FILOLOGIA TEXTUAL E HISTÓRIA CULTURAL

Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz (UEFS)

 

INTRODUÇÃO

A filologia é uma ciência que tem como campo de estudo os textos escritos. Neste sentido, toda análise textual estará, de alguma forma, sob o seu domínio. É a partir do estudo do texto que o filólogo apresentará, aos estudiosos de várias áreas do saber, as diversas vertentes que aquele oferece.

Lázaro Carreter (1990: 187) define filologia como “ciência que estuda a linguagem, a literatura e todos os fenômenos de cultura de um povo ou de um grupo de povos por meio de textos escritos.” De acordo com Carena (1989), deve-se observar que foi a partir do posicionamento correto da investigação dos textos que se inaugurou uma nova era na história da cultura e do pensamento. Para ele, é a partir deste momento que se estabelece rigor científico na relação com o texto escrito ou com o discurso.

Como se trata de uma ciência muito antiga, e como é possível ocupar-se da linguagem de muitas e diferentes maneiras, o têrmo Filologia tem um significado muito amplo e abrange atividades assaz diversas. (AUERBACH, 1971: 11).

A filologia deve ser entendida como o estudo e a análise da cultura e civilização de um povo através dos documentos escritos deixados por aquele. De acordo com Carena (1989: 216), “[...] as possibilidades que a filologia avisada e reconhecida hoje nos pode oferecer alargam enormemente os campos de investigação de todas as disciplinas, mudando-lhes e até invertendo-lhes os objetivos e as posições.”

 

FILOLOGIA TEXTUAL E HISTÓRIA CULTURAL

Sendo a filologia o estudo e a análise da cultura e da civilização através de documentos deixados por um determinado povo, seu conceito segue atrelado à ciência da cultura. Nesta perspectiva, Lyons afirma:

[...] muitos dos conceitos com que lidamos são vinculados à cultura, no sentido de que dependem, para a sua compreensão, do conhecimento transmitido socialmente, tanto conhecimento prático quanto propositivo, e variam consideravelmente de cultura para cultura. (1987: 279).

De acordo com o exposto, o trabalho filológico que situa o uso da língua em seu contexto permite reconstituir a sociedade através daquilo que a análise lingüística deixa transparecer: o léxico, as mudanças semânticas, etc.

Identificamos a história dum povo ou da sua civilização ou do seu progresso espiritual com a história da sua língua, em que se revela a verdadeira história ideal na qual e sobre a qual corre a história através dos tempos, com os seus acontecimentos, com os seus factos e com as suas vicissitudes. (BERTONI, 1943: 21)

Para Lyons (1987: 293), “[...] as línguas em si só podem ser completamente entendidas no contexto das culturas nas quais elas estão encaixadas inextricavelmente; assim, linguagem e cultura são estudadas juntas.”

A Filologia contribui para os estudos de História Cultural quando prepara e ordena os materiais da investigação histórica mais convenientes, ou seja, aqueles que são “capazes de fazer reviver (se interrogados como se deve) o passado diante da nossa mente, como se fosse presente.” (idem, p. 29). A primeira condição da história é desenterrar o passado. Neste sentido a filologia se constitui como a sua preparação.

O exercício da história se dá através dos documentos, sejam estes notariais ou literários. A filologia busca o entendimento dos textos, lançando as luzes possíveis: corrigindo aqueles deturpados pelos copistas, restaurando, integrando ou reintegrando o fragmentário; preparando edições, quer sejam diplomáticas, semidiplomáticas, críticas.

 

EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA DA CARTA DE ALFORRIA
PASSADA EM NOME DA ESCRAVA MARTINA

Quando se edita um texto que trata da libertação de um escravo, ou seja, de uma pessoa negra trazida do continente africano para o Brasil, sendo neste país mantida em cativeiro, toda uma gama de informações vem a tona, revelada através do labor filológico.

Buscou-se, neste trabalho, apresentar a edição da carta de alforria da escrava Martina, cujo senhor a libertou condicionalmente, isto é, sendo a sua morte condição para a liberdade da escrava e de seus filhos. A carta mencionada acima foi passada pelo Senhor José D’Anunciação e Souza em favor da sua escrava Martina e seus filhos Ignez, Antônio, Maria e Ângelo. Para tanto, registrou a carta, a fim de que seus herdeiros não reclamassem esse bem posteriormente. A carta foi passada no dia 24 de outubro de 1881 e registrada no dia 1 de dezembro de 1881. A seguir, a edição da carta e do seu registro.

A carta de alforria

Lançada a folha 69 do livro 18 de Notas Cidade da Feira 24 de 8bro[1] de 1881

 

O Tenente Francisco Gonçalvez Pedreira França

 

Digo eu José D’Anunciação e Souza legitimo Senhor da Escrava Martina de cor parda a qual depois de meo faulecimento gosará de sua liberdade, como se de ventre livre nacesse e isso o faço em compensação aos bons serviços que da mes ma escrava tenho recebido; assim como desta mesma dacta em diante prescindo dos serviços dos ingenuos os seos filhos Ignez de cor parda, Antonio, Maria e Angelo, todos de cor parda para que todos fiquem isentos das obrigações que por ley lhe são impostos, e ficarem gosando assim de ampla liberdade; sem que nem mesmo meos herdeiros em tempo algum possão se oppôr a prezente por ser feito de minha livre vontade, em prezensa de duas testemunhas; E por não saber escrever pedi a mêo irmão Manoel Herme negildo da Silva que esta a meo rogo assignasse, com as duas testemunhas.

Cidade da Feira 24 de 8bro de 1881

A rogo de meo jrmão José da Anunciação e Souza Manoel Hermenegildo da Silva

Como testemunha Manoel Hermogenes dos Santos

Cypriano de oliveira [...]npo

Reconheço como proprias as firmas supra por saber apsignar Cidade da Feira 24 de 8bro de 1881

Em testemunho de verdade X

[Tenente] Francisco Gonçalvez Pedreira França

 

O registro da carta

Artigo 21 de Registro 4835 de 1° de Dezembro de 1881

 

Jose da Anunciação e Souza rezidente n’este municipio declara a Collectoria Geral que no dia 24 de Outubro de 1881 passou Carta de liberdade a sua escrava Martina parda solteira com 21 annos quando matriculada em 29 de Abril de 1872 sob o n° 645 da matricula geral e 3 da relação; declara mais que precinde dos direitos que tem por Ley nos Ingenuos seguintes filhos da referida escrava = Ignez parda matriculada sob o n° 26 da matricula geral [e] 26 da nota. Antonio cor parda sob o n° 1213 e 1211 da nota. Maria parda sob o n° 1878 [e] 1871 da nota e Ângela fulla sob o n° digo e Angelo do sexo mascolino fullo sob o n° 2628 e 2617 da nota.

Provincia da Bahia

Municipio da Cidade da Feira

Parochia de São José 22 de Abril de 1882

Arrogo da declarante

Viriato Magalhães de Figuereido

Como testimunha e Manoel Hermenegildo da Silva

                       Antonio Moreira Duarte

 

A folhas 139 do 2° Livro ficão feitas as precizas declarações. Em 24 de Abril 1882

Pello Collector                     O Escrivão

ABarretto                             [assinatura]

 

A história cultural

As cartas de liberdade eram um instrumento legalmente instituído. Podiam ser de diversas modalidades: onerosas, gratuitas ou condicionais. Esta última era uma forma muito controvertida do escravo tornar-se livre, pois havia um limite imposto para a sua liberdade. Na carta transcrita, a liberdade da escrava Martina e de seus filhos só seria alcançada com a morte do senhor, sendo esta uma carta condicionada.

Digo eu José D’Anunciação e Silva legiti / mo Senhor da Escrava Martina de cor / parda a qual depois de meo faulecimento / gosará de sua liberdade, como se de / ventre livre nacesse e isso o faço em / compensação aos bons serviços que da mes / ma escrava tenho recebido [...]

Com a promulgação das leis emancipatórias (Lei do Ventre Livre – 1871, e dos Sexagenários – 1855), a liberdade tornou-se mais fácil de ser conseguida. As mulheres foram as mais beneficiadas. Segundo Kátia Mattoso (1972: 40):

[...] a presença de um número maior de mulheres alforriadas prende-se ao fato de que elas têm, sobre o mercado de trabalho, um valor um pouco inferior ao valor do escravo homem. De fato, desde o início, a mulher era considerada menos produtiva e com menor força física, o que, com o seu envelhecimento, devia se constituir em um handicap ainda menor.

Outro fator importante para a alforria das escravas eram os laços afetivos estabelecidos entre elas e os senhores. Além disso, elas também lutavam tanto pela sua liberdade quanto pela dos filhos (antes da lei de 1971).

