Ensino do português a deficientes auditivos:
estímulos e desafios

Luciana Guedes (UFF)[1]

 

O exercício lingüístico pleno – de ouvir, de falar, de ler ou de escrever – é, acima de tudo, um exercício de democracia: divisão das tarefas, das habilidades, dos desejos, dos deveres e dos direitos. (Scherre, 2005: 141)

 

Neste trabalho, busco formas de garantir a aprendizagem da leitura e da escrita, fundamentando a prática pedagógica numa visão sócio-interacionista da linguagem (Cardoso, 2003), tendo como corpus os textos produzidos pelos alunos surdos nas oficinas do projeto “Ensino do português normativo e incentivo à leitura na busca da interação e inclusão social: Oficina de língua portuguesa e literatura brasileira” realizado no Centro de Estudos Supletivos – NACES Cidadania – Niterói. Todos os alunos da oficina eram adultos e alfabetizados, cursando o segundo ou o terceiro ano do Ensino Médio.

 

No ensino da gramática normativa

Entendo que a função lingüística da escola é ensinar a variedade padrão, respeitando a variedade dominada pelo aluno e partindo dela, isto é, a variedade padrão soma-se ao conhecimento que o aluno já adquiriu. Eu também entendo que a realidade mostra o despreparo da escola para enfrentar o “problema“ da variação lingüística, em especial, numa escola de ensino supletivo, que recebe alunos das mais variadas classes, com níveis de conhecimento distintos. Entretanto, no caso dos surdos, na maior parte das vezes, estamos não só ensinando a variedade padrão do português, mas também a própria língua portuguesa, veiculada nessa modalidade.

Para alcançar este objetivo procurei trabalhar a linguagem em situações de interação, procurando diminuir a artificialidade, tentando possibilitar vivências do seu caráter natural e espontâneo. Para tanto, nas oficinas o diálogo foi estabelecido como básico, já que nos tornamos sujeitos de nosso próprio discurso na interação com o outro, e em todos os momentos respeitei o aluno enquanto interlocutor.

Atenta ao preconceito lingüístico, tento não confundir capacidade ou uma eventual dificuldade de aprender uma língua com a de aprender a escrever segundo determinado sistema. Orientada por este ideal, priorizei a leitura, a produção textual numa abordagem lingüística contextualizada, compreendendo que estas são interdependentes.

 

No incentivo à leitura criativa

Visto que a leitura é um antídoto contra a alienação e o embrutecimento da sensibilidade e da inteligência, engajei-me no esforço de incentivá-la, com uma atitude de interdisciplinaridade, relacionando saberes para alcançar maior compreensão do mundo, das idéias, valores e sentimentos. A busca pela leitura produtiva tenta conceber o ato de leitura como um processo, não um ato passivo, no qual o leitor, produtor de sentidos, interage com o texto individual e socialmente, relacionando texto e contexto, trabalhando com diversas áreas do conhecimento humano.

Escolhi como instrumento deste projeto a literatura, visto que, pela sua estrutura marcada pelos vazios e pelo caráter inacabado das situações, a intervenção do leitor é reclamada para preencher lacunas, dando vida ao mundo formulado pelo escritor. Trata-se de uma prática de leitura não autoritária e não automatizada, mas criativa.

Por exemplo, na oficina de leitura, tive como principal motivação a dificuldade que a maioria enfrenta no aprendizado do português, visto que para eles trata-se de uma segunda língua (L2), então, durante as oficinas foi trabalhada a leitura em grupo, a interpretação para a língua de sinais e a produção de textos breves pelos alunos, colocando em prática as bases teóricas definidas por Scherre (2005), Possenti (2004) e Chiappini (2005).


 

Do preconceito lingüístico

O falante nativo não costuma errar, ou seja, não costuma produzir construções que não sejam intuitivamente possíveis. Já o surdo, que não tem como primeira língua o português, erra, porque ao transferir, constrói discursos que não são pautados na sintaxe portuguesa, mas na estrutura da língua de sinais (L1), e que aos olhos de um leigo talvez até gere risos. Logo, “para ensinar a escrever com eficiência os professores, a escola, os pais, a comunidade e a mídia têm de estar engajados num efetivo esforço de formação de cidadãos competentes e com a auto-estima elevada” (Scherre, 2005), por isso, sempre respeitei as produções textuais dos alunos, tanto aquelas mais próximas da norma escrita, produzidas por alunos que dominam quase completamente o português oral, quanto as que até mesmo causam uma certa dificuldade de compreensão, feitas por alunos que ainda não dominam a língua falada, que precisam ser ajudados a chegar lá. Perceber a necessidade deles, nos faz não desistir, seguir estimulados, no esforço de guiar estes alunos através do conhecimento, e mais, através de um mundo que eles ainda desconhecem.

 

Constatações e resultados obtidos

Durante as oficinas os alunos demonstraram interesse pelo estudo da língua portuguesa, a despeito de muitas dificuldades. Cada um dos dez alunos produziu em média quatro textos, dois fazendo releituras dos textos trabalhados e dois sobre suas experiências pessoais, sua vida e os estímulos e desafios que encontrou ao aprender o português. Utilizando estas produções como corpus, identifiquei e classifiquei as dificuldades mais comuns e as características gerais do discurso; abaixo discriminadas e exemplificadas:

 

A-      Dificuldades mais comuns:

Estrutura frasal; ordem dos termos da oração
e problemas de regência

[1]  –  Mãe! Vã arrumar flor o vaso da água.”

[2]“ Rebeca está ouvir, corre chegando abriu a porta.” 

[3]“ ...ela também distraída a deixa no buquê muita cheia a

água.”

