica recomendam a omissão do eu, pois uma monografia, um ensaio, uma dissertação ou tese não comportam expansão emotiva. Para isso, dá-se preferência à terceira pessoa do discurso através do uso do se, ou como índice de indeterminação do sujeito de verbos transitivos indiretos ou intransitivos, ou como pronome apassivador próprio do emprego da voz passiva sintética. Se se pretender envolver o leitor na proposta usa-se também a primeira pessoa do plural característica de modéstia ou de majestade. Se o emissor de um texto científico disser eu fará afirmação tão categórica que não admite réplica, debate ou discussão, o que está longe de acontecer em uma produção acadêmica ou não haveria progresso na ciência. Trata-se do preceito metodológico da disputatio, que admite que toda e qualquer tese pode ser contestada, superada por sua antítese, de cujo choque advém a síntese, tornando com isso a ciência um processo dialético ininterrupto na tentativa de acompanhar e fazer evoluir a marcha da humanidade por observá-la, compreendê-la, comentá-la, e ao mundo que a cerca. Presente desde a Idade Média na escola, a disputatio se encontra nas defesas de dissertações de mestrado, de teses de doutorado, de monografias de fim de curso de graduação e, por que não, desde a alfabetização nos exercícios, provas e desafios, a que são submetidos os pequenos discentes, através de um processo de crítica e autocrítica perene, pois assim se preserva o saber na nossa cultura letrada.

Uma monografia, uma dissertação, uma tese, de fato, contribuem para a produção do conhecimento, para a transformação da realidade, para o avanço da ciência. E a produção do conhecimento implica inevitavelmente o binômio sujeito e objeto. A palavra objeto significa etimologicamente aquilo que se lança diante de nós, o sujeito observador, para ser conhecido. Vinda do latim jeto, essa raiz se reconhece em jetter, do francês atirar, e em jato do português. O conhecimento extraído da relação entre sujeito e objeto se faz a partir de uma teoria, uma lei, um discurso, uma linguagem, que, como representação da realidade, conduzem a uma verdade possível sobre aquele objeto, embora se saiba que discurso e realidade não se correspondam integralmente. Há uma cisão entre sujeito e objeto. O sujeito também pode fazer parte do mundo dos objetos e ser observado como objeto de especulação científica, na medicina, na psicologia, na arte, no texto literário, na linguagem. A limitação humana, por razões históricas, de subjetividade, de linguagem, só pode identificar no objeto aquilo que lhe interessa, aquilo que consegue ver, captar, apreender do objeto. Essa questão se resolve com metodologia, porque esta fornece ao sujeito instrumentos para captar o objeto, com esta ou aquela visão, sob esta ou aquela perspectiva, que levarão a uma das múltiplas verdades possíveis a um objeto.

O trabalho acadêmico é, pois, excludente, pois se é examinado sob um ponto de vista político, não será sob um ponto de vista físico, se o ponto de vista for religioso, não será matemático, se for psicanalítico não será estatístico, e assim por diante. Delimita-se a realidade para conhecê-la, transformá-la, através da investigação. Além disso, o conhecimento científico requer certa dose de refutabilidade. Se não houver brechas para discussão numa produção científica, ela não contribuirá para o desenvolvimento do saber, pois apresentar-se-ia como dogma, como univocidade, e não comportaria crítica.

A realidade que se observa envolve dificuldades práticas e teóricas que a incansável especulação humana exige resolver. Nesse ponto, atua o pesquisador que, na realidade, ao reconhecer uma situação de desequilíbrio, procuraria regatar-lhe o equilíbrio, ao ver um problema, tentaria resolvê-lo. Uma questão filosófica se impõe aí – a dos critérios de seleção para que se elimine o preterível e se estabeleçam prioridades. O pesquisador se comporta como um ghost-writer de si mesmo para saber ler (no sentido etimológico de eleger), ou escolher, dentro do material coletado, o alvo a atingir. A sua capacidade de abstração e simbolização, aliada à intuição e à criatividade, o faz estabelecer cortes para atingir eficácia. Aqui, então, intercede a função de conceituar. Definir conceitos e localizar o prisma sob o qual o assunto ou objeto formal é focalizado evitam dispersão.

Identifique-se, pois, um fenômeno, formule-se uma questão sobre ele, aplique-se-lhe um método, obtenha-se um resultado. Em seguida, conforme preceito platônico, mereça-se divulgá-lo, na escola, nos livros, jornais, revistas, congressos, aulas. As idéias estão aí para circular.