Gosará de sua liberdade, como se de / ventre livre nacesse e isso o faço em / compensação aos bons serviços que da mes / ma escrava tenho recebido; assim como / desta mesma dacta em diante prescin / do dos serviços dos ingenuos os seos filhos / Ignez de cor parda, Antonio, Maria e An / gelo, todos de cor parda para que todos / fiquem isentos das obrigações que por ley / lhe são impostos, e ficarem gosando / assim de ampla liberdade; sem que / nem mesmo meos herdeiros em tempo algum / possão se oppôr a prezente por ser feito / de minha livre vontade, em prezensa / de duas testemunhas [...]

Percebe-se, a partir do que foi exposto acima, a estreita relação entre Filologia Textual e História Cultural, pois aquela evoca o passado a fim de compreende-lo melhor através da análise de determinados textos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A filologia é a ciência do texto e, neste sentido, tem como labor fixar, reconstruir, criticar, etc. os textos transmitidos através dos tempos. Ela se relaciona com a História Cultural na medida em que decifra os textos que revelam culturas desconhecidas. De acordo com Perini (2004: 138):

[...] um texto só pode ser plenamente compreendido em termos da cultura que o produziu. O homem não é somente um animal social – é um animal cultural, e cada ser humano é, de certo modo, um prisioneiro de sua cultura.

O homem compreende a si e aos outros a partir das alusões e referências ao contexto cultural, que está presente nos textos.

Uma civilização é construída através de alguma forma de acúmulo, sendo este feito a partir da aquisição de conhecimentos e pelas conquistas realizadas. Destarte, é preciso que as civilizações mantenham seus bens conservados, para isso faz-se necessário a formação de uma consciência do passado histórico. O resgate deste passado se dá através dos documentos históricos, traduzidos em patrimônio cultural, em bem cultural de uma determinada civilização. O labor filológico consiste na recuperação das informações contidas nesse patrimônio a partir da realização de edições semidiplomáticas, as quais permitem a leitura dos textos sem a necessidade de manuseá-los. Desta forma, a Filologia Textual presta um inestimável serviço à História Cultural.

 

REFERÊNCIAS

AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1972.

BERTONI, Giulio. Introdução à filologia. Tradução Giuseppe Carlo Rossi. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1943.

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de filologia e gramática. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Ozon, 1974.

CANO AGUILAR, Rafael. La filología como ciencia del texto. In: –––––––. Introducción al análisis filológico. Madrid: Editorial Castalia, 2000. p. 11-30.

CARENA, C. Filologia. In: Enciclopédia Einaudi: volume 17 – Literatura/Texto. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989. p. 200-217.

CASTRO, Ivo. O retorno à filologia. In: PEREIRA, Cilene da Cunha, PEREIRA, Paulo Roberto Dias (Org.). Miscelânea de estudos lingüísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 511-520.

LÁZARO CARRETER, Fernando. Diccionario de términos filológicos. 3ª ed. corr. Madrid: Gredos, 1990.

LYONS, John. Linguagem e cultura. In: ––––. Linguagem e lingüística: uma introdução. Tradução Marilda Winkler Averbuz e Clarisse Sieckenuis de Souza. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos Editora, 1987. p. 273-299.

MARTINS, Wilson. A Palavra escrita. São Paulo: Ática, 1996.

MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.

PERINI, Mário. A Língua do Brasil amanhã e outros mistérios. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

QUEIROZ, Rita de Cássia Ribeiro de. A Crítica textual e a recuperação da história. Scripta Philologica, Feira de Santana, v. 1, n. 1, p. 64-79, 2005.

QUEIROZ, Rita. Documentação manuscrita: legado cultural. Tribuna Feirense, Feira de Santana, 01 ago. 2004. Tribuna Cultural, p. 2.


 

 

[1] 8bro = outubro. Esta abreviatura foi mantida com o intuito de mostrar o registro da época em relação à grafia do nome dos meses.


 


 

[1] Os dados históricos da Guia são retirados da obra de Aníbal Alencastro.

[2] A critério da pesquisadora os sobrenomes serão ocultados para não expor os informantes.


 


 

[1] De acordo com o Novo Manual da Redação (Folha de S. Paulo), nariz-de-cera é “parágrafo introdutório que retarda a entrada no assunto específico do texto. É sinal de prolixidade incompatível com jornalismo” (1992: 93).

[2] Lide em português é tradução da palavra em inglês “lead”, traduzida como cabeça, líder, é o que se convencionou chamar no jornalismo do início do texto.