1.1-               Inversão da ordem direta: subordinante + subordinado

[4]“ Trabalho como administração de auxiliar na prefeitura...”

 

Tempos verbais
(sem conexão entre auxiliar e principal no tempo da frase)

[5]“ Buquê erá pra Receba mas só que a Rebeca não está em

       casa e mãe dela deixou buquê no quarto dela.” 

[6] “ Rebeca está distraida, sonho se fosse flor para mim,”

2.1- Confusão entre gerúndio e particípio (processo e estado)

[7]“ E Carina ficou emocionando...”

[8]“ Eu estando estudado,”

[9]“ respondeu a filha, com pouco envergonhando.”

 

Transitividade verbal

[10]“ Flor para mim, eu quero viu do flor.” 

[11]“...quando alguém tocou na campainha e foi atender mas

        não tinha ninguém c/ bilhete.” 

[12]Adoro de me curtir de viajar, na balada,”

 

Regência

[13]“...a campainha se tocou, Carina ouviu a campainha tocar

         e abriu-se a porta.”

[14]“...p/ encher o buquê dentro no vaso da sala.”

[15]“ Moro em São Gonçalo neste à eu nasci.” 

[16]“ Frequentemente, imaginarei na treinamento de linguagem 

        sinais pra ensinar ao colegio.”  

 

Orações subordinadas (confusão com os complementizadores)

[17]“ Um buquê chegou na casa da Rebeca que (e.../quando...)

        a campainha tocou.”

[18]“ Valdo foi atender que (e.../então...) encontrou um buquê

       na porta.”

[19]mas é díficil a estudar porém não conseguido estuda...”

1-       Supressão de consoantes pós-vocálicas em fim de palavras

[20]“ Rebeca vamos monta as flores dentro da água.”

[21] “– me desculpa, eu sonho quero namorar com ele, porque eu te amor com ele.”  

6.1- Confusão entre vocábulos que aparentemente apresentam a mesma raiz 

[22]“ Rebeca muita curtina (curtindo com...) Mãe!”

[23]“ Eu gosto de fazenda (fazer) o futuro de faculdade,” 

 

Uso inadequado de classe gramatical

[24]“ Eu Quero o futuro na casal.”(Eu quero casar no futuro)

[25]“ Rapaz honesto e coragem (corajoso)

[26]“ O rei dos dragões alivio (aliviado) e cansado.”

 

Concordância de gênero

[27]“ Mãe diz: Buquê é linda!” 

[28]“ Valdo estava curiosa...” 

[29]“...eu estou muita feliz.”

 

Características do discurso

Preferência pela ordenação, muitas vezes
com coordenadas assindéticas (conforme o modelo pragmático)

[1] “Carina viu o lindo buquê que recebeu do namorado e ela

        não sabia que era o namorado dela. E a irmã de Carina    

        achou o cartãozinho dentro no buquê, estava escrito em

        língua de França e a irmã sabe falar em francês e leu p/

       Carina:”

[2]“Historia muito forte sofrer muito sentir ruim problema mãe.”

 

Orações sem adjuntos adnominais (como em língua de sinais)

[3]“ Mas eu não culpa porque ela amiga mandou junto fora

      amiga brincar.”

[4] “ Rebeca grita chama Mãe!”

[5]“ pega carta ler papel,”

[6]“ Ela muita distraída, ouvir susto muita grito."

 

Elipse do verbo de ligação

[7]Mãe (foi) correndo viu e do buquê é linda,”

[8]mas (estava) escrito língua do francês, eu não entinde.”

[9]“Agora (estou) feliz !!!”

 

Fluxo das idéias, sem articulação. Não há estrutura

[10]“ Mãe minha criança

        Muito de brincar. A Mãe veio correndo da cozinha. Você é

        colha cuidado pessoa amiga vida. Mãe! Ela gritou brincar

        preocupada nervosa.”

Neste estudo não procedi a uma análise quantitativa de um corpus estatisticamente relevante, analisando-o e chegando a conclusões seguras sobre como um surdo aprende o português ou sobre o porquê comete estes ou aqueles erros gramaticais. Antes, meu objetivo ao identificar e classificar as dificuldades mais comuns e as características gerais do discurso foi capacitar-me para ajudá-los, de forma mais eficaz, a compreender as estruturas da língua portuguesa e conseguir ler e escrever a contento.

Reconheço que para ensinar qualquer coisa, especialmente uma língua sonora a deficientes auditivos, é imprescindível despirmo-nos dos preconceitos e imediatamente compreender que eles são capazes, respeitando suas limitações, que são físicas, não intelectuais. Trabalhando com isto em mente, colhi resultados fantásticos – alunos estimulados, determinados a continuar a aprender o português e suas nuanças, dispostos a conhecer novos mundos através da leitura e, principalmente, com a auto-estima elevada, conscientes de que são indivíduos produtores de sentido.

 

Referências bibliográficas

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

CARDOSO, S.H.B. O conceito de linguagem e nova prática pedagógica. In: O discurso e o ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

CHIAPPINI, Lígia. Reinvenção da Catedral: língua, literatura, comunicação: novas tecnologias e políticas do ensino. São Paulo: Cortez, 2005.

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

HENRIQUES, Claudio Cezar. Sintaxe portuguesa: para a linguagem culta contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 2003.

POSSENTI, Sírio. Porque (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004.

SCHERRE, Maria Marta Pereira. A norma do imperativo e o imperativo da norma: uma reflexão sociolingüística sobre o conceito de erro. In: Doa-se lindos filhotes de poodle: variação lingüística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

ZILBERMAN, Regina. Sociedade e democratização da leitura. In: BARZOTTO, V. Estado de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999.


 

[1] Agradeço especialmente ao professor Sebastião Josué Votre pela paciência e colaboração.