O princípio da cooperação
na construção do humor em charges

Kátia Regina Franco.(UFES)

 

Introdução

Inovadora no foco dado aos elementos constitutivos do processo de comunicação, a Pragmática surge como uma teoria de análise do significado que o falante dá ao dito (e ao não-dito). Desse modo, busca apreender o significado que os falantes querem transmitir, indo além do sentido convencional das palavras utilizadas na estruturação dos enunciados.

Para a análise, nos termos desta teoria, são considerados os aspectos contextuais particulares, a intenção do falante, o interlocutor da interação, o lugar onde os interactantes estão, o momento histórico e as inferências que o ouvinte faz sobre o dito, buscando compreender o não-dito, ou seja, a intenção do falante.

Para Grice (1982), toda conversação é regida por um esforço cooperativo dos interlocutores: de um lado, o falante em se fazer entender e, do outro, o ouvinte, em compreender seu interlocutor. A esse acordo tácito, o autor chamou de Princípio da Cooperação.

 

O Princípio da Cooperação:
Máximas e Implicaturas

Nos seus estudos sobre a conversação, Grice (1982) notou uma certa ordem no diálogo regido por um acordo tácito entre os interlocutores. O autor postula que a natureza e importância das condições gerais que governam a conversação devem ser observadas segundo o esforço cooperativo de cada participante da interação verbal que reconhece um propósito comum nos diálogos. O princípio geral estabelece: Dê a sua contribuição conversacional tal como é solicitada, no momento em que ela ocorre, pelo objetivo reconhecido da comunicação de que você está participando.

Considerando a atividade discursiva um ato racional, Grice elaborou um modelo inferencial de comunicação com base na noção de implicatura e quatro máximas. O autor considera que existe um hiato entre a construção lingüística do enunciado do falante e a compreensão desse enunciado pelo ouvinte. As inferências são permitidas pelo acordo tácito entre falante e ouvinte, conhecido como Princípio da Cooperação.

O autor estabeleceu o princípio a partir de quatro categorias formuladas por máximas, cujas denominações foram emprestadas da tabela de juízos de Kant. São elas: a categoria da quantidade, que orienta sobre o grau de informatividade solicitada, nem mais, nem menos, apenas o requerido; a categoria da qualidade, que versa sobre a sinceridade, o verdadeiro, o que pode ser provado; categoria de relação, que prima pela relevância; e a categoria do modo, que norteia sobre a clareza.

No entanto, nem sempre os interlocutores obedecem às máximas conversacionais promulgadas por Grice. As infrações, quando ocorrem, são recebidas como intencionais, necessárias, e o ouvinte faz o esforço para compreender o falante, visando ao restabelecimento das máximas, condição para o ato comunicativo.

No ato discursivo, o falante faz uso de implicaturas, ou seja, sugere e insinua algo não expresso no enunciado. O autor distingue dois tipos de implicaturas: as conversacionais ou discursivas e as convencionais ou lexicais.

Com base nas máximas do P.C. e no princípio geral de cooperação, implicatura é entendida como o significado adicional do enunciado proferido pelo falante e inferido pelo ouvinte. Há um acordo tácito na comunicação entre os atores. Sempre que houver um descumprimento de uma máxima, haverá uma implicatura convencional ou conversacional.

As implicaturas conversacionais encontram-se fora do significado e dependem do contexto tomado em sentido amplo. A dependência do contexto é tão representativa que a seqüência do texto pode anular a implicatura. Este tipo de implicatura subsiste na substituição de expressão sinônima, devido à sua característica não separável. A implicatura convencional não tem relação com valor de verdade, nem com formas lingüísticas. Sua razão de ser é encontrada a partir do dito, no momento da situação de fala comum a falante e ouvinte. O falante implica e o ouvinte infere.

Conforme Armengaud (2006):

A implicatura conversacional é exatamente a hipótese pela qual a harmonia é restabelecida no mundo da fala cooperativa. A aptidão do ouvinte em forjar tal hipótese é justamente sua aptidão a receber a informação implícita que o falante não quer dar explicitamente. É a habilidade de entender o subentendido. (2006: 91)

As implicaturas convencionais ou lexicais estão atreladas às formas lingüísticas do enunciado, ou seja, ao léxico, ao significado convencional das palavras. A insinuação do falante encontra suporte na convenção. Como propriedades inerentes, a implicatura convencional é não anulável pela seqüência textual, possui independência do contexto (exceto quando se fizer necessária escolha entre implicaturas lexicais possíveis dentro do contexto) e não subsiste na substituição de expressões sinônimas.

Essa base quase-contratual pode ser aplicada a alguns casos, mas não em todos. O falante de um diálogo, por exemplo, pode obedecer a uma máxima ou infringi-la de várias maneiras. Ele pode violar uma máxima, pode não cooperar, decidir por violar uma para cumprir outra ou pode, ainda, abandonar uma máxima se utilizando dela.

Podemos constatar violações das máximas griceanos e, conseqüentemente, as implicaturas, em várias situações de comunicação como nos diálogos do dia-a-dia, em textos de humor e em charges, corpus deste artigo.

 

O Gênero Charge

Por considerar que o gênero charge impressa serve aos propósitos da interação verbal, na medida em que re-significa fatos cotidianos por meio de elementos enunciativos, e por ser dependente do contexto para a compreensão, apresenta-se como um corpus interessante para a aplicação da teoria de Grice.

A charge impressa tem como características o uso limitado da linguagem verbal associada à linguagem não-verbal; traz como tema um fato cotidiano com uma ponta de humor ou ironia; emite a opinião do autor, o que a torna interpretativa; o chargista tenciona que o leitor identifique a informação como um ato comunicativo.

A leitura deste gênero especificamente é agilizada pela economia de palavras e pelas imagens, o que a torna atraente a um público heterogêneo. Este público, por sua vez, fará interpretações diversas concernentes a suas vivências e conhecimento de mundo. O leitor de charges é sempre cooperativo, está habituado a procurar um sentido, a buscar o não-dito que não aparece nas figuras caricaturadas, nem nos textos econômicos.

As imagens adquirem funções próprias das palavras, num processo de adjetivação, ao ilustrarem personagens dentro de um cenário que permite o reconhecimento de um episódio e os fatores que o conceberam. O sério torna-se cômico nas caricaturas, ocorrendo a desqualificação da figura pública por meio do escárnio.

Seu caráter opinativo converge ou diverge da perspectiva do jornal como um todo, sempre estabelecendo uma relação de intertextualidade, de dialogismo com o noticiário ou com o editorial do jornal no qual é veiculada, primordial na construção dos sentidos. As charges são inscritas de forma contextualizadas no jornal. A escolha da página, os textos a que se referem, o momento da realidade que sintetizam e a escolha do vocabulário, colaboram para as várias interpretações possíveis da charge.

A veracidade de seu texto referencial pode ser constatada no próprio jornal, tendo em vista que este gênero veicula uma crítica humorística de um fato real, geralmente voltado à política. Para tanto, a charge tem como relevância o limite de tempo e espaço, o que requer que sua construção e veiculação ocorram o mais próximo possível da realização dos fatos tematizados para que o leitor se integre aos acontecimentos antes de se tornarem passados.

 

Aplicando o P.C. nas charges

Foram selecionadas cinco (5) charges veiculadas nos meses de abril e maio do ano de 2006, nos jornais A Tribuna e A Gazeta, que circulam no Estado do Espírito Santo.

Para uma análise das charges, há que se ressaltar a importância de se ter um conhecimento prévio da situação, de fatos políticos, de acontecimentos sociais e de elementos culturais da sociedade em que circula o jornal. O reconhecimento das figuras retratadas também contribui na construção do significado.

Cabe ressaltar que esta análise se aterá aos valores e tendências implicitadas pelo chargista que, neste artigo, é visto como representante do jornal. Não caberá julgamento da opinião e tendência percebidas nas charges.

Charge n° 1

FONTE: A GAZETA, 05/05/2006.

A charge n° 1 é um raro exemplo de implicatura convencional. Conforme a teoria, pode haver ambigüidade semântica em alguns termos e em algumas expressões. Neste exemplo, a expressão “de quatro” tanto pode indicar convencionalmente quantidade, como pode designar uma posição, uma postura de submissão, violando a máxima do modo. O enunciado “Reunião de quatro presidentes” é ilustrado pela presença de quatros presidentes dos países Brasil, Argentina, Venezuela e Bolívia, respectivamente, Lula, Kirchner, Hugo Chaves e Evo Morales.