Nas sabidas etapas da elaboração de uma dissertação, a introdução, o desenvolvimento e a conclusão, e nos capítulos e sub-capítulos de uma monografia mais alentada, se reconhecem os princípios metodológicos aplicados por René Descartes, segundo o qual os passos para se atingir um objetivo devem seguir uma seqüência lógica, do menos problemático para o mais problemático, do menor para o maior. E não por acaso a palavra método em grego quer dizer caminho.

E onde é que ficam as funções da linguagem? Na contradição entre sujeito e objeto. Como controlar a subjetividade no exame que se quer objetivo, científico, de um objeto? Talvez com o emprego da terceira pessoa do discurso, dos pronomes ele, que remete ao referente, e se, que no exame do objeto remete ao sujeito. Embora exista uma contradição imanente na concepção humana do mundo e da vida decorrente da contradição entre sujeito e objeto, chega-se a um contato com a realidade através da linguagem. É esta, portanto, que nos fornece os recursos de aproximação ou distanciamento de um objeto sob exame.

Sabe-se que um texto, seja coloquial, seja acadêmico, informativo ou poético, comporta mais de uma função. Além disso, um poema pode ser dissertativo e nele predominar o referencial bem como o poético, como nos versos abaixo de Fernando Pessoa, todos afirmações e definições:

Brasão

Segundo / O das Quinas

 

Os deuses vendem quando dão.

Compra-se a glória com desgraça.

Ai dos felizes, porque são

Só o que passa!

 

Baste a quem baste o que lhe basta

O bastante de lhe bastar!

A vida é breve, a alma é vasta:

Ter é tardar.

 

Foi com desgraça e com vileza

Que Deus ao Christo definiu:

Assim o oppoz à Natureza

E Filho o ungiu.

Os diversos textos acadêmicos traduzem as diversas áreas de conhecimento que os produzem, quais sejam, as ciências humanas e sociais, as ciências tecnológicas e exatas, as biomédicas, as letras, as artes, etc. As funções referencial e apelativa hão de neles prevalecer. A função apelativa é uma das que predomina porquanto o emissor (na redação acadêmica quase apagado) pretende convencer o receptor da sua posição, através dos recursos da argumentação. Para Aristóteles, a argumentação será tão eficaz quanto convencer o interlocutor com argumentos e levá-lo a repetir o que se terá argumentado. Define o Estagirita os processos argumentativos em quatro fases: fazer saber ou informar ao interlocutor a mensagem a transmitir; fazer crer, isto é, procurar convencer o outro a compartilhar as idéias do emissor; fazer prazer, seduzir ou transferir emoções quanto às idéias expostas; e por último a etapa do fazer fazer, em que o conteúdo da informação será tão convincente que o interlocutor desistirá de suas premissas para adotar as do emissor e divulgá-las por sua vez.

A função referencial se manifesta de acordo com cada área do saber a que o texto se reporta, o seu referente: o corpo humano para a Anatomia, uma análise do feudalismo em uma monografia de História, uma sinfonia de Beethoven numa tese sobre Música.

Assim, a impregnação de conceitos pessoais, unívocos, imagens de um eu introspectivo está descartada de um texto acadêmico se se considera que o texto acadêmico contribui com alguma parcela de renovação para o saber científico, seja uma monografia de fim de curso de graduação, seja uma asserção de José Leite Lopes.

Os estudos lingüísticos e literários têm a particularidade de, ao falar da própria língua, isto é, do código através do qual trocamos nossas mensagens, fazer incidir sobre seus trabalhos a função metalingüística.

O canal aí não deixará de figurar à medida que o texto acadêmico recorre a macromarcadores, tais como: vejamos, como foi afirmado anteriormente, inclui notas explicativas, citações, bibliografias, para que o receptor possa conferir a veracidade de tudo o que está sendo afirmado ali, prevalecendo, então, a função fática da linguagem. Se não há canal não há comunicação. Dizia MacLuhan nos idos da década de 60 que “o meio é a mensagem”.

Deste modo conclui-se que é difícil, senão impossível, distinguir a predominância de uma só função no texto acadêmico.

 

Bibliografia

DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico de ciências de linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2001.

GARCIA, Othon Moacyr. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990.

HÜHNE, Leda Miranda et al. Metodologia de pesquisa. Rio de Janeiro: Agir, 1991.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Maria Aliete Galhoz (org.). Rio de Janeiro: Aguilar, 1960.