Água viva[1],
um texto pulsante sobre o indizível

Marillia Raeder Auar Oliveira (UERJ)
Christiane Karydakis (UERJ)

 

Objeto Gritante. Este foi o nome inicialmente escolhido pela autora para o primeiro manuscrito de sua obra, e que, por motivos diversos, foi bastante reduzido e revisado, tendo finalmente ressurgido, em nova versão, sob o nome de Água viva. A propósito, a alusão ao título original é feita no livro quando a narradora, ao se transformar em um objeto, afirma: “Sou uma máquina de escrever”, e mais adiante, “se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita”. Esta frase, aliás, já sugere um dos pensamentos que norteia toda a narrativa: as próprias palavras gritam, uma vez que saltam deste objeto caracterizado como gritante. E, como toda a obra de Clarice Lispector grita, vemos anunciada uma ruptura, um novo caminho na literatura brasileira.

O mundo revelado pela arte é o mundo que ela mesma constrói. Um texto de ficção, como o que constitui objeto de exame deste ensaio, apresenta em parte o mundo da realidade vivencial, mas não esgota essa realidade, daí seu caráter ficcional. Um texto de ficção alimenta-se da própria realidade para então criar seu mundo particular, ficcional por excelência, mas pincelado por elementos reais que continuam caracteristicamente desta maneira, mesmo fazendo parte de um universo inventado. Conclui-se, portanto, que as relações recíprocas e fluidas entre esses dois elementos não mais servem para orientar o caráter ficcional de um texto.

Se digo “realidade”, poder-se-ia imaginar algo destituído de ficções; se digo “ficção”, pensa-se imediatamente em alguma coisa isenta de realidade. Essas informações nos são proporcionadas pelo saber tácito, que se quer aceito como algo óbvio. Porém, contrariando esse saber tácito que não se questiona nem se atualiza, é impossível deduzir da ficção o caráter de realidade e vice-versa. Sabemos que a ficção se abastece da realidade mas a transgride, alcançando novos universos, particulares e próprios da criação artística, muitas vezes mais verossímeis e confortáveis que o mundo em que vivemos, dito “real”. Também sabemos que a ficção oferece muito mais certezas que a própria realidade. Ao lermos um texto, tomamos consciência de tudo o que se passa nas relações entre os personagens; conhecemos seus pensamentos, seus atos, seus gostos, seus segredos – tudo isso oferecido por um narrador onisciente, que tudo observa de uma plataforma divina. Dentro do pacto ficcional travado entre os leitores do texto e o narrador, encontra-se a realidade ficcional do pacto que, dentro da própria ficção, nos oferece todos os confortos de uma “verdade” inquestionável. Por outro lado, na nossa realidade, ao conversamos com uma pessoa, não podemos saber se o que está sendo dito é de fato verdadeiro: não podemos saber o que esta pessoa está pensando – essas informações não nos são oferecidas. Podemos questionar nosso interlocutor, ao invés de fazermos projeções, mas não teremos certeza da informação que nos será dada por esse interlocutor – ele pode estar mentindo. Como saber a verdade em relações interpessoais no mundo real? Não sabemos. No texto ficcional, entretanto, estabelecemos esse pacto, também ficcional – temos noção de que tudo que está ali sendo contado é invenção do autor do texto, mas dentro da ficção, tudo é realidade e não nos questionamos quanto a isso.

Deste modo, a ficção é sempre uma encenação, um fingimento, dada a própria etimologia da palavra. O texto ficcional é composto por diversos atos de fingir que se relacionam reciprocamente dentro da própria narrativa e que se constroem a partir das repetições da realidade vivencial no texto, constituindo assim um ato imaginário relacionado com a realidade que se repete no texto. Dessa forma, como diz Wolfgang Iser:

Assim, o ato de fingir ganha a sua marca própria, que é de provocar a repetição no texto da realidade vivencial, por esta repetição atribuindo uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em signo e o imaginário em efeito do que é assim referido. (apud COSTA LIMA, 2002: 958)

A aliança entre ficção e realidade está feita; uma é indissociável da outra. O que antes parecia difuso e nebuloso torna-se claro aos olhos dos leitores mais atentos e comprometidos com suas leituras. A fusão da realidade com a ficção já é um fingimento por si só, constituído de transgressões – transgride a própria realidade sensível. Como já dizia Iser, “o ato de fingir é, portanto, uma transgressão de limites” (ISER, 1978).

Ainda segundo o teórico mencionado, o discurso ficcional da literatura se apropria das referencialidades, não para endossá-las, mas para colocá-las em questão. Isto é feito através de diferentes visões de mundo que se encontram em embate, em conflitos que não se resolvem. O discurso ficcional reorganiza horizontalmente as normas[2] e os valores sociais, como descreve Iser. Daí a explicação do motivo por que não faz sentido a separação ficção versus realidade.

A imaginação é um outro elemento essencial à literatura. O mundo imaginário enriquece e aprofunda a obra de ficção, acentua o valor estético deste tipo de texto. A intenção e a atenção voltam-se totalmente para dentro do próprio texto e levam o leitor a encontrar planos mais profundos, revelações virtuais de verdades também virtuais, imanentes à própria narrativa ficcional. Essas revelações não devem necessariamente confundir o leitor com qualquer tipo de referência direta com a realidade referencial, uma vez que são dotadas de total individualidade e singularidade de situações, ambientes e personagens, apesar da verossimilhança inerente ao texto.

A mimesis no discurso ficcional da literatura, apontando para si mesma, acaba por libertar-se de uma referencialidade primária, alimentando-se da realidade para criar sua própria mimesis como criação imagética. Essa mimesis rompe com o real, criando novas referências e novas possibilidades. Cabe, aqui, uma observação de Shusterman (s/d.]:

Mimesis é usualmente traduzido por “imitação”, mas de fato este significado central está mais próximo de “realização”: objetos, eventos, ou ações que, porque são divinos, passados ou canônicos, pertencem a um domínio mais valioso da realidade do que nossa vida quotidiana, mas estão, por isso mesmo, de alguma forma afastados de nós, impõem sobre nós a obrigação de restaurar sua realidade; isso é alcançado pelo estabelecimento de um setor privilegiado no meio de nossas preocupações presentes, no qual nós podemos reabilitá-los [os objetos, eventos e as ações], iluminando através disso nosso mundo atual com um pouco de seu esplendor e, ao mesmo tempo, resgatando-os dos perigos da abstração e da irrelevância.

Tomando como exemplo o conto “Metamorfose”, de Kafka (1969), quando Gregor Samsa acorda em forma de barata, podemos dizer que o autor, embora dono de uma narrativa dotada de características bastante peculiares, puramente singulares e individuais, enfim, consideramos que, a partir de um sentimento muito comum ao homem, quando se sente minimizado, inferiorizado, em última análise, morto, estando vivo, quando se sente exatamente desprezível, Kafka reifica esse sentimento humano, faz seu personagem transformar-se de fato num inseto para tornar mais realística a sua narrativa fantástica.

Esse tipo de narrativa não se baseia em referências anteriores, que se relacionam com a realidade sensível. O autor cria imagens, e estas imagens criam sua própria realidade; elas se assumem como imagens de fato e bastam a si mesmas, fazendo o simulacro perder sua condição pejorativa. As simulações pretendem inventar novas realidades, por isso, a representação é impossível para a simulação, porque o próprio edifício da representação, aqui, já seria um simulacro.

Água viva teve grande repercussão quando do seu lançamento em 1973, surpreendendo a crítica com uma obra difícil de ser catalogada, já que rompia totalmente com a literatura tradicional da época, apresentando uma problemática de caráter existencial e totalmente inovadora, dentro de um estilo solto, elíptico e fragmentário.

Cabe-nos, aqui, apresentar os elementos inovadores desta obra analisando os recursos utilizados pela narradora para caracterizar a total ruptura com o “Pai”[3], com as normas da cultura, com o dizível a que se refere Roland Barthes.

Considerada uma obra de vanguarda, Água viva é apresentada sob a forma de fragmentos que não seguem uma ordem cronológica, linear, e que, aparentemente, são independentes entre si. Ou seja, pode-se abrir o livro em qualquer página e ler um fragmento sem que isto prejudique a compreensão da obra. Os temas abordados são os mais diversos possíveis, transitando entre tempo, religião, morte, insetos, flores, graça, silêncio, angústia etc., caracterizando uma obra caleidoscópica, como uma espécie de espelho do mundo. Há, contudo, uma harmonia entre eles, uma polifonia semelhante à do conjunto de sonoridades musicais e uma fluidez instantânea, como a da água em movimento, já que tudo é escrito no momento em que é sentido ou vivido. Como disse o jornalista e crítico Alberto Dines após ler o manuscrito, “Acho que você escreveu uma sinfonia” (Apud NINA, 2003). Mergulha-se na circularidade, onde não há início, meio ou fim; ausência de enredo, de unidade de tempo, de espaço e de ação. A última frase do livro aponta para essa circularidade, para esse movimento incessante da escrita: “O que te escrevo continua e estou enfeitiçada”. Ou seja, o livro acaba ali, mas não os efeitos estéticos por ele provocados.

Para Clarice, escrever é romper com tudo, até com o próprio ato de escrever; é virar o sistema pelo avesso, deixando à mostra tudo o que estava escondido, libertando-se de tudo que a aprisiona. Para ela, escrever é viver – do gozo mais intenso à mais profunda dor. A autora aproxima-se bastante do conceito de texto de fruição de Barthes, ao afirmar, em Água viva: “Não é confortável o que te escrevo [...]. Construo algo isento de mim e de ti – eis a minha liberdade que leva à morte”. O texto de fruição, termo estabelecido por Roland Barthes, também rompe totalmente com o sistema, com os padrões culturais, com a realidade propriamente dita, provocando no leitor uma sensação de estranhamento, convidando-o a refletir, a adotar uma atitude ativa diante de uma obra totalmente inovadora e insólita.

No momento em que o leitor entra em contato com a ficção, ele suspende as regras verticais que ligam esse texto à realidade, que ligam o texto a referencialidades reais. Embora se alimentando da realidade, um texto ficcional como Água viva não tem de fato um compromisso com elementos reais, pois, como aponta Rosenfeld, “a ficção é o único lugar em que os seres humanos se tornam transparentes à nossa visão” (ROSENFELD, 1974), porque o espaço do olhar é um espaço relativo.

A leitura de Água viva, consequentemente, não é confortável. O texto, repleto de construções inovadoras e de neologismos, possui um caráter essencialmente questionador e existencialista, exigindo do leitor um esforço para que saia da zona de conforto, para que se “desapoltrone”, para que reflita e se esqueça de todos os padrões culturais adquiridos a fim de poder absorver um texto totalmente nu, isento de qualquer tipo de estereótipo, e se deixar levar pelas inúmeras sensações que o mesmo possa vir a provocar. Como afirma a própria autora: “Este não é um livro porque não é assim que se escreve. O que escrevo é só um clímax?”.

De fato, em Água viva, Clarice se apropria de um estilo de escrita totalmente novo e de expressões que provocam, no mínimo, grande surpresa no leitor. Não há, na obra em questão, uma preocupação excessiva com regras gramaticais. A autora escreve, e através do ato de escrever, vive, sente, pinta com as palavras as suas sensações e as transmite ao leitor, que, por sua vez, também deverá viver e sentir as sensações passadas pelo texto, ora nas entrelinhas, ora pulsantes, na própria superfície textual: “O que te direi? Te direi os instantes”. Sim, a autora preocupa-se em transmitir através das palavras o que sente, da melhor maneira possível, buscando sempre o melhor sentido e a melhor harmonia entre forma e conteúdo. O ato de escrever representa para a narradora uma função tão artística e sublime quanto a pintura e a música; ela vivencia pela primeira vez o ato da escrita, e escreve para viver; parece sentir a vibração de cada palavra em sua própria respiração, fazendo do ato de escrever um ato de libertação. “O que pintei nessa tela é passível de ser fraseado em palavras? Tanto quanto possa ser implícita a palavra muda no som musical”, afirma a narradora.

Neste caso, o pacto ficcional entre narradora e leitor consiste em entrar em um jogo diferente, o da experimentação da linguagem. A própria Clarice dizia costumava afirmar que escrevia para saber o que estava querendo dizer. A cumplicidade com o leitor é inevitável e muito mais íntima, uma vez que aparentemente existem, em Água viva, referências autobiográficas e uma infinidade de sensações e de impressões passadas de forma errática. O texto de Clarice possui uma força movimentadora que narra o aspecto mais sedutor das coisas para logo em seguida apresentar a outra face da moeda, o lado mais repulsivo. E é nessa errância que o leitor passeia pelo mundo clariceano, sentindo-se desconfortável, inseguro, livre, praticamente em crise diante dessa nova realidade de questionamentos que afloram e são próprios da condição humana – com suas virtudes e defeitos – sem saber para onde o texto o levará, sem saber qual será a próxima surpresa; um leitor errante diante de um texto com tessitura não condutora, mas surpreendente, como a própria vida. A autora confessa: “Perco a identidade do mundo em mim e existo sem garantias”. Segundo o conceito de desconstrução, de Jacques Derrida, o texto promove a força de seus significantes e passa a viver a sua própria errância. A desconstrução do texto não implica sua destruição mas sua desmontagem, procurando descobrir significações dissimuladas em seu interior. A narrativa da obra em questão é perigosa, sem fio condutor, sem direção, repleta de surpresas e sobressaltos, de expressões inovadoras que provocam no leitor uma sensação de risco, de transgressão. Se, por um lado, a realidade é limitadora, por outro, o imaginário ficcional salva o leitor, que se depara com suas próprias perversões e fantasias. A narradora provoca: “Porque não sei qual é o meu segredo. Conta-me o teu, ensina-me sobre o secreto de cada um de nós. Não é segredo difamante. É apenas isso: segredo”. (LISPECTOR, 1980: 66)

Quanto ao sujeito, ele é totalmente impessoal e super fragmentado: não há um mero sujeito em Água viva, mas um sujeito multifacetado, num efeito multiplicador, como no filme Matrix. Trata-se de um sujeito impessoal e neutro – a autora utiliza o pronome impessoal inglês it para designar ele ou ela. Esse sujeito limita-se a ser apenas voz para denunciar o fracasso da linguagem diante da realidade. Paradoxalmente, é através da voz auto-reflexiva, da ruptura radical do dizer em favor do ser, que Clarice consegue expressar o silêncio. Um silêncio ensurdecedor, gritante, que convoca o leitor a se questionar diante do absurdo da vida e do escândalo da morte: “Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio”. (LISPECTOR, 1980: 30)

Este silêncio denuncia, tenta mostrar o que está por trás das palavras, atrás do próprio pensamento, para deixar nascer a verdade, o associal, o proibido, para se despir dos valores culturais e morais impostos pela sociedade, para se libertar e simplesmente ser o que se é. Mas quanto esforço para se chegar a mudez, ao indizível. A indecidibilidade mostra a fluidez das fronteiras entre os diferentes elementos do texto, apresenta a impossibilidade de se determinar o que é forma e o que é conteúdo, a linha de demarcação entre o bem e o mal. Como dizia Clarice: “o indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha própria linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu”. (LISPECTOR, 1980: 180)

Paradoxalmente, é justamente através do silêncio, da desconstrução da linguagem, que Clarice consegue se expressar. Entre sons e silêncio, imagens e sensações, a sua narrativa alcança o ápice da representatividade.

Água viva possui uma escrita pulsional: tudo pulsa, tudo é instante-já, tudo é escrito praticamente em tempo real, o que faz nascer uma escritura cujo tema é o próprio ato de escrever. E é justamente neste texto não legível, mas escrevível[4], como definiu Barthes, que o leitor é provocado a entrar nesse jogo da escrita, e convidado a completar sua significação de acordo com a sua experiência de vida, seus valores culturais, morais e éticos. Trata-se, portanto, de uma leitura conflituosa que, além de provocar estranhamento no leitor, suscita a reflexão, faz com que o leitor reveja seus valores, questione os aspectos mais profundos da vida, chegando ao ápice com questões metafísicas sobre o nascimento, a vida, a morte, a identidade, o sentido da vida, o passar do tempo, a dualidade do mundo e das coisas.

A presente obra de Clarice Lispector interfere na temporalidade da narrativa ao promover, no plano textual, vazios a serem preenchidos pelo leitor no ato da interpretação. Esses vazios são as forças contraditórias da narrativa em constante embate, e que, no plano sintagmático do texto, permanecem em sua forma de não completude. Ora, sendo a obra literária um mundo de ficções intencionalmente criadas através da palavra escrita, já que o caráter das proposições na obra literária é imaginário, essas proposições criam um mundo fictício, submetido à intenção de seu criador e à “concretização” dessa intenção, que se complementa no processo de percepção do leitor. Portanto, o leitor implícito[5], comprometido com a leitura, vai formando seus próprios correlatos de sentença, que são fenômenos da percepção; ele vai preenchendo os pontos de indeterminação, sendo, desta forma, capaz de construir um sentido para a obra, fazendo com que essa interação com o texto resulte em tomada de consciência de sua inserção em sociedade. Isso não significa, contudo, que, no texto, já se encontra um sentido fechado, tal como pretendia uma certa crítica marxista. Pelo contrário, é justamente por se deparar com a ausência de uma resolução de visões de mundo diferenciadas e não resolvidas que o leitor se vê impulsionado a pensar sua inserção social, face a tal vazio. Ele vai ativar as pluralidades do texto, fazendo com que proliferem significados e significantes. Isso implica uma postura ativa por parte do leitor, para que ele amplie as aberturas de significados, ou seja, sem lhes atribuir uma significação. Suas idéias tendem a valorizar o próprio significante (ao invés do significado), ou seja, a superfície da ficção, ao invés de sua profundidade.

Água viva rompe a barreira da obviedade. Diante do já conhecido, esse texto de vanguarda propõe o desconhecido, daí a sensação de estranhamento de que falamos, que renova a linguagem e, por conseguinte, renova as nossas relações com o mundo. A legibilidade do texto clariceano é um tanto fluida, apresentando certas rupturas, desfocagens, opacidades e fugas, pois, parafraseando Roland Barthes, a literatura é, ao mesmo tempo, sentido posto e sentido retirado.

A narrativa em primeira pessoa é muito mais perigosa do que supomos à primeira vista. Temos a sensação de uma bem dosada exposição dessa narradora/confessora, mas, ao contrário, essa narrativa não explicita a imagem de sua narradora; ela, antes de tudo, a torna mais implícita às imagens que formamos como espectadores e receptores. “O discurso que se confessa discurso não faz mais que ocultar pudicamente sua propriedade de discurso” (TODOROV, 1968), informa Todorov. É, paradoxalmente, no escuro e no duvidoso desse relato que ele melhor se impõe, se torna mais evidente.

A narradora de Água viva, como todos os narradores em primeira pessoa, não somente conta, ela fala. A nossa desconfiança para com essa narradora ocorre porque, conforme diz Todorov, “No momento em que o sujeito da enunciação se torna sujeito do enunciado, não é mais o mesmo sujeito que enuncia. Falar de si próprio significa não ser mais “si próprio”. (TODOROV, 1968: 47)

A materialidade do discurso faz com que ele passe a emergir enquanto objeto, articulador de imagens que são propostas no campo sintagmático do texto literário, que provocam em nós, leitores, diversas e diferenciadas reações de percepção diante do objeto literário que temos em mãos, pois cada leitor pode reagir diferentemente a um mesmo texto, levando em consideração os fatores realmente manifestos, extrateóricos, ou seja, sua própria experiência de vida, a sua referencialidade, e ainda, sua inserção em sociedade. Desta forma, o leitor está também sujeito aos efeitos históricos, identificando-se ou identificando certos elementos no texto, para que a experiência da alteridade resulte em um despertar de consciências por parte dos leitores. Clarice dá ao seu romance uma outra solução em termos de estratégia interna, tornando todos os aspectos visíveis enriquecedores do seu romance.

Finalmente, parece-nos que Clarice escreveu uma confissão poético-existencial em prosa. Em tempo quase que real, Água viva é um desfile de imagens multifacetadas do mundo. Nada escapa à autora: nem a graça de se sentir vivo, nem a placenta de gata parindo, nem o escândalo da morte. A autora utiliza as palavras como representação de suas sensações e cria um texto pulsante, vivo e gritante. Gritante, mas silencioso. A narrativa de Clarice atinge a mudez através do grito que denuncia; atravessa as palavras e consegue alcançar o que está por trás delas, por trás do próprio pensamento: o proibido e, portanto, o indizível. O que se sente se vive, mas não se fala. Vive-se, e, no mínimo, passa-se esse viver para o outro, essa cumplicidade silenciosa e reconfortante. Clarice faz vir à tona o proibido: sim, somos indefesos diante do escândalo da liberdade solitária e do terror da morte, mas podemos nos salvar através do ato da escrita, porque, para Clarice, escrever era a única forma de libertação, a única forma possível de vida. Tão vital quanto o pulsar do ato de respirar dos seres e do próprio mundo, que é infinito. De fato, na última frase de Água viva, a autora deixa isto bem claro: “O que te escrevo continua e estou enfeitiçada”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2004.

BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Teoria do efeito estético. Niterói: EdUff, 2003.

––––––.. Tópicos de teoria para a investigação do discurso literário. Rio de Janeiro: 7letras, 2004.

ISER, Wolfgang. “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional”. In: COSTA LIMA, Luiz. Teoria da literatura em suas fontes. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

––––––. The act of reading: a theory of äesthetic response. London: Routledge & Kegan Paul Ltd., 1978.

KAFKA, Franz. Metamorfose. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.

––––––. Água viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

NINA, Cláudia. A palavra usurpada. Rio Grande do Sul: Edipucrs, 2003.

ROSENFELD, Anatol. “Literatura e Personagem”. In: –––. A Personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1974

Shusterman, R.M. Mimesis. In: Routledge Encyclopedia of Philosophy, Version 1.0, London: Routledge, [s/d.].

TODOROV, Tzvetan. Estruturalismo e poética. São Paulo: Cultrix, 1968.


 

 

[1] LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980.

[2] O que Iser denomina reagenciamento horizontal das normas diz respeito à não resolução dos embates das perspectivas.

[3] O termo “Pai’, estabelecido por R. Barthes em O prazer do texto, refere-se à Lei, ao que o autor define como o social

[4] Para R. Barthes, o texto de prazer seria legível, e o texto de fruição, escrevível.

[5] Leitor implícito é aquele que segue as perspectivas textuais (a do narrador, a dos personagens, a do enredo e a do leitor fictício). É ele mesmo uma estrutura textual que prevê a presença de um receptor sem ter de defini-lo, obrigatoriamente. O conceito de leitor implícito aponta para uma rede de estruturas que demandam respostas por parte do leitor. (BORBA,, 2003).