Uma referência à crise do gasoduto vivenciada, mais diretamente pelo Brasil e Bolívia, e uma crítica da política externa do governo Lula. Chaves, no centro, sugere que este presidente propõe um eixo Argentina-Venezuela-Bolívia e que o Brasil, representado pelo seu presidente Lula, é subserviente ao eixo.

O texto título da charge é composto por vocábulos que, sozinhos, possuem valor significativo: “reunião”, “de quatro”, “presidentes”. A expressão “de quatro” é formada por duas palavras, sendo que a preposição “de” é vazia de significado, isoladamente. Essa escolha de elementos permite que o chargista divida o texto em três partes e sugira que apenas três dos presidentes participam efetivamente do encontro.

Um outro dado importante para a análise da charge diz respeito ao lugar ocupado pelo presidente Lula na charge. Como se sabe, em matemática, o 0 (zero) à esquerda não é um algarismo com valor significativo para o todo que o número representa. Uma leitura possível, se intencional ou não, é a de o chargista ter posicionado o presidente Lula justamente à esquerda dos demais. Tanto a posição “de quatro” e a colocação de Lula à esquerda insinuam que o presidente com menos expressividade no momento criticado na charge é o presidente do Brasil.

Charge n° 2

FONTE: A TRIBUNA, 07/04/2006.

Para compreender as implicaturas da charge n° 2, o leitor precisa de ter, no mínimo três informações:

1-       Carequinha é um palhaço, que faleceu em dia anterior à publicação da charge;

2-       a Comissão de Ética é formada por deputados com a prerrogativa de apresentar pareceres e indiciar deputados sob suspeita de corrupção;

3-       a Comissão de Ética está sendo ridicularizada pelas constantes liminares com que os depoentes indiciados se armam para não falarem nas CPIs.

E, ainda, ter conhecimento da concepção estereotipada de “palhaço” como alguém que é, deliberadamente, enganado, idiotizado.

A imagem dos membros da Comissão de Ética é descaracterizada ao serem, os membros, caricaturados em vestes formais, de terno e gravata, e cômicos narizes de palhaço.

Há uma violação da máxima da quantidade, por fornecerem informação excedente ao requerido. Para responder a pergunta “Vocês estão fazendo uma homenagem póstuma ao Carequinha?”, de acordo com as máximas griceanas, bastaria a resposta “Não.” A seqüência textual “Nós somos da Comissão de Ética”, que é o excedente, implica no modo como os deputados que compõem a comissão estão sendo encarados: ninguém os leva a sério, pois todos os pareceres dados para indiciar os deputados foram derrubados pela plenária.

A charge n° 3 usa a seqüência de cenas para a produção de sentido da real situação de segurança estatal. Tal recurso colabora na gradual descaracterização da personagem, no caso, o policial.

Num contexto de falência do sistema prisional, o leitor não precisa de um esforço muito grande para inferir que há uma crítica ao excedente número de presos nas celas e do alto índice de fugas dos presídios. Pode-se inferir, ainda, que há uma conivência do policial ao aceitar pacificamente os argumentos do marginal.


 

Charge n° 3

FONTE: A GAZETA, 13/04/2006.

Nos quadros 2 e 4, a reafirmação de que o cidadão comum paga pelas falhas do governo fica implícita pelo enunciado expresso no quadro 2 “Tá querendo complicar a situação do Estado?” e a cena no quadro 4, onde figura um cidadão com cara assustada, perplexo e impotente diante de um ladrão dono da situação. Há violação da máxima da qualidade devido ao policial não responder ao que lhe é requerido.

Em termos gerais, as implicaturas da charge podem ser:

§         Se o ladrão for preso, a situação do Estado será mais complicada, pois terá mais um preso a encaixar no já superlotado sistema carcerário;

§         Mesmo que o ladrão seja detido, não há lugar onde prendê-lo;

§         Ainda que consiga um lugar num dos presídios para o ladrão ficar, ele poderá fugir;

§         O cidadão comum não tem a quem recorrer, já que a instância competente, o Estado, não assume sua responsabilidade em relação à segurança pública.


