Distrito Nossa Senhora da Guia/MT
estudo semântico-lexical na fala dos idosos

Sandra Regina

 

O estudo da língua portuguesa e sua utilização nas comunidades mais longínquas, desperta o interesse dos lingüistas que buscam agregar elementos às suas pesquisas que evidenciam as mudanças e variações da língua nos séculos e povoações. Da mesma forma, eles pesquisam e registram elementos lingüísticos que denotem a manutenção deste ou daquele léxico como resultado da força sociolingüística nas comunidades menores e interioranas com características marcantes de manutenção histórico-cultural dos colonizadores locais.

Antenor Nascentes iniciou toda esta busca lingüística e ainda hoje influencia muitos projetos e motiva muitos desejos de “descobrir” o verdadeiro português brasileiro.

Nesta procura por rastros lingüísticos que evidenciem a língua dos antepassados e reconstruam a história do português brasileiro, o Distrito Nossa Senhora da Guia, no Mato Grosso, se incorpora a um projeto maior que retoma o caminho fluvial dos bandeirantes fazendo um percurso investigativo na fala dos povos que habitam as localidades povoadas por estes desbravadores.

 

Passos marcados pela história
– A formação do Estado de Mato Grosso:

Os primeiros a trilhar o solo matogrossense foram os paulistas que, através de suas expedições fluviais, caçavam índios que pudessem ser comercializados e transformados em mão-de-obra escrava. Nestas “andanças” em que os bandeirantes devassavam o interior da Colônia à procura de índios, o metal precioso foi descoberto casualmente e se transformou no maior motivador da colonização do Mato Grosso e, seqüente expansão.

Madureira, Costa e Carvalho (1990: 8) salientam que:

Foi na busca dos índios Coxiponé que a bandeira de Antonio Pires de Campos, em 1718, atingiu o rio coxipó. No encalço dessa bandeira, veio outra, comandada por Pascoal Moreira Cabral (1719) a qual, acidentalmente, encontrou ouro nas barrancas do citado rio.

Com a descoberta aurífera, teve início uma nova etapa de atividade nessa região. A função de caçar índios ficou relegada a segundo plano, cedendo lugar às atividades mineradoras, praticadas de forma rudimentar, pois não contavam os bandeirantes com instrumentos de minerar.

João Carlos Vicente Ferreira (2001: 35) corrobora com essa afirmativa e acrescenta:

Em 1718, o bandeirante Antônio Pires de Campos, (...) encontrou-se com gente da bandeira de Paschoal Moreira Cabral Leme, informando-lhes sobre a possibilidade de prearem à vontade. (...)

ao ser informado da fartura da (possível) preá, Paschoal Moreira Cabral Leme internou-se Coxipó acima: o seu intento, no entanto, não foi realizado, pois no confronto com o gentio da terra, na confluência dos rios Mutuca e Coxipó, os temíveis Coxiponés, que dominavam esta região, teve sua expedição totalmente rechaçada pelas bordunas e flexas certeiras daquele povo guerreiro.

Enquanto a expedição de Moreira Cabral leme se restabelecida dos danos causados pela incursão Coxiponé, dedicaram-se ao cultivo de plantações de subsistência, apenas visando o suprimento imediato da bandeira. Foi nessa época que alguns dos seus companheiros embrenhando-se Coxipó acima, encontraram em suas barrancas as primeiras amostras de ouro.

A caça e comercialização dos índios não traziam riqueza como a mineração do ouro. Assim, com a descoberta das primeiras pepitas desse metal, os bandeirantes paulistas passaram a ver na mineração a grande possibilidade de enriquecimento rápido e sólido, renegando o objetivo principal da bandeira.

As autoras destacam ao longo do seu texto, que a quantidade de ouro encontrada não era suficiente para o crescimento econômico e a sustentabilidade da região e daqueles que exploravam o minério porém, esta possibilidade era ignorada e a informação de haver minas de ouro em Cuiabá e arredores resultou em um aumento populacional desordenado que trouxe muitos outros problemas sociais para os bandeirantes. Citam Madureria, Costa e Carvalho (1990: 10):

Apesar das dificuldades enfrentadas no trajeto percorrido entre São Paulo e Cuiabá, as monções puderam conduzir, para a região mineradora grande contingente populacional composto de religiosos, funcionários do governo, comerciantes, profissionais liberais, escravos e aventureiros. (...) Nos primórdios da mineração, a grande necessidade de consumo, decorrente do aumento populacional rápido e desordenado, resultou na escassez de produtos e na elevação dos preços dos mesmos.

E acrescentam ainda:

O ouro em Mato Grosso teve um período rápido de existência, não proporcionando, como aconteceu em Minas Gerais, uma evolução e desenvolvimento da vida urbana. (...) O ouro de Mato Grosso, além de aluvional, não foi suficiente para aqui estabelecer uma sociedade marcada por sua existência mas, ao contrário, durante o período da mineração, o que se assistiu foi a um cenário de fome, pobreza e miséria.

Com a mineração incontrolável e precária, em dois anos os bandeirantes pioneiros esgotaram os veios auríferos do Rio Coxipó – local onde foram encontrados os primeiros indícios de ouro na região, Rio Mutuca e Rio Verdeextensão povoada por mineradores. Com isso, a urgência em procurar novos locais de exploração mineral ou outros meios de subsistência, tornou-se imprescindível, pois o número de mineradores aumentava dia após dia e não havia condições de mantê-los sem as providencias e o atendimento às suas necessidades vitais.

Essa preocupação fez com que o bandeirante Miguel Sutil se deslocasse até as terras matogrossenses na pretensão de cultivar a terra e desenvolver a agricultura local; um intento ousado, uma vez que o objetivo de todos era encontrar ouro e não se dedicar à produção agrícola.

Na sua tentativa de preparar o solo para o cultivo, Miguel Sutil encontrou um dos veios auríferos mais importantes no local denominado Tanque do Arnesto. A nova descoberta não renegou a agricultura a segundo plano, como provocou uma explosão populacional que daria origem à capital nos anos seguintes.

Segundo Ferreira (2001: 37), no período de 1722 a 1726 Cuiabá destacava-se como uma das mais populosas cidades do Brasil.

Os veios auríferos matogrossenses ganham destaque novamente e o ouro, como grande motivador da colonização do Estado de Mato Grosso, provoca um fluxo migratório advindo da própria capitania de São Paulo e de outras como Rio de Janeiro, Minas Gerais e do Nordeste.

A migração em grande escala trouxe para o estado profissionais de diferentes áreas e com habilidades para outras atividades. Estes profissionais, dedicados a princípio à extração do ouro, passaram a garantir a subsistência e a continuidade da povoação local pouco tempo depois, pois a mineração foi desaparecendo e os problemas econômicos surgiram com a mesma velocidade que a migração acontecia.

Madureira, Costa e Carvalho confirmam esta afirmativa, quando destacam que:

Com o ouro ocorreu um aceleramento do processo de interiorização, primeiramente pela ação dos bandeirantes e, depois, pela vida de migrantes: tropeiros, monçoeiros, mineiros, criadores de gado, cléricos, profissionais liberais e agricultores.

Para as autoras, “Mato Grosso somente entrou para a História do Brasil, no momento em que os bandeirantes paulistas aqui encontram ouropois o “garimpo” de índios não tinha a relevância histórica da extração do minério, e que “foi apoiado na mão-de-obra indígena que se desencadeou todo o processo de ocupação de Mato Grosso, cujo território era habitado por muitas nações indígenas”.

Contudo, a exploração inadequada e a falta de vocação para cidade de minas auríferas, fizeram com que a decadência da mineração fosse sentida no final do século XVIII e a população que permanecia nas terras precisou dedicar-se a outras atividades produtivas para garantir a manutenção das famílias que aqui estavam instaladas.

Nesse panorama, os profissionais chegados dos diversos estados brasileiros somaram-se à idéia inicial de Miguel Sutil e a agricultura de subsistência foi ganhando caráter comercial. Além de cultivar a terra, a produção de gado e o desenvolvimento de outros comércios, sugeriram novas possibilidades de crescimento local e econômico; no século XIX os exploradores e colonizadores de Mato Grosso mudaram seu foco e centraram seus interesses na pecuária extensiva, exploração da borracha, da erva-mate, da poaia e na industrialização do açúcar.

Com isso, as veias auríferas foram sendo esquecidas e hoje apenas fazem parte da história dos desbravadores, uma vez que a agricultura matogrossense é destaque internacional devido a sua produção agrícola de soja, algodão e arroz e a implementação de alta tecnologia nos campos de cultivo.

No lugar onde foi encontrada a maior mina de ouro que gerou a povoação do Estado, está edificada a Igreja Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, às margens do Ribeirão Praiha.

No cultivo agrícola de Mato Grosso, se somaram aos migrantes aqui instalados outros tantos advindos da Região Sul do Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) com grandes ideais de desenvolvimento, conquista de espaços territoriais e ganhos inimagináveis nos estados de origem.

Nas palavras das historiadoras Madureira e demais, “a ocupação da região Centro-Oeste (Séc.XVIII), sempre esteve ligada a interesses econômicos metropolitanos e coloniais, pois os migrantes que aqui chegavam possuíam aguçadas idéias de enriquecimento. (...)”.

 

Distrito Nossa Senhora da Guia
- Nos caminhos de Cuiabá,
uma localidade importante
para a história lingüística:

Essa Guia antes de faze essa praça, aqui era um baburro, mato. Você ainda lembra quando roçavam aqui pra fazê o trilho da procissão, né? Acabô lutando pra fazê a praça. Fez a praça, limpó, né. Aqui era um carravascá bem feio. (...) Essa Guia aqui foi muito bom. Pelas Graças de Nossa Senhora, aqui foi muito bom. Nóis morava pra do Tijuco Preto. Tudo o sábado tinha quinzena aqui nessa igreja, de nóis saía nos escuridão sem lanterna sem nada. (...) Tempo da escola aqui era uma beleza. A escola era ali. Era uma casona, piso de mozaico, Acabaram com tudo. Prof. Manico era muito bom. (Dona Maria, 72 anos)

O Distrito Nossa Senhora da Guia[1] traz em seus registros históricos a idade de 260 anos.

Guia, ademais de ser distrito de Cuiabá, se confunde com a história da capital porque sua localização às margens do Rio Coxipó-Açu fez do lugar ponto de parada para as tropas que navegavam por esse rio trazendo mercadorias para a capital e, conseqüentemente, desenvolvimento, colonização e expansão ao “porto guiense”.

Situado a 42km da capital cuiabana, Guia tem seu surgimento ligado às expedições chefiadas pelo Capitão-Mor Gabriel Antunes Maciel que, nas suas manobras em direção ao norte da capitania, navegou pela passagem que posteriormente deu origem ao Distrito. Este foi o primeiro caminho rumo ao norte.

Dom Rodrigo César de Menezes, Capitão General Governador da Capitania de São Paulo e o responsável pelas navegações da Vila de Cuiabá (hoje, Cuiabá – Capital de Mato Grosso), tinha como principal objetivo controlar o ouro da minas cuiabanas com vistas a uma melhor arrecadação aos quintos da Coroa Portuguesa. Adotava uma postura rígida com legislações rigorosas que tolhiam qualquer possibilidade de crescimento econômico dos mineiros que trabalhavam para sua capitania e estes, por sua vez, entregavam todo o ouro em troca de alimentação.

O rigor extremista de Dom Rodrigo provocou a retirada de muitos mineiros que, em busca de novas possibilidades de vida, deixaram as minas cuiabanas e acomodaram-se nas redondezas da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, dando origem a novos arraiais e vilas. Nesse período surgiram pequenas localidades como Nossa Senhora da Guia.

Documentos diversos registram como possível data de surgimento da Guia o período correspondente entre os anos de 1736 e 1744, comprovando que o lugarejo apareceu no século XVIII – período em que Cuiabá ganhava atenção da Capitania Portuguesa e, conseqüente, desenvolvimento.

Como a maioria das cidades colonizadas durante o Império Português, Guia nasceu a partir da descoberta de algumas pepitas de ouro que deram lugar a um pequeno garimpo e atraíram alguns mineradores e suas famílias para o lugarejo. A extração deste minério não perdurou e os explorados ali estabelecidos buscaram outras formas de manutenção e desenvolvimento local, fazendo do “antigo portosua morada.

Antes de ser nomeado de Distrito, Nossa Senhora da Guia recebeu o título de Freguezianome dado às vilas ou aos lugarejos que detinham maior poder político na época. A Lei Provincial de 1850, assinada pelo Comendador das Ordens de São Bento D’Aviz e da Rosa, João José da Costa Pimentel, emancipou Guia em Freguezia.

O vilarejo, nomeado de Freguezia Nossa Senhora da Guia, representava uma fatia importante da economia cuiabana, pois era um dos mais importantes produtores de açúcar e farinha da região.

No que se refere às ascendências de Guia, Alencastro sugere que o Distrito tem influência dos colonizadores nordestinos, mineiros e, especialmente, paulistas, dada a procedência de todas as expedições vindas à Cuiabá: São Paulo. Apesar de haver registros de povos indígenas aos arredores da Guia, nãoevidências de sua interação com os colonizadores, bem como, participação na expansão do local; porém, a mão-de-obra escrava usada nas fazendas e engenhos marca a mestiçagem que compõe Guia.

Ao ler os registros do traçado urbano, é interessante observar o lugar de destaque dado à igreja na distribuição territorial retomando a idéia de religiosidade presente no povo guiense e a um fator primordial das colonizações da época: a construção de uma capela para o estabelecimento dos religiosos que acompanhavam as capitanias.

A capela de Nossa Senhora da Guia ocupava o centro da localidade, ponto no qual também foi construída uma praça para reunir os moradores. Tal localização propiciava as reuniões de amigos e as discussões a cerca dos problemas a serem resolvidos na comunidade. A igreja era o referencial de , de organização social e um líder silencioso.

A primeira igreja de Guia foi construída de pau-a-pique no século XIX. Os anos foram alterando as condições físicas do local e quatro reformas resultaram na mudança do aspecto externo da Capela Nossa Senhora da Guia. Sua arquitetura interna, porém, foi mantida comotesouro cultural”. Até a conclusão da construção da nova igreja, a Capelinha da Guia manteve-se ativa sob os olhares cuidadosos de seus moradores que compreendem o valor da manutenção da sua história. A antiga Capela Nossa Senhora da Guia se tornará, em breve, apenas um local para visitação como patrimônio guiense, pois guarda objetos de riqueza histórica e cultural do século XVIII.


 

A caracterização do corpus lingüístico:
O
s moradores idosos do distrito Nossa Senhora da Guia

Ao investigar elementos que identifiquem o “falar dos moradores da Guia”, determinamos os idosos do Distrito como nossos primeiros informantes e o seu falar, nosso corpus desta pesquisa.

Mas porquê este grupo social?

Acreditamos que os idosos mantêm mais evidentes as lexias na concepção, especialmente, de manutenção, agregando informações ímpares e muito úteis ao nosso trabalho de investigação do falar dos moradores do Distrito Nossa Senhora da Guia.

Assim, ao selecionar os informantes que comporiam o trabalho investigativo, observamos que todos tivessem: idade superior a 50 anos, escolaridade mínina, profissão definida e sem necessidade de mobilidade e ainda, que fossem nascidos no local ou tivessem morado na Guia desde crianças; pontos estes que consideremos essenciais para aquilo que se pretendia: identificar a manutenção, variação ou mudança semântico-lexical nos falantes entrevistados.

Os pré-requisitos, neste contexto de coleta oral, podem determinar o sucesso ou não do trabalho investigativo, pois o grupo entrevistado se enquadrará num perfil que condiz com a pretensão do trabalho e que responde às hipóteses lingüísticas levantadas já no projeto de pesquisa. Se este mesmo grupo não for “verdadeiro” e sua exposição oral não pretender os objetivos da pesquisadora, as respostas obtidas produzirão um resultado contrário, arbitrário e passível de questionamentos.

A escolha dos informantes para o pesquisador que desconhece os moradores da comunidade onde está iniciando seu trabalho, passa pela rede de relacionamentos dos próprios informantes. Como uma cadeia, o primeiro informante sempre é indicado por alguma autoridade local, seja ela política ou religiosa que indicará o próximo e assim sucessivamente.

Os informantes deste trabalho foram indicados por este processo.

No primeiro contato com o Distrito, nos dirigimos a Sub-Prefeitura. Ali, em conversa com o Sub-Prefeito e demais autoridades legislativas locais, fomos até a casa do primeiro informante: Sr.Manoel[2]. A partir dele vieram sequencialmente: Sr.Samuel, Sra.Luiza, Sra.Benedita, Sra.Maria Lina; Sra. Marcolina, Sra.Erotide, Sra.Geralda, Sr.Egídio, Sr.Angélico, Sra.Luisa, Sra.Agustinha, Sr.Maurício, Sra.Nilza e Sra. Francisca. Os entrevistados foram referenciados na localidade por suas histórias de vida e atuação política, social e/ou religiosa.

As mulheres, mesmo sendo donas de casa e vivendo unicamente em função do marido, dos filhos e dos afazeres domésticos, representam o maior número de entrevistados porque são as mais disponíveis para falar e contar suas histórias, o que as torna voluntárias interessantes para a pesquisa. Os homens idosos da Guia, contudo, estão em menor quantidade tanto na pesquisa quanto na comunidade. Mostram-se tímidos e pouco à vontade para colaborar na investigação. Eles preferem demonstrar suas habilidades e façanhas profissionais, seja no canto do cururu, na leitura dos recortes de jornais que evidenciam sua atuação, na demonstração de sua habilidade e melodia com a reza ou nas qualidades familiares de pais e avôs.

Mesmo com toda a dificuldade de encontrar informantes disponíveis e interessados em permitir uns minutos de conversa despreocupada com a pesquisadora (não é típico nas comunidades interioranas permitir que “desconhecidos” investiguem fatos ou coisas da vida), este grupo, quando envolvido, conversava tranqüilamente e dava seqüência às intervenções da pesquisa que pretendia obter o maior número possível de léxicos na fala destes idosos e nas suas narrativas livres.

As conversas iam da infância às dificuldades da vida atual; das brincadeiras de menino às responsabilidades de homem, pai de família ou chefe comunitário. Do saudosismo à evidência de que modernidade trouxe comodidade e praticidade à vida.

A seu modo, cada informante promoveu um festival rico em lexias que denotam a cultural local e os costumes antigos ainda muito arraigados na população guiense.

As mulheres, mesmo sendo donas de casa e vivendo unicamente em função do marido, dos filhos e dos afazeres domésticos, representam o maior número de entrevistados porque são as mais disponíveis para falar e contar suas histórias, o que as torna voluntárias interessantes para a pesquisa. Os homens idosos da Guia, contudo, estão em menor quantidade tanto na pesquisa quanto na comunidade.

 

O falar dos moradores idosos
do Distrito Nossa Senhora da Guia/MT:
demonstrativo lexical

A investigação lingüística pretendida na Guia está em andamento.

As entrevistas já foram feitas e transcritas, contudo, as tabelas semântico-lexicais ainda não estão concluídas e completas, o que inviabiliza a apresentação plena deste trabalho.

Para a construção das tabelas, foram colhidos os léxicos de 15 informantes já descritos no texto anterior, com atenção às palavras que representam maior diversidade e caracterizam a região.

Para compreender melhor o que se pretende aqui, enfocando a análise da variação, manutenção ou mudança semântico-lexical na fala dos moradores idosos do Distrito Nossa Senhora da Guia, destacaremos algumas lexias e sua concepção para aguçar o interesse daqueles que se dedicam ao trabalho lingüístico e acreditam na necessidade do resgate do idioma nas suas mais variadas formas, como possibilidades de reconstruir o processo formativo da nossa língua portuguesa e ponderar sua transformação ao longo dos anos.

Vale destacar ainda, que o vocabulário colhido nas entrevistas foi dividido em grupos semântico-lexicais para facilitar a análise do pesquisador e a compreensão do público-leitor.

 

Grupos Semântico-Lexicais:

G1. Casa/moradia;

G2. Atividades domésticas e profissionais (e objetos que envolvem estas atividades);

G3. Religião, concepção de vida, família e matrimônio;

G4. Infância;

G5. Vida urbana

 

Exemplos extraídos do falar dos moradores idosos
do Distrito da Guia:

G1.

“fui criado no mato, no cerrado

“ (...) aqui era velha, tava pra cair já a casa. Então ele construiu a casa do lado de cima, mas ta pelado ainda, ainda ta pelado, num ta rebocado; falta só porta, janela.”

“...mas a taperinha ta lá que mamãe dexô...”

“Essa Guia, antes de fazê essa praça, aqui era um baburro, mato. (...) Aqui era um carravascá bem feio. Carravascá? Era, tinha aquele espeinha de guá, pedregoso, tudo quanto era porcaria.”

