Didatização de Mafalda
em Português: Linguagens
de Cereja e Magalhães
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Márcia Sipavicius Seide (Unioeste).

 

Como se sabe, a maioria das tiras de Mafalda apresenta um viés político marcante: através das personagens infantis, Quino externava sua visão crítica da realidade levando seus leitores a refletirem sobre ela. Não obstante, também foram criadas histórias sobre temas mais universais, menos dependentes das notícias do dia-a-dia divulgadas nos jornais. As histórias analisadas mais adiante mostram como se dá esta gradação de dependência do contexto histórico. Cumpre ressaltar que a análise da primeira tira também tem por objetivo descrever os esforços necessários ao processamento informacional, segundo a Teoria da Relevância (SPERBER, WILSON, 2001 [1986]), e de acordo com o pressuposto de que, num enunciado, há certas palavras ou expressões que funcionam como unidades de conhecimento enciclopédico (UCE) cujo desvendamento faz parte do fazer interpretativo inerente à leitura ou escuta de textos (SEIDE, 2006). Feita a caracterização das histórias de Mafalda, tem início o estudo sobre como suas histórias foram didatizadas.

Psicologicamente, do ponto de vista do indivíduo que está interpretando um enunciado, a decodificação traz informações que formam um contexto cognitivo inicial. A partir dele, o sujeito elabora suposições formuladas no interior de determinado contexto cognitivo formado por uma porção de informação enciclopédica. Ao longo do processo, as informações que vão sendo adicionadas (seja, no caso da oralidade, pelo desenvolvimento da conversa seja, no caso da linguagem escrita, pela continuação da leitura) podem ensejar a ativação de outras porções de informação, provocando uma extensão de contexto. Ao mesmo tempo, suposições não relevantes são automaticamente excluídas. Ao longo da comunicação, o conjunto de contextos acessíveis ao sujeito é responsável pela formação de um novo ambiente cognitivo.

Um exemplo ilustrativo de como as suposições responsáveis pelo processo interpretativo são, do ponto de vista psicológico, variáveis de indivíduo para indivíduo, é o seguinte diálogo citado e analisado por Silveira e Feltes (2002: 29 a 31):

(1) A: Um uísque? B: Sou mórmon.

A partir da fala de A, B elabora as seguintes suposições fortemente implicadas:

(1a) Uísque é uma bebida alcoólica.

(1b) Mórmons não bebem álcool.

(1c) B não bebe álcool.

(1d) B não quer uísque.

Nota-se que as duas primeiras suposições funcionam como premissas das duas últimas de modo que as informações sobre uísque e mórmons, extraídas da memória enciclopédica, integram o cálculo dedutivo responsável pela interpretação. Contudo, conforme explicam as lingüistas brasileiras, outras suposições são deriváveis a partir de outros conceitos ligados à entrada lexical ‘mórnon”:

(2a) Mórmons não bebem café (premissa implicada).

(2b) B não beberia café (conclusão implicada).

(2c) Mórmons não fumam (premissa implicada).

(2d) B não fumaria (conclusão implicada).

(2e) Mórmons praticam poligamia (premissa implicada).

(2f) B praticaria poligamia (conclusão implicada).

Confrontando-se todas as suposições listadas, constata-se certa variação de leitura em conformidade com o conhecimento de mundo do leitor: as suposições (1 a-d) foram obviamente pretendidas por B e são necessariamente recuperáveis por A; menos pretendidas por B e correndo por conta e risco de A são as suposições (2a –f.) baseadas em extensões de contexto não implicadas no enunciado de B.

Consideramos como unidade de conhecimento enciclopédico (UCE) uma palavra ou expressão cujo desvendamento é importante para a compreensão de um enunciado. Assim, do ponto de vista aqui adotado, consideramos as suposições (1a) e (1b) como resultado da interpretação, respectivamente, das UCEs uísque e mórmons. As suposições (1c) e (1d), por sua vez, são feitas por meio do ajuste das UCEs ao texto do qual fazem parte.

Para desvendar uma UCE, é necessário saber o significado de um nome, isto é, ser capaz de criar uma representação mental (determinada histórica e pragmaticamente) do objeto que ele identifica, sendo que é o conhecimento de mundo do leitor que permite o estabelecimento de elos entre determinados itens lexicais e seus referentes. Suponhamos que o leitor A está lendo um texto X e que, nesse texto, há itens cuja representação mental só é alcançada se o referente ao qual ele se liga é conhecido. Para que o texto X se torne totalmente legível, é necessário estabelecer as referenciações propostas por certos itens ou expressões que constituem as UCEs. Se o conhecimento de mundo do leitor não é suficiente para compreender uma UCE de imediato, as inferências feitas durante a leitura podem permitir uma representação, ainda que vaga, do referente, vagueza que pode ser prejudicial à compreensão do texto. Se nenhuma representação é feita, a UCE é interpretada como lacuna, sendo que a estratégia de “saltar” o que não se entende, como no caso da vagueza, pode prejudicar a leitura, conforme mostra a análise apresentada a seguir.

A interpretação da primeira tira por nós analisada foi publicada em 16 de fevereiro de 1965 e não requer porções de informação especializada, uma vez que as UCE’s (grafadas em itálico ao longo da análise) ativam saberes cotidianos. No primeiro quadrinho, Mafalda e seu pai estão na praia, ele lhe mostra uma concha de caracol. Ao ver o objeto, ela se assusta, pede que o pai saia com aquilo e diz que não gosta daquele bicho. O pai faz a filha perceber que não há o que temer e ativa-lhe a curiosidade incentivando-a a descobrir o que se pode ouvir dentro da concha.

O processamento das informações contidas no primeiro quadrinho requer que algumas UCEs sejam ativadas. As informações visuais do desenho são interpretadas ativando-se a UCE praia: as personagens, sentadas no chão, estão com trajes de banho, de o que se infere que estão num lugar onde é possível banhar-se, os pontos negros que estão espalhados no chão representam a areia, há, no canto direito, pés, tornozelo e uma parte da perna de uma pessoa deitada figura que remete a um banhista tomando sol, por fim, há o desenho da concha do caracol.A interpretação da fala de Mafalda concomitante a de sua posição corporal e fisionomia evidenciam seu medo perante o objeto que o pai lhe mostra possibilitando que se atribuam à personagem mais famosa de Quino as seguintes suposições: (1 a ) Não sei o que este objeto é. (1b ) Nada que eu não conheça pode ser bom ou inofensivo (1c) Este objeto não é bom e é nocivo.(1d) Devo me afastar dele. Há que se ressaltar que este raciocínio é muito comum em crianças da idade de Mafalda. Se quem está lendo é também uma criança, há muita possibilidade de haver uma identificação catártica; se o leitor é uma pessoa adulta é provável que ele se lembre de sua infância, identificando-se com a criança e/ou com o adulto, o pai, o qual, tendo consciência do que se passou na mente de sua filha, propõe-lhe outro raciocínio, apresentando premissas que levam à conclusão de que o objeto é bom e inofensivo.

O segundo quadrinho mostra Mafalda, ainda sentada, satisfeita por ouvir a concha do caracol, satisfação que contrasta com a fisionomia triste e decepcionada de seu pai, sentado ao lado dela. Ao fundo, letras grandes e vazadas representam a fala de uma terceira pessoa anunciando sorvetes. A ativação das UCEs produz os contextos responsáveis pela interpretação. Numa praia (ao menos no Brasil e na América Latina) há muitos vendedores ambulantes, sendo comum a venda de sorvetes, a fala em caixa alta, portanto, provém de alguém vendendo sorvete. A decepção e tristeza do pai de Mafalda só podem ser entendidas por quem sabe que, no interior da concha, é produzido um ruído semelhante ao barulho das ondas do mar. Ao invés do esperado som da natureza, escuta-se “o som da propaganda”: o vendedor de sorvetes alardeando seus produtos, situação cômica que pode ser interpretada como uma crítica velada ao consumismo.

A interpretação do último quadrinho é um pouco mais complexa por não estar explícito o elo com os quadrinhos anteriores. A coerência textual - como no exemplo da casa da Bia fornecido por Fulgêncio e Liberato – deve ser construída pelo leitor. As informações visuais ostensivas mostram o vendedor continuando seu trabalho de percorrer a praia oferecendo seus sorvetes; o pai de Mafalda está de pé olhando-o com raiva; a concha está no chão; Mafalda, está com um pote de sorvete na mão esquerda e uma pazinha de sorvete na direita e, com uma fisionomia glutona, elogia-o por ser muito original. O sorvete na mão de Mafalda, ativa a UCE venda de sorvete, frame que permite subentender que seu pai comprou-lhe um. Para o entendimento do final da história, não importa muito o que levou seu pai a comprar-lhe um sorvete. O que chama a atenção é a fala de Mafalda, reveladora de que ela concluíra que seu pai havia encontrado uma maneira original de dar-lhe um sorvete.

Na história que acabamos de analisar, a cada elemento novo acrescentado à narrativa, uma UCE foi ativada causando uma extensão de sentido. Com base nessas extensões, novas suposições foram sendo adicionadas alimentando o processo interpretativo.Em nenhum momento foi necessário fazer referência ao contexto histórico no qual Quino estava inserido quando criou a história. Não é isto que ocorre com a tirinha publicada na semana seguinte, em 23 de fevereiro de 1965, história passível de ser interpretada de duas maneiras: com e sem consideração do momento histórico.

Em outra história, a segunda por nós analisada, Mafalda retorna de suas férias na praia e vai visitar seu amigo Felipe. Ela está diferente sua pele está bronzeada e, ao invés do tradicional laço de fita na cabeça, ela está com um rabo de cavalo no topo da cabeça preso por uma fita em cuja ponta um osso foi preso à maneira de enfeite. A figura de Mafalda faz lembrar a imagem estereotipada que os europeus têm das tribos africanas. Para cumprimentá-lo, Mafalda pronuncia palavras inteligíveis que o leitor infere ser imitação de uma língua africana. Felipe alegra-se com sua chegada e pergunta-lhe o que achou do mar. Sua definição de mar deixa Felipe atônito e diverte o leitor: é engraçado pensar que, para ela, estar no mar é como estar numa panela de sopa carregada por um bêbado. Um leitor que já conheça a personalidade e os gostos da protagonista da história, infere que o mar não a agradou: Mafalda odeia sopas. Esta leitura da tira parece ser suficiente para o entendimento da história, ainda que algumas informações ostensivas do primeiro quadrinho, não sendo consideradas relevantes, tenham sido ignoradas.

Na publicação de onde a tirinha foi extraída, há, em notas de rodapé, várias informações históricas compiladas pela jornalista Sylvina Walger. Naquela época, a imprensa estava fazendo várias coberturas jornalísticas sobre o Congo Belga, hoje República do Zaire. Muitas notícias foram publicadas sobre a intenção de Nose Capenda Chombe, grande proprietário de terras em Katanga, de transformar a província mais rica da nação em Estado independente. Patrice Lumumba, o primeiro ministro do Congo lhe fez oposição. Derrotado, Lumumba foi substituído pelo coronel Joseph Desiré Mobutu e entregue a Chombe. Em janeiro de 1961, divulgaram-se notícias de que Lumumba morrera ao tentar escapar. Após sua morte, Chombe, com o apoio dos belgas, começa uma guerra civil contra o presidente Kasavubu – Mobutu, aliado dos Estados Unidos.

As informações relatadas pela jornalista possibilitam uma extensão do contexto inicial a qual torna todas informações do primeiro quadrinho relevantes. Percebe-se, então, que a pele bronzeada de Mafalda e o arranjo de seu cabelo fazem alusão aos fatos ocorridos no Congo e o que antes parecia ser uma língua africana inventada passa a fazer sentido: Mobutu é o sobrenome do coronel que passou a ocupar o cargo de primeiro ministro do Congo, Baluba faz lembrar Lumumba, o antigo primeiro ministro, e Chombe-Chombe remete ao latifundiário de Katanga. Desvendadas essas UCEs, percebe-se que o primeiro quadrinho é quase uma charge política. Ainda mais importantes para a legibilidade, são as informações históricas necessárias à interpretação de outra tirinha, a terceira por nós analisada..

No primeiro quadrinho da história, Mafalda pergunta à sua mãe se o presidente da república tem rugas. O desvendamento desta UCE requer que se saiba que a república a que Mafalda se refere é a Argentina e que, no ano de 1965, o mandato presidencial estava nas mãos de Arturo Humberto Illia. A mãe de Mafalda confirma suas suspeitas deixando-a pensativa. Se o presidente tem rugas, raciocina, seria melhor que o país usasse presidentes wash and wear. Ativando-se o conhecimento enciclopédico de que a expressão em inglês denota um tipo de tecido que não precisa ser passado após a lavagem, entende-se não só que o governo precisa ser como o tecido, bem passado, sem rugas, mas também que uma troca de presidente, do ponto de vista de Mafalda, deve ser fácil como trocar de roupa. Não obstante, para a informação sobre as rugas do presidente ser entendida como relevante é fundamental levar em consideração as informações fornecidas por Walger a seu respeito. Informa a jornalista que a imagem do governo havia se deteriorado tanto, que até as rugas do presidente tinham se tornado motivo de choça. Nas piadas, estas marcas do tempo simbolizavam o estilo de seu governo, o qual, segundo a oposição, era a favor da calma e da unidade, porém incapaz de resolver problemas candentes como a desvalorização dos salários e a inflação. Ativada esta porção de conhecimento, percebe-se que a tirinha reflete um momento político em que o presidente da Argentina estava sendo visto como motivo de vergonha nacional.

A primeira tirinha analisada exemplifica casos em que o conhecimento de mundo necessário à compreensão faz parte do saber cotidiano partilhado pela comunidade em geral. A segunda é mais intelectualizada, uma vez que sua interpretação é enriquecida pela consideração do momento histórico em que foi criada. Continuando a gradação de dependência com relação ao contexto histórico, a última só é inteligível se certas informações históricas são acessíveis ao leitor. Percebe-se, assim, a importância do conhecimento de mundo do leitor para a legibilidade de um texto quer este conhecimento seja limitado a saberes cotidianos, quer abranja saberes mais especializados como é o caso do conhecimento histórico. Explicitadas as caracterizas das histórias de Mafalda no que se refere a sua dependência às condições de produção textual, investigamos se a didatização de suas histórias as levam em consideração e se isto se dá segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de Língua Portuguesa no ensino fundamental. (PCNs)

Entendemos por didatização o processo pelo qual um texto é abstraído de seu suporte original, passando a fazer parte de outro suporte: o livro didático. Uma conseqüência desse processo é a alienação tanto das condições que propiciaram a produção textual quanto daquelas em que o texto foi inicialmente recebido. Outra, não menos importante, está relacionada à sua re-contextualização. O fato de o texto ser utilizado como exemplo para conteúdos gramaticais presentes na unidade do livro didático e de sua interpretação estar orientada por atividades de compreensão pré-estipuladas, não raro constrange o leitor a ter uma visão reducionista do texto. Não obstante, a didatização traz vantagens inegáveis: a compilação, numa única obra, de textos de várias procedências possibilita ao aluno o acesso a uma gama variada de gêneros discursivos; quando bem elaboradas, as questões de interpretação textual podem levá-lo a refletir sobre o que lê fomentando seu senso crítico, além disso, se a escolha dos textos é feita em função dos interesses e desejos do público-alvo, aumenta-se a probabilidade de sua leitura ser prazerosa e motivadora.

Havíamos visto que as histórias de Mafalda seguem uma escala graduada de dependência do contexto histórico: há desde as de tema universal que se interpretam com facilidade pelo grande público até aquelas cujo teor só é compreendido por quem tem conhecimento do momento histórico que as motivou. Tendo em vista os objetivos do processo de didatização – não só adequar os textos ao aluno de modo a tornar a leitura prazerosa, mas também graduá-las visando à formação de um leitor maduro e com senso crítico desenvolvido - é de se prever que, num livro didático de Língua Portuguesa dedicado aos últimos ciclos do ensino fundamental (5a. a 8a. ), as histórias de tema universal prevaleçam e que, gradualmente, sejam inseridas aquelas cuja interpretação pode ser enriquecida por meio da contextualização histórica, por fim, espera-se que, ao final do ciclo, histórias mais politizadas sejam lidas e interpretadas criticamente.

No que diz respeito ao trabalho pedagógico, não se pode esquecer que as propostas do PCN’s aconselham que o ensino de língua portuguesa parta do USO para a REFLEXÃO e da REFLEXÃO para o USO. Do nível lingüístico, parte-se para o epilingüístico, e, desse, para o metalingüístico, que não deve ser trabalhado isoladamente. No nosso caso, num primeiro momento, o aluno é motivado a ler determinado texto. Após atividades de interpretação do texto em si, pode haver atividades que levem o aluno a observar e refletir sobre a linguagem utilizada. Com base nestas reflexões, pode haver uso da nomenclatura gramatical oficial para fazer referência aos fenômenos observados e analisá-los com mais profundidade. Ressalte-se, porém, que, idealmente, atividades posteriores a de leitura, incluindo as de interpretação, devem estar bem articuladas ao texto lido ressaltando aspectos importantes para a sua compreensão e não se limitando a utilizá-lo como fonte de dados para análise gramatical.

