Gênero de discurso em seleção para docentes
de língua estrangeira

Maria Cristina Giorgi (CEFET/RJ)

 

Introdução

Nesse artigo visamos a refletir sobre a relevância do conceito de gênero de discurso em pesquisa de mestrado realizada na UERJ entre abril de 2004 e dezembro de 2005. Nesta, buscamos, a partir de uma visão dialógica de linguagem, identificar o perfil de professor de língua estrangeira construído discursivamente nos processos de seleção para o ingresso na rede pública estadual de ensino do Rio de Janeiro, bem como distinguir quais saberes são considerados importantes para a atuação docente. Com relação à linguagem, seguimos as propostas da Análise de discurso de base enunciativa (Maingueneau, 2001) e as noções de gênero de discurso e polifonia (Bakhtin, 1979). No que se refere a uma melhor compreensão do trabalho do professor, valemo-nos de conceitos advindos das Ciências do Trabalho (Lacoste, 1995, Nouroudine, 2002). Os resultados alcançados permitem-nos, com efeito, não apenas aprofundar os debates sobre o instrumento “seleção de docentes” a partir da noção de gênero de discurso, mas também identificar que perfil de professor de língua é construído discursivamente nesse dispositivo privilegiado de interação verbal entre candidatos e banca examinadora representado pela seleção para o magistério. Acreditamos que, abordando esse tema a partir da perspectiva do gênero de discurso, estaremos contribuindo para discussões sobre o processo de seleção de docentes, aqui compreendido como uma prática discursiva circunscrita a um determinado contexto sócio-histórico.

Inicialmente, nosso corpus seria constituído por provas de língua estrangeira realizadas pelo Estado ou Município do Rio de Janeiro. Devido à dificuldade em obter tais provas (visto que as secretarias municipal e estadual não as disponibilizam e, na maioria dos casos, as incineram, conforme Vivoni, 2003), optei por candidatar-me ao concurso de seleção para docente I, realizado pela SEE/RJ em dezembro de 2004, como forma segura de obter os documentos que o constituiriam. A partir dessa experiência como candidata, comecei a compreender o processo de seleção como um todo, e, dessa forma, percebi que a análise isolada da prova, ainda que relevante, seria apenas um dos elos da cadeia de um processo particular que, diferentemente daqueles que selecionam professores para a rede particular, está vinculado a características específicas e restritas à seleção de um servidor público. Assim, não querendo isolar a prova de um conjunto maior ao qual ela necessariamente está vinculada, optei por enfocar as provas de língua estrangeira, o Edital e o Manual do Candidato de forma ampla, privilegiando diálogo existente entre eles.

A opção por trabalhar com os três documentos constituintes do processo, estendeu a importância do conceito de gênero de discurso, uma vez que, conforme Bakhtin, é o gênero quem garante a comunicação aos falantes de uma língua, pois permite uma economia cognitiva entre os interlocutores. Conhecer bem uma língua e ser capaz de dominá-la em determinados contextos não garante ao falante comunicar-se em todas as esferas. Por outro lado, através do reconhecimento de características particulares que distinguem um gênero de outro, o leitor estabelece as bases do seu entendimento, pois quando acomodamos nossa fala em determinado gênero, fornecemos pistas por meio das quais nosso interlocutor pode se situar dentro do contexto da comunicação, prevendo suas características e finalidades.

Tal conceito é em nossa opinião essencial, visto que saber distinguir e identificar as características que costumam apresentar-se em cada gênero discursivo faz com que, em nosso caso, o candidato esteja apto a reconhecer mais rapidamente possíveis marcas que facilitem a compreensão tanto do edital, quanto do manual e das provas, pois as características genéricas são fundamentais, já que favorecem o reconhecimento de importantes pistas discursivas – temáticas, composicionais ou de estilo – que funcionam como apoio à remissão a outros textos.

Dessa forma, em nossa visão, o diálogo entre os três documentos – prova, Manual do Candidato, edital – permite-nos melhor compreender a “lógica” da organização do concurso, pois todos eles contribuem para a materialização do perfil de professor de línguas almejado pela rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro.