“Era só eu e minha vó que morava. Numa barraquinha; nesse tempo não era assim levantado como é hoje. (...) Não existe mais quase casa levantada de adobo, né? Tempo de vovó era assim, era madera fincada assim. Fincava as travessa assim de lado no chão, aí vinha com aquelas madera tudo cortado e ia empiando assim naquelas tudo amarrado e ia empiando assim pra fechá e aí as porta tb era assim, enfiadinha as madera na porta. Tudo montado de madera; a cobertura de banda era de paia de acurê, outra veiz nóis pegava paia de arroz na roça pra tapá tudinho de banda, a cobertura tb de cima de paia de acurê.”

“Naquele tempo fazia rancho na mata grande, na roça, onde fazia roça, fazia rancho de paia de acurí; era uma casa feita de pau e cubria com a paia do acurí. Aí ele foi fez o rancho e botô as paia verde.”

 

G2.

“Samué mascateaba, ele lidava com mascataria. Ele mascateaba ropa, cascalho. Mascateá é saí vendendo as coisa, vendendo, ele vendia. Ele ia de casa em casa vendendo as coisa. Ele ia, ele ia carregado de arguma coisa para vendê, carçado, ropa, perfume que ele vendia, vendia tudo as coisa.”

“Aí tinha muito serviço, tinha que limpá a igreja, porque limpá não é só barrê, tinha que vascuiá – a parede num cria aranha? Trem de aranha? Tira teia de aranha da parede. Pegava a toaia lavava, passava, né, tirava aquela quantia, trazia pra lava e depos passava ia colocar outra, trocava uma vez por semana as toalha”.

“Nóis cozinhava na panela de barro, feito assim no tapuru com três pedras – tapuru é de pedra, falava tapuru.. É três pedra, um pra cá, um pra lá e um pra qui. Aí pra cuzinhá, fazia o fogo, apanhava a lenha e fazia o fogo. Aí que nóis cozinhava nesses três tapuruzinho. Na panela de barro. Os prato era de madera, é tudo de madera, não tinha prato comprado, era só de madera; aí nóis ia, comia junto c’minha vó. Uma bateinha assim, de madera. Era tipo uma bateinha assim redondinha assim, o povo costumava falá gamela, toda de oreinha de lado.”

“(...) ia lavá mandioca, ia ralá, ou então ia socá a massa pra coá pra quem ia fazê a farinha, né? Bardiava água na cabeça, do corgo.”

“Como fazia farinha!!! Ainda lembro; se achá uma mandioca ainda sei fazê. Descasca, pela ele, torrava e era no ralo, não é como agora que esses povo mexe com o caititu, um negócio que é igual liquidificador. Era no ralo, pra ralá ele, aí tem um pipiti, aí tem uma prensa assim... pipiti pra secá a massa, pra fazê a farinha. Relá a massa e enche esse pipiti. Era um negócio assim, feito dessa grossura, feito de umbunda do mato que a gente faz, aí faz um jacazinho assim, tiotieia a boca dele e p’ enchê de massa. Aí tem uma prensa, um pau, igual furado como esse aí, uma madera. Aí faz um buraco nele e arruma outro pau de gancho e põe esse pipiti; põe ele e vai tocando umas poça, uns estouro assim nesse varão, pra fazê o tiro, pra escorrê a água, uma prensa mesmo quando vê que já ta seco vai com essa massa pro pilão, tira, bota no pilão, soca, côa e aí vai torrá. Tem o forno de barro. Aí tem a fornalha, assenta a;i, p’ toca lenha nele, p’torrá, p’fazê a farinha.”

 

G4.

“Lá fazia muita festa de quinzena, tinha Santa Cruz.”

“Eu cheguei pro meu pai e falei assim: meu pai eu vô casá! Agora! Uai, como assim? Ocê tem cabedar pra ocê casá agora? Aí eu falei: meu pai, eu sô filho de homem garantido...”

“Disse ele: todas as senhora tem suas doença que dá na lua certa; então, nessa doença, é perigoso manter contato com o marido porque fica grávida, não tem conversa.”

“Aí ele começô a me sondá pra vê se eu queria ir morá com ele. Sonda daqui, dali, e as criança diziam: vamo, mamãe, é home bom, vai cuidá da gente.”


 

G5.

“Nóis brincava lá tinha um cerradinho, tinha um galpãozinho, lá nóis barria lá, nóis barria bem limpinho, aí fazia armário lá, nóis fazia, fazia quitute. (...) tudo limpinho lá debaxo do arvoredo, aí nóis fazia tucurum pra lá, outro pra cá, botava a panela, botava, fritava carne, botava o arroz. (...) Nóis brincava de burrica também. E arrodiava, ia lá pra lá e depois vinha por aqui, ia pra lá assim, mas nóis brincava disso. Pois senta um lá na ponta e otro aqui na otra ponta e daqui que manda; fica rodando, né; a gente, mamãe falava assim: ‘óia voceis fica com essa arrodiação aí vai até gumitá, larga disso!’ Gostava de arrodiá, esse que era o tempo bom.”

“Ia pra roça c’minha mãe, pajá Marina, minha irmã, a tratá deles, faze eles durmi, amarrava a rede num apulero, é porque criança é leve, né, aí pra mim balançá eles, cantar pra eles, para eles durmi, e minha mãe c’papai ia carpi lá, fazê a pranta.”

“Eu gostava de brinca de boneca de sabuco. (...)Aí eu fazia tudo, os vestidinhos, cortava tudo, fazia vestidinho pras buneca, fazia rendinha, marrava assim aquelas rendinhas tudo assim nas perninas das maderinha aí arrumava as bunequinha dentro da rede pra durmí.”

 

G6.

“Ele só vem à noite posá em casa e cedo ele vai pro serviço; trabaia tudo e a noite ele vem num carro que leva bastante gente pra estuda a noite. É ônibus, é ônibus. O prefeito colocô um coletivo aí pra nóis, mas fico bom, e é bem baratinho.”

“Onze e vinte; em cima da hora. Meu relógio ta certinho c’o seu. Ta em cima da conta. Venha cá, apetece um café o um refresco?”

“Eu lembro quando ela deu cria, aí eu era muito dolenta assim, né? É, tinha muita dó assim.”

Estes são apenas alguns exemplos do vocabulário destacado na fala dos informantes da Guia.

A partir destes léxicos, buscaremos nos dicionários referência da Língua Portuguesa (Francisco Caldas Aulete, Pe. Raphael Bluteau, Laudelino Freire, Frei Domingos Viera, entre outros) subsídios lingüísticos para a determinação e diferenciação do vocabulário coletado, retomando e concretizando a proposta de trabalhar com a manutenção, variação e mudança semântico-lexical na fala dos moradores idosos do Distrito Nossa Senhora da Guia.

Este trabalho ainda precisa ser elaborado. Contudo, como dissemos anteriormente, é válido o registro de sua existência, uma vez que muito ainda há que se “desvendar” sobre a evolução da língua portuguesa nos seus usuários mais atípicos como resultado da integração cultural, racial e étnica: os brasileiros.

 

REFERÊNCIAS BILBLIOGRÁFICAS

ALENCASTRO, Aníbal. Freguezia de Nossa Senhora da Guia. Coleção Memórias Históricas- Vol.2. Várzea Grande: Fundação Júlio Campos, 1993.

AULETE, Francisco Júlio Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 3ª ed. [s.n.e.?], 1948.

BLUTEAU, Pe. Raphael. Vocabulário Português-Latino. [s.n.e.?], 1712-1728.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. [Rio de Janeiro]: Nova Fronteira, 2ª ed. 1986.

FERREIRA, João Carlos Vicente. Mato Grosso e seus municípios. Cuiabá: Buriti, 2001.

FREIRE, Laudelino. Grande e novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. 1922.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. [Rio de Janeiro]: Objetiva, 2001.

SILVA, Antônio Morais. Dicionário da Língua Portuguesa. [s.n.e.?], 2ª ed. 1813.

SIQUEIRA, Elizabeth Madureira; COSTA, Lourença Alves da; CARVALHO, Cátia Maria Colho. O processo histórico de Mato Grosso. UFMT: 1990. Cuiabá/MT.

VIEIRA, Frei Domingos. Grande Dicionário Português ou Tesouro da Língua Portuguesa. [s.n.e.?]:1871-1974.

VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do Sertão. Cuiabá: UFMT: 1993.


 

 

[1] Os dados históricos da Guia são retirados da obra de Aníbal Alencastro.

[2] A critério da pesquisadora os sobrenomes serão ocultados para não expor os informantes.