 

Charge n° 4

FONTE: A TRIBUNA, 17/05/2006.

O evento acima é mais uma charge que utiliza seqüência de dois quadros para representar um cidadão consciente de seus direitos e em busca de uma solução para um possível problema de segurança, no primeiro quadro, logo descaracterizado, no segundo quadro, pela perplexidade da solução apresentada. Uma crítica à segurança pública, porém em nível nacional.

Num contexto de “toque de recolher” imposto por indivíduos que fazem parte do crime organizado, ônibus e estabelecimentos comerciais sendo queimados e depredados “a rua deserta” onde “não passa ônibus, não passa táxi” só poderia indicar que há algo de errado acontecendo.

A imagem de rua deserta é reforçada por traços sombreados de uma cidade. A construção da personagem é caracterizada pelas vestes formais, maleta na mão, representando um trabalhador. O homem usando um telefone público, um orelhão, sugere que ele já saiu de sua casa, que está indo trabalhar ou saindo do serviço e que não está encontrado condições de segurança para vivenciar seu direito de ir e vir.

O humor da charge é produzido na construção implícita da real incapacidade da Polícia em manter a ordem nas ruas e proteger o cidadão de bem, violando as máximas da quantidade, da relação e do modo. Isto ocorre quando, do outro lado da linha, o representante da polícia começa a rezar.

Primeiramente, não obedece à máxima da quantidade por não dar a informação requerida, tendo em vista que o cidadão espera uma resposta ostensiva; viola a máxima da relação por não apresentarem uma solução relevante; e a do modo, por não estarem sendo claros. Uma reza, neste contexto, só pode indicar ironia, que implica em assumir a ineficiência da corporação diante da realidade civil.

Charge n° 5

FONTE: A TRIBUNA, 21/04/2006.

Retratando as condições dos presídios, uma cela exibindo rachaduras e inúmeros presidiários é apresentada. Fora da cela, um agente informa aos presos que “Pra acabar de uma vez com a superlotação, nós vamos transferir a maioria de vocês para contêineres...”

A violação da máxima da quantidade acontece no momento em que o agente tenta explicar aos requerentes o que é um contêiner: “Uma espécie de lata de sardinha gigante.” Ele não dá a informação necessária. Pode-se afirmar que há, também, a violação simultânea das máximas da qualidade, por não ser uma resposta verdadeira, e a máxima do modo, devido à falta de clareza, próprio da ironia. Porém, o uso da metáfora ironicamente implica em dizer que o problema da superlotação não será resolvido, já que “lata de sardinha” é culturalmente expressão de lugar muito cheio de pessoas ou elementos imprensados em um espaço que comporta menos que o necessário. Portanto, o enunciado sugere que os contêineres serão apenas um novo local superlotado.

 

Conclusão

A análise feita nas charges impressas fundamentada no P.C., buscando identificar violações de máximas e suas possíveis implicaturas e inferências, leva à conclusão de que o chargista conta com a cooperação do seu leitor para entender a crítica político-social que subjaz implicada nas charges.

As ironias, as caricaturas, o jogo de palavras, as referências contextuais e extra-textuais constroem o humor crítico, levando o leitor a refletir sobre a realidade brasileira, pragmaticamente. É língua como forma de ação inserindo os interlocutores nos contextos sócio-históricos criando a possibilidade de se entenderem.

 

Referências Bibliográficas

ARMENGAUD, Françoise. A Pragmática. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo, Parábola Editorial, 2006.

GERALDI, J.Wanderley (tradução) Lógica e Conversação; in DASCAL, Marcelo (org.) Pragmática: problemas, críticas, perspectivas da lingüística – bibliografia. Campinas: UNICAMP, 1982.

GUTIERRE, Maria Madalena Borges; Mecanismos discursivos na charge impressa. Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras. Franca (SP), v.1, p.161-178, jan./dez. 2005.

SILVEIRA, Jane Rita Caetano da. Pragmática e Cognição: a textualidade pela relevância e outros ensaios / Jane Rita Caetano da Silveira, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes. 3ª ed. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.