O Discurso de Cariocas Sobre a Família

Bruna Rafaele S. da Silva (PUC-Rio)

 

Introdução

O presente estudo visa relacionar teorias provenientes da Lingüística Sistêmico-Funcional, da Antropologia Cultural e do Interculturalismo que abordam os temas cultura, linguagem e família e uma análise de dados coletados através de questionários.

 

Tema

O trabalho apresenta como tema uma análise de questionários respondidos por cariocas que apresentam em seus discursos opiniões sobre a família e grau de parentesco com base em conceitos de avaliação (Martin, 2000) e grau de Parentesco (Lévi-Strauss, 1973).

 

Relevância

O tema justifica-se pela necessidade de termos um trabalho que descreva o pensamento atual de adultos, pertencentes à cultura brasileira, sobre a família para que possamos ter uma generalização cultural (Bennett, 1998: 6), em torno da cultura brasileira.

O trabalho demonstra ser importante por delimitar aspectos atuais da cultura brasileira expostos na escolha do léxico da língua portuguesa, da variante do Brasil, através de uma análise de dados coletados entre falantes nativos do Rio de Janeiro.

Este estudo é relevante, pois ao retratar a cultura atual existente na sociedade brasileira, em particular na sociedade carioca, podemos auxiliar futuras pesquisas sobre cultura e o ensino da cultura brasileira para estrangeiros. Este estudo visa contribuir para evitar que os estrangeiros não sofram um choque cultural (Peter Adler, 1972 apud Brown, 2001: 34), quando em contato com a cultura brasileira.


 

Hipótese

Busca-se verificar se há de fato, uma marca de afetividade no discurso de brasileiros, quando questionados sobre a família e seus parentes, ou seja, se os informantes vão responder ao questionário optando por oferecer maior quantidade de avaliações de afeto do que avaliações de julgamento ou de apreciação (Martin, 2000).

 

Objetivo

A pesquisa busca demarcar como a cultura brasileira é expressa no discurso dos cariocas, observando a escolha lexical que se relaciona com a família. Pretende-se detectar traços da cultura brasileira no discurso produzido por adultos, pertencentes à classe média do Rio de Janeiro e verificar se a hipótese se confirma através da análise do corpus.

 

Fundamentação Teórica

O trabalho apresenta uma pesquisa qualitativa que visa apresentar dados que revelam uma relação entre o campo semântico e a cultura dos informantes. Para isso, trabalhamos com teorias da Lingüística Sistêmico-Funcional, da Sociolingüística Interacional, da Antropologia e da Sociologia e do Interculturalismo.

Damos particular importância à teoria da Avaliação, de Martin (2000), teórico que trabalha com base nas teorias que compõe a Lingüística Sistêmico-Funcional, em especial os preceitos de Halliday (1994) e ao conceito de grau de parentesco, de Lévi-Strauss (1973).

 

Pressupostos Teóricos

O trabalho apresenta como base teórica a definição de cultura de Geertz (1973: 89 apud Lantolf, 2000: 30) que a define como uma rede semiótica transmitida e construída historicamente pelos humanos, que lhes permite se desenvolver, se comunicar e perpetuar seus conhecimentos, crenças e atitudes sobre o mundo.

Ao buscar bases teóricas na Antropologia sobre a relação entre língua e cultura, trabalhamos com Laraia (2005: 45) que afirma que o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado, é um herdeiro de um processo acumulativo e reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas gerações que o antecederam.

Segundo Singer (2000: 29), cada cultura tem sua própria linguagem ou código e a linguagem é a manifestação verbal de percepções, atitudes, valores, crenças e descrenças que um grupo sustenta.

Reportando-nos à Sociolingüística Interacional, trabalhamos com as afirmações de Wierzbicka (1991: 67), sobre a existência de uma relação entre a cultura e a linguagem e que há diferenças culturais expressas na fala de diferentes grupos, o que tem relação com o pensamento de Laraia (2005: 52), pois segundo o autor a comunicação é um processo cultural e a linguagem humana é um produto da cultura.

Partindo dessas perspectivas, podemos constatar que a instituição familiar faz parte da cultura, pois de acordo com Kaloustian (2004: 13), a família é percebida não como um simples somatório de comportamentos, anseios e demandas individuais, mas sim como um processo interagente da vida e das trajetórias individuais de cada um de seus integrantes.

 

Metodologia de Pesquisa

Buscamos relacionar conceitos sobre linguagem, cultura e família e a opinião dos informantes sobre a família e graus de parentesco para termos como resultado uma generalização cultural (Bennett, 1998: 6) para retratar como a sociedade brasileira exprime suas avaliações através do léxico e buscamos através da análise dos dados, delimitar a identidade (Kroskrity, 2001: 106) dos membros da sociedade carioca.


 

Conceitos Utilizados na Análise dos Dados

Uma breve aplicação da Teoria da Avaliação

Ao apresentar brevemente as categorias utilizadas na análise do corpus, vamos relacioná-las aos dados coletados nos questionários. Para analisarmos o léxico empregado pelos informantes ao construir seus discursos sobre a família, nos apoiamos nas teorias pertencentes à Lingüística Sistêmico-Funcional, particularmente, na teoria de Avaliação, de Martin (2000).

Martin (2000) categorizou as avaliações apresentadas no discurso em três grupos afeto, julgamento e apreciação. As três categorias podem ser avaliações positivas e negativas e apresentam níveis de engajamento e de intensidade. O engajamento demonstra o nível de comprometimento que o interlocutor explicita em sua avaliação e categoriza a avaliação como inscrita ou evocada (Martin, 2001: 142) e a intensidade é uma classificação em subcategorias sobre a variação de nível positivo ou negativo que as avaliações apresentam e pode ser dividida em alto, médio e baixo nível.

A avaliação de afeto está relacionada às avaliações semânticas sobre emoções, o julgamento se relaciona à avaliação de comportamento e a apreciação categoriza a avaliação estética assim como oferece definições sobre o objeto a ser avaliado.

Sobre a avaliação de afeto encontramos dados que apresentam a forma positiva, inscrita e de alto nível de intensidade como em eu só a chamo de avó, a amo infinitamente (informante 2). Como avaliação de afeto negativa, encontramos pouca quantidade, como na resposta do informante 6, ao ser questionado sobre quem são considerados seus parentes de segundo grau se não é próximo, não é família, é um ser que tem algum vínculo genético, mas não afetivo categorizada como avaliação de afeto negativo, evocada e de nível alto de intensidade.

Como julgamento positivo, inscrito e de baixa intensidade temos a família é composta pelas pessoas que dividem a mesma casa. Essa divisão inclui os afazeres domésticos, o sustento e o gasto do dinheiro obtido. (informante 4). Categorizamos como avaliação de julgamento negativo, inscrito e de intensidade média a avaliação minha relação com a família se reduz ao essencial (informante 4).

Encontramos como apreciação positiva inscrita e de média intensidade a resposta do informante 14 família é uma relação bonita. Temos uma avaliação de apreciação negativa evocada e de alta intensidade em pra mim não tem significado esta denominação de parente de segundo grau (informante 6).

 

Grau de Parentesco e Átomo de Parentesco

Sobre a definição de grau de parentesco, trabalhamos com as categorias apresentadas por Lévi-Strauss (1973: 554), que distingue o grau de parentesco gerado por consangüinidade e o grau gerado pelo afeto. O antropólogo constata que há dois tipos de elos, os elos de solidariedade mecânica, compostos por parentes de consangüinidade e os elos de solidariedade orgânica, compostos por cunhados e amigos. Lévi-Strauss afirma que a segunda forma de solidariedade é mais importante para a socialização, pois realiza uma integração maior sobre o modelo na natureza, composto por consangüinidade.

Trabalhamos com o conceito de átomo de parentesco (Lévi-Strauss, 80 apud Barros, 1987: 57) que é composto por irmão, irmã, pai, mãe, filho ou filha, definidos pela relação de consangüinidade e de aliança, o esposo e a esposa.

 

Análise do corpus

Para a composição da análise, categorizamos e dividimos o resultado de acordo com as perguntas e com o tipo de avaliação apresentada. Ressaltamos que foi dada importância ao valor semântico das respostas apresentadas e assim, empregamos os conceitos apresentados por Martin (2000) e por Lévi-Strauss (1973).

Na questão 1, sobre a definição de família, tivemos 3 avaliações de afeto, 5 avaliações de julgamento e 14 avaliações de apreciação.

Na pergunta 2, interrogamos sobre a importância da sua família no conjunto das relações pessoais, percebemos que interferimos nas respostas dos informantes, pois ao questionar, produzimos a avaliação evocada “a família é importante”. Implicitamente, perguntamos como é caracterizada a importância da família entre as relações pessoais do informante, apesar de termos a intenção de ser imparciais para não interferir nas respostas. Somente percebemos este fato através da análise dos dados, verificando que muitos informantes produziram avaliações evocadas concordando e dando continuidade à avaliação de apreciação evocada a família é importante porque/por, como podemos perceber através da resposta do informante 2, fazer com que eu me torne uma pessoa melhor.

Apesar de haver uma apreciação sobre a família na pergunta 2, tivemos informantes que relacionaram a importância da família ao comportamento dos membros da família, produzindo em seus discursos avaliações de julgamento. No total de avaliações presentes em respostas da questão 2, tivemos 14 avaliações de julgamento e 13 avaliações de apreciação e tivemos 1 avaliação de afeto em a base emocional dos relacionamentos pessoais é conseguida na relação familiar. (informante 20).

Na questão 3, sobre qual é a relação de proximidade do informante com os membros de sua família, tivemos 22 avaliações de julgamento que se dividem em 3 avaliações de julgamento negativo e 19 de julgamento positivo. A avaliação de julgamento teve grande freqüência como resposta, pois os informantes relataram como é o comportamento em família, relacionando a amizade, a união e o companheirismo. 2 informantes apresentaram avaliações de apreciação, uma negativa e outra positiva. Tivemos uma avaliação de afeto positivo, realizada pelo informante 2 nos amamos.

Na questão 4, perguntamos ao informante sobre o que ele pensa quando se lembra de sua família. Como resposta muitos informantes responderam avaliações de apreciação positivas, evocadas, de alta intensidade e com avaliações de afeto positivo. Observamos que amizade foi empregada em 15 respostas, união teve 12 ocorrências e amor apareceu na resposta de 11 informantes.

Na questão 5, sobre quem são os componentes da família do informante, na maioria das respostas, tivemos apreciações positivas, evocadas e de baixa intensidade. Segundo Lévi-Strauss (80 apud Barros, 1987: 57), 5 informantes responderam afirmando que suas famílias são compostas apenas pelo átomo de parentesco, ou seja, por pai, mãe, irmãos e esposo ou esposa. 3 informantes incluíram em suas famílias animais de estimação, 8 informantes afirmam que amigos e cunhados são membros de suas famílias, o que nos remete ao conceito de elo de solidariedade orgânica (Lévi-Strauss, 1973: 554). 16 informantes incluem em suas famílias além do átomo de parentesco, avós, primos, sobrinhos, cunhados, amigos e animais de estimação. 1 informante inclui na sua família a mãe de criação.

Como resposta para a questão 6, sobre quem são os parentes de segundo grau, 10 informantes exprimiram avaliações de apreciação negativa, como o informante 6 pra mim não tem significado esta denominação de parente de segundo grau. Se não é próximo, não é família, é um ser que tem algum vínculo genético, mas não afetivo. Tivemos 2 informantes que afirmaram ser parentes de segundo grau seus familiares com quem não há muito contato, como avós, irmãos, tios, primos. 4 informantes afirmam ser os cunhados, 3 informantes afirmam ser os sogros e 3 informantes responderam ser os amigos. Obtivemos 1 resposta incluindo os padrinhos e 1 resposta incluindo os concunhados. 9 informantes afirmam ser parentes de segundo grau, pessoas com quem eles mantêm uma solidariedade orgânica.

Como resposta da pergunta 7, 10 informantes consideram amigos como membros de suas famílias, exprimindo avaliações de apreciação positivas e de afeto positivo para relatar a relação de companheirismo, de elo de solidariedade orgânica. 1 informante afirma que considera o cunhado como membro de sua família. 2 informantes consideram seus cachorros como membros da família, apesar de termos obtido na questão 5, 8 respostas que apresentam como membros da família cunhados, amigos e animais de estimação. 9 informantes responderam que não consideram pessoas que não compõem suas famílias como parentes, como o informante 6, não. Penso, no meu caso, que família é um elo formado e, ao mesmo tempo, fechado. Tivemos a resposta de 1 informante que considera compadres, comadres e afilhados como membros da família.

 

Conclusão

Ao analisarmos as respostas dos 22 questionários, percebemos que muitos informantes optaram por responder com avaliações de apreciação positiva (Martin, 2000: 155). No total, tivemos 188 avaliações presentes nas respostas e 80% das avaliações foram de apreciação positiva. O que comprova a valorização da instituição familiar pelos membros da sociedade brasileira. Estes dados confirmam a afirmação do sociólogo de Kaloustian sobre o valor da família na sociedade brasileira:

A importância da família brasileira, em meio a discussões sobre a sua degradação ou enfraquecimento, está presente e permanece enquanto espaço privilegiado de socialização, de prática de tolerância e divisão de responsabilidades, de busca coletiva de estratégias, de sobrevivência e lugar inicial para o exercício da cidadania sob o parâmetro da igualdade, do respeito e dos direitos humanos. A família é o espaço indispensável para a garantia da sobrevivência do desenvolvimento e da proteção integral dos filhos e demais membros, independentemente do arranjo familiar ou da forma como vem se estruturando. É a família que propicia os aportes afetivos e, sobretudo materiais necessários ao desenvolvimento e bem-estar dos seus componentes. Ela desempenha um papel decisivo na educação                formal e informal, é em seu espaço que são absorvidos os valores éticos e humanitários, e onde se aprofundam os laços de solidariedade. É também em seu interior que se constroem as marcas entre as gerações e são observados os valores culturais. (KALOUSTIAN, 2004 :11)

Baseando o resultado da pesquisa com no conceito da relação de proximidade (Lévi-Strauss, 1973: 554), que distingue o grau de parentesco gerado pela solidariedade mecânica (por consangüinidade) e o grau gerado pela solidariedade orgânica (por afeto), constatamos que os cariocas além de dar importância aos parentes consangüíneos, valorizam o grau de parentesco gerado pela solidariedade orgânica, pois 72% dos informantes afirmam que suas famílias são compostas pelo do átomo de parentesco (Lévi-Strauss, 70, 80 apud Barros, 1987: 57) e também por amigos, cunhados, compadres e animais. Podemos relacionar estes dados aos conceitos apresentados por DaMatta (1983) sobre a relação entre o espaço da casa e o espaço da rua na sociedade brasileira e o empenho dos brasileiros de trazer para o espaço da casa a rua, as relações de afinidade e de amizade.

Constatamos que o grupo de informantes ofereceu respostas sobre quem são os parentes de segundo grau de forma bem variada, 9 informantes afirmam ser parentes de segundo grau, pessoas com quem eles mantêm uma solidariedade orgânica, ou seja, não há relação consangüínea com essas pessoas, mas elas são consideradas membros da família. Outro dado importante é o fato dos informantes incluírem em suas famílias membros que não têm relação consangüínea e animais de estimação.

Num segundo momento, pretendemos contrastar a análise presente neste trabalho e dados de questionários respondidos em francês por franceses para verificarmos se há, de fato, marcas nos discursos dos informantes que comprovem culturas distintas, ou seja, se os informantes brasileiros fazem suas avaliações diferentemente dos informantes franceses.

 

Referências Bibliográficas

BARROS, Myrian Lins de. Autoridade & Afeto, avós, filhos e netos na família brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

BENNETT, M. J. “Intercultural Communication: A Current Perspective” In: BENNETT, M. J. (ed). Basics Concepts of Intercultural Communication – Selected Readings. Yarmouth: EUA: Intercultural Press, 1998. p. 1-34.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Para uma Sociologia do Dilema Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar (2a ed). London: Edward Arnold, 1994.

KALOUSTIAN, Silvio Marcoug. (Org.) Família Brasileira, A Base de Tudo. 6ª ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNICEF, 2004.

KROSKRITY, P. V. “Identity” In: DURANTI, A. Key Terms in Language and Culture. Malden, Mass: Blackwell, 2001. p. 106-109.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um Conceito Antropológico 18ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Les Structures Élémentaire de la Parenté. Paris: Mouton, 1973.

MARTIN, J. R. Beyond Exchange: Appraisal Systems in English. In: Hunston, S. & Thompson, G. (eds). Evaluation in Text. Oxford: Orford University Press, 2000.

SINGER, M. R. “The Role of Culture and Perception in Communication” In: WEAVER, G. R. (ed.). Culture, Communication and Conflict – Readings in Intercultural Relations. Rev. 2nd Ed. Boston: Pearson Publishing, 2000. p. 28-53.

WIERZBICKA, A. Cross-Cultural Pragmatic – The Semantics of Human Interaction. Berlin, New York: Mouton de Gruyter, 1991.

 

 

Anexo – Questionário

Informante número .....                     Idade ....                               Sexo....

 

1.Defina o que é família.

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2.Qual a importância da sua família no conjunto de suas relações pessoais?

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3.Qual é a sua relação de proximidade com os membros de sua família?

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4. O que vem a sua cabeça quando você pensa em família?

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5.Quem são os componentes de sua família?

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6. Quem são os seus parentes de segundo grau? Por quê?

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7. Há mais alguém que você considera como membro de sua família? Por quê?

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