Com estas expectativas em mente, começamos a análise da didatização das histórias de Mafalda ocorrida na série Português- Linguagens de Cereja e Magalhães (2002). A julgar pelas capas dos livros didáticos, as histórias em quadrinhos são sistematicamente utilizadas: na capa lilás do livro da 5a. série, há a reprodução de uma cena em que Felipe chora abraçado a Mafalda; desenhos do marinheiro Popeye ajudam a ilustrar a capa amarela da 6a. série, entre as ilustrações da capa verde da 7a., há tirinhas de Calvin e do dono de Garfield; no último livro da série, há desenhos de Quino e de Angeli.

   No livro da 5a. série, há nove histórias de Mafalda. Dessas, nove são sobre temas universais e duas podem ser mais bem compreendidas via ativação de conhecimento a respeito do momento histórico em que foram produzidas. A escolha das histórias parece ser coerente com o perfil dos alunos e confirma nossa hipótese de que histórias como a da primeira tirinha analisada prevaleceria num primeiro momento. Quanto à adequação das atividades propostas ao que os PCN’s apregoam, o resultado também é animador. Das nove histórias, em quatro há propostas realmente articuladas ao nível textual e discursivo.

A história mais bem aproveitada é a reproduzida à página 118. Trata-se de uma paródia à fábula da cigarra e da formiga, de Esopo. Manuelito está caminhando na calçada, carrega uma cesta de vime com mercadorias dentro e está pensativo. Lembrar-se de que seus amigos – Mafalda, Filipe e Susanita – estão de férias enquanto ele trabalha faz-lhe concluir que ele é a formiga da fábula.Este pensamento lhe dá tanto pesas que, ao final da história, ele blasfema os fabulistas: “Malditos sejam Esopo e todos os outros”, diz ele. Haja vista que a fábula da cigarra e das formigas foi apresentada anteriormente aos alunos, numa unidade anterior localizada à p.62, é de se esperar que os alunos sejam capazes de ativar a UCE fábula da cigarra e da formiga e promover a extensão do contexto, estabelecendo a intertextualidade. Acrescente-se que a tirinha faz parte de um capítulo que tem as fábulas por tema: a da Raposa e das Uvas e as atividades de compreensão textual sobre ela antecedem a história de Manuelito. Na seqüência, há uma proposta de produção de fábula e uma atividade de produção oral após leitura da fábula A lebre e a tartaruga (p.119). Percebe-se, assim, que a história em quadrinhos está bem contextualizada dentro da obra didática e que o fato de ela remeter a um texto que os alunos já leram garante sua legibilidade, pois o conhecimento de mundo necessário à compreensão textual lhes está totalmente acessível. Quanto à descontextualização da história, ela não prejudica em nada a compreensão, já que o tema é universal.

Como exemplo de história pouco aproveitada por tratamento didático dado ao texto indicar que ele foi utilizado como simples fonte de dados, há a história reproduzida à página 63. Nessa história, Mafalda insiste que seu pai lhe dê uma explicação; ele se nega e justifica sua ação argumentando que há assuntos de criança e assuntos de gente grande. Tirando uma conclusão lógica a partir da argumentação de seu pai, Mafalda faz-lhe prometer que ele, no futuro, não fará uso do mesmo argumento dizendo que “gente grande não entende coisa de velho”. (p. 63) Como se vê, esta história tem por tema o conflito de geração. Levando em consideração que os alunos são pré-adolescentes, a leitura poderia ensejar uma discussão mais ampla (poder-se-ia discutir o que é ser criança, o que é ser adulto, o que é ser velho, como os alunos se sentem a respeito de sim mesmos, etc) o que motivaria os alunos a ativarem seu conhecimento de mundo. Ao invés disso, o exercício proposto limita-se a instruir o aluno para que elabore um texto no qual haja um parágrafo introdutório e um diálogo formado pelas falas das personagens as quais devem estar em discurso indireto. Percebe-se, assim, que a história é utilizada, exclusivamente, como fonte de dados para o ensino dos tipos de discurso.

Ainda que algumas histórias tenham sido mal aproveitadas, todas elas tratam de temas universais e nenhuma requer conhecimentos que um aluno de 5a. série não tenha. Menos adequado ao público-alvo são as histórias e as atividades do livro da 6a. série. Nessa obra, há cinco histórias. Duas foram mal aproveitadas por terem sido utilizadas exclusivamente como pretexto para o ensino de gramática e uma mostrou-se totalmente inadequada.

A análise da terceira tira mostrou o quanto as histórias de Mafalda podem ser dependentes do momento histórico que a motivou: sem as informações sobre quem era e como era visto o presidente da Argentina na época não se consegue entender o que Quino quis dizer com a história publicada no livro da 6a. série, à página 62.

Nessa tira, há um só quadro: ao fundo, os amigos de Mafalda estão atônitos ou tristes, maior, mais à frente e à direita, Mafalda pergunta: “– Vocês já pensaram que se não fosse por todos nenhum saberia nada?”. Esta história é usada no livro como fonte de dados para o ensino de verbos irregulares, a atividade proposta pede que o aluno observe a conjugação do verbo ser na 3a. pessoa do pretérito imperfeito do subjuntivo na fala da protagonista.

Em primeiro lugar, chama a atenção o erro de tradução do espanhol para o português. Ao que tudo indica, o pronome ninguno do espanhol foi inadvertidamente traduzido por “nenhum”, haja vista que a estranheza da frase de Mafalda desaparece trocando-se o pronome indefinido de coisa por pronome indefinido de pessoa: “se não fossem por todos, ninguém saberia nada.” Com relação àquilo de que trata a história, pode-se afirmar que Mafalda faz referência à construção coletiva do conhecimento, mas, porque o faz é um enigma. Não saber o que a motivou impossibilita perceber a intenção do autor e todo o jogo discursivo-argumentativo que lhe dá sustentação. A história ser em preto e branco e haver uma linha horizontal abaixo das personagens indicam que ela foi escrita como uma espécie de nota de rodapé no jornal. De acordo com Walgner (1988) este tipo de quadrinho era uma espécie de vinheta acrescentada por Quino depois que o jornal era examinado pelo censor. Acreditamos que a fala de Mafalda faça referência a algum fato relevante para a história da Argentina, daí ser difícil interpretá-la quando não se tem acesso à informação requerida. Devido à dependência ao momento histórico, à ausência de qualquer informação histórica, à falha de tradução e sua utilização como pretexto para ensino de gramática, esta tirinha pareceu-nos totalmente inadequada.

No livro dedicado à 7a. série, há um exemplo de análise contextualizada das histórias de Mafalda. Ao final do terceiro capítulo, na parte denominada “intervalo”, à página 75, um texto curto informa que, além de fazer rir, o humor faz-nos refletir sobre o mundo que nos cerca. Logo abaixo do texto, há uma história de Quino, composta por cinco tiras, que denuncia a censura a que o cartunista estava submetido à época da ditadura: ele é obrigado a mostrar à “polícia humorista” a tirinha de Mafalda que havia criado, a história não agradou e ele é algemado e levado à força. As perguntas de interpretação levam o aluno a pensar sobre a contextualização histórica e a função política do humor. Em algumas questões, falas de humoristas (Ziraldo e Zélio) e de um músico (Milton Nascimento) ajudam o aluno a refletir sobre o tema. No lado inferior direito da página em que as questões estão, um texto curto intitulado “Ria por mim, Argentina” fornece as informações históricas necessárias à interpretação textual.

A despeito da proposta de se analisar o humor de um ponto de vista histórico e politizado, as outras histórias de Mafalda publicadas ao longo do livro, são cinco ao todo, são universais não dando margem a este tipo de reflexão, sendo que, em duas delas, as histórias são usadas apenas como pretexto para o ensino de tópicos gramaticais.

Na última obra da série, das treze histórias utilizadas, apenas três não têm por função servir apenas como fonte de dados para exercícios gramaticais. Mesmo nos casos em há questões interpretativas relacionadas às histórias, há sub-aproveitamento na maior parte delas.

As questões relativas a uma história publicada à página 31 do livro dedicado à 8a. série, é um exemplo de como a interpretação pode ser reducionista quando não considera a ativação de conhecimento de mundo dos leitores. Nessa história, Mafalda caminha pela rua e lê os escritos que Manuelito colocou nos muros: “Filhos! Que oferecer à mamã em seu dia?”; “É bom ir pensando! A mercearia Manolo sugere o seu grande sortido de sabões, panos para o chão, etc.”; “Não se esqueçam de que uma mãe cansada bate com menos força!”. Das cinco questões do exercício, apenas duas são interpretativas, as demais pedem que o aluno faça análise sintática dos períodos compostos. Na primeira, o aluno é levado a analisar os escritos identificando as características do gênero discursivo a que eles pertencem: público-alvo, anunciante, produtos oferecidos e data comemorativa aludida. Na segunda, pergunta-se como Manuelito tornou os produtos atraentes. Como resposta, o livro do professor sugere: “Com a argumentação do 3o. quadrinho: as mães cansadas batem nos filhos com menos força.”

A nosso ver, a argumentação do último quadrinho pode ativar, no leitor, tudo o que ele já sabe ou vivenciou a respeito da violência doméstica, tema presente nos Temas Transversais propostos para o ensino fundamental. Há, na argumentação de Manuelito, o pressuposto de que todos os filhos apanham de suas mães. Seria interessante que houvesse questões que motivassem os alunos a externarem seus conhecimentos e sua vivência a respeito da violência doméstica, o que poderia dar origem a um debate sobre o assunto. Não obstante, a resposta sugerida pelos autores indica que houve uma análise superficial da tirinha que desconsidera o conhecimento de mundo dos leitores.

O mesmo não ocorre com outra história, à página 262.No primeiro quadrinho, Mafalda entusiasma-se com a chegada da primavera e diz “Graças a Deus chegou a primavera!”. No segundo, vê um senhor de idade dizendo a outro “Graças a Deus, cheguei à primavera”. A cena faz Mafalda concluir, com tristeza, que estava dizendo trivialidades. As questões interpretativas levam o aluno a perceber as nuances de sentido do verbo “chegar” e motiva-o a especular sobre o que Mafalda quis dizer no último quadrinho.Para responder à questão, é preciso ativar nosso conhecimento de mundo sobre a vida, a morte e o tempo, só assim é possível entender que a felicidade do velhinho por estar vivo é infinitamente maior da sentida por Mafalda pela chegada da primavera: para ele trata-se de uma vitória perante a morte, para ela é apenas mais uma primavera que chega.

Considerando todas as histórias publicadas na série Português- Linguagens bem como as atividades propostas a partir delas, pode-se dizer que, no geral, prevalecem histórias universais e atividades nas quais as histórias em quadrinhos são usadas como pretexto para ensino de estruturas gramaticais. Não obstante, também há histórias bem contextualizadas no livro didático e para as quais houve elaboração de questões interpretativas pertinentes. Acreditamos que, se o professor estiver consciente da importância do conhecimento de mundo para o fazer interpretativo e tiver acesso a informações sobre a personagem de Quino e do viés político que o cartunista imprimia às tirinhas, ele mesmo poderá propor encaminhamentos pedagógicos enriquecedores capazes de superar as desvantagens do processo de didatização. Para tanto, julgamos ser fundamental que o professor tenha clareza sobre a real importância do conhecimento de mundo para que um texto seja considerado legível para seus alunos e saiba como ocorrem a ativação e o processamento dessas informações no decorrer do fazer interpretativo.


 

Referências Bibliográficas

CEREJA, Willian Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português -Linguagens. 2a ed. 5a–8a séries. São Paulo: Atual, 2002.

FULGÊNCIO, Lúcia; LIBERATO, Yara. Como facilitar a leitura. São Paulo: Contexto, 2001.

KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2001.

QUINO. COLOMBO, Alicia e Julieta e SYLVINA Walger, (org.). Mafalda inédita. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1988.

SILVEIRA, Jane Rita; FELTES, Heloísa Pedroso de Moraes. Pragmática e Cognição: a textualidade pela relevância. 3a ed. Porto Alegre/Caxias do Sul: EDUCS/EDIPUCRS, 2002.

SPERBER, Dan; WILSON, Deirdre. Relevância: Comunicação e Cognição. ALVES, H.S. (trad.) Braga: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001 [1986].


 

 

 

[1] De acordo com o Novo Manual da Redação (Folha de S. Paulo), nariz-de-cera é “parágrafo introdutório que retarda a entrada no assunto específico do texto. É sinal de prolixidade incompatível com jornalismo” (1992: 93).

[2] Lide em português é tradução da palavra em inglês “lead”, traduzida como cabeça, líder, é o que se convencionou chamar no jornalismo do início do texto.