Buscamos entender, aqui, como estes três documentos constitutivos dos concursos públicos [1] relacionam-se entre si, quais suas funções, por que existem, quais relações se estabelecem entre eles, para melhor compreender como se instituem as relações de saber / poder que os atravessam e retratam o que se valoriza no ensino de língua estrangeira em nosso estado, e perfilam o professor que se espera nas salas de aula.

Os aportes teóricos de Bakhtin são fundamentais. O conceito de gênero (Bakhtin, 1979) é essencial na forma do estabelecimento do diálogo enunciador / co-enunciador presente nos três documentos ora analisados. Distinguir e identificar as características que costumam apresentar-se em cada gênero discursivo faz com que, em nosso caso, o candidato esteja apto a reconhecer mais rapidamente possíveis marcas que facilitem a compreensão dos enunciados. Queremos com isso dizer que edital, manual e prova apresentam-se como diferentes estruturas composicionais, estilos e temas, sendo reconhecidos como enunciados que pertencem a gêneros diferentes. Em resumo, consideramos que divisar as características genéricas permite uma economia cognitiva entre os interlocutores, já que estas favorecem o reconhecimento de importantes pistas discursivas – temáticas, composicionais ou de estilo – que funcionam como apoio à remissão a outros textos.

 

Do Edital

No que tange às características genéricas do edital, pode-se afirmar que, de forma análoga ao que ocorre em uma lei, (Arouca, 2003) este documento constitutivo do concurso público, que prescreve regras gerais e específicas para sua realização, pressupõe a homogeneidade do lugar do qual se enuncia, o lugar da lei. Mesmo que não nos proponhamos a fazer uma análise comparativa entre editais diversos, nosso conhecimento de mundo permite-nos asseverar que estes constituem um gênero estável, onde “alguns espaços” são reformulados e outros se mantêm os mesmos, como nos casos de requerimentos que já vêm “prontos” e temos apenas que preencher os espaços em branco, sem modificar o que está previamente determinado. Embora não tenhamos obtido informações oficiais sobre a elaboração do edital foco deste trabalho, fazemos a hipótese de que o mesmo é anterior ao contato entre a SEE e a FESP, uma vez que, por ser um gênero que não permite muitas mudanças - pois segue formas rigorosamente oficiais, com alto grau de estabilidade - não seria “criado” a cada concurso, mas apenas “reelaborado” a partir de um modelo padronizado visando a atender a exigências jurídicas, no qual somente se “preenchem lacunas”.

 

Do Manual do Candidato

Definido nos dicionários como “obra de formato pequeno que contém noções ou diretrizes relativas a uma disciplina, técnica, programa escolar etc.” ou “livro que orienta a execução ou o aperfeiçoamento de determinada tarefa; guia prático” (Houaiss, 2001), o manual, dentre o conjunto dos três documentos que compõem a seleção da rede estadual, é o único que não é condição necessária para a realização do concurso. Todavia, apesar de não ser um documento oficial como o edital – previsto constitucionalmente – integra uma grande parte dos concursos, principalmente os que pressupõem grande número de candidatos, como concursos de vestibular, de seleção docente para Estado e Município, dentre outros.[2]

No contexto de nosso concurso, o Manual do Candidato está previsto no edital, fazendo-se constitutivo do mesmo. Este, portanto, é, – ou deveria ser – distribuído aos candidatos no ato da inscrição.[3]

Num primeiro momento, chamou-nos a atenção o fato de o manual repetir uma grande parte das informações constantes do edital como se o primeiro fosse uma “tradução” do segundo, inclusive reproduzindo integralmente o Anexo II. Entretanto, ainda que estas se repitam, parece-nos possível identificar como co-enunciador o candidato que já se inscreveu no concurso, pois não há mais referências ao momento anterior à inscrição.

O manual organiza-se nos itens:

                           I.      Confirmação de inscrição

                         II.      Provas

                       III.      Recursos

                       IV.      Resultado final e classificação

                         V.      Informações complementares

                       VI.      Datas Previstas

                     VII.      Conteúdos programáticos (que inclui sugestões bibliográficas)

Anexo II

Verificamos que estes itens têm a função de organizar as informações, servindo como um roteiro de instruções, “um passo-a-passo” daquilo que o futuro professor precisa para participar do concurso e embora o manual, muitas vezes, reproduza o edital, há nele um menor número de informações que enfocam a parte mais prática do concurso, o que marca a relação com o candidato, aqui mais próxima que a do edital.

A partir dessa observação, cabem algumas reflexões. Em primeiro lugar, acreditamos que essa reescritura do edital, por meio do manual, outorga ao primeiro um poder maior, confirmando-o num patamar de único poder normatizador. Traduz-se o “mundo jurídico” para o “mundo pragmático”.

Em segundo lugar, se o manual reformula algumas informações constantes do edital, isto nos leva a supor que é porque o último não está direcionado ao professor, por possuir informações de cunho jurídico que não dizem respeito ao professor. Em sendo assim, identificamos o candidato como co-enunciador do manual e não do edital, co-enunciador este que precisa de uma outra linguagem que não a jurídica.

 

Das Provas

No que tange especificamente à analise das provas, partindo das propostas de Bakhtin (1979), para quem o gênero está relacionado a tipos de interação inscritos nos costumes de um determinado grupo e que, ao serem acionados, funcionam como referências de sentido e que todo gênero apresenta coerções, práticas aceitas ou não na produção e no momento da enunciação, pode-se afirmar que estas constituem um gênero que pressupõe normas a serem seguidas, da mesma forma que o edital e o manual.

Contudo, é fundamental considerar a diversidade inscrita dentro de tal gênero, pois, embora possuam características em comum, as diferenças entre as provas de concurso e as provas de avaliação escolar, por exemplo, são claras; afinal, não compartilham dos mesmos propósitos. Nas provas do CP em questão, a interação banca / candidato está restrita ao texto escrito, o que não acontece, em geral no âmbito da sala de aula, onde o aluno pode interagir com o professor para, por exemplo, o “tirar dúvidas”. Além disso, as avaliações possuem caráter e finalidades diferentes: na escola alternam-se avaliações formativas, diagnósticas e somativas, enquanto que nos concursos as avaliações são “seletivas”.

Acrescentamos que a aptidão para produzir e compreender certos enunciados é adquirida pela própria experiência. A elaboração de provas é um saber que faz parte dos conhecimentos didático-pedagógicos, o que, por sua vez, exige um processo de aprendizagem específico. Enquanto alunos, realizamos provas ao longo de todo processo de aprendizagem, porém isso não garante que estejamos aptos a elaborá-las, visto que as experiências são de natureza diferente.

Por ser uma proposta de avaliação que foge à interação face-a-face, em nosso corpus, o diálogo banca / candidato resume-se a uma dada possibilidade de produção discursiva, que não permite nenhum tipo de interação posterior, seja para esclarecer dúvidas, para retificar alguma má formulação de questão, ou para modificar as possibilidades de respostas a partir do que é dito pelos alunos. E, como professores, sabemos que as reformulações são constitutivas não só do gênero prova, como também da própria atividade de trabalho do professor.

Outra diferença que deve ser ressaltada é o fato de que a prova aplicada na sala de aula tem um interlocutor que é conhecido pelos alunos, enquanto as provas de concurso não.

A prova de Conhecimentos Específicos em língua espanhola é composta por dois textos e trinta e cinco questões de múltipla escolha. Cabe aqui acrescentar que, em nossa opinião, a prova de múltipla escolha deveria ser uma das etapas da seleção do profissional professor, uma vez que esta pode, muitas vezes, limitar a interação enunciador / co-enunciador. Não é permitido ao candidato fazer conhecer suas crenças, sua visão de mundo, visto que existem quatro opções consideradas pela banca, dentre as quais ele deve “escolher uma correta”. Esta pode não representar o seu próprio ponto de vista. Muitas vezes até, devemos fazer uma escolha que contraria nossa compreensão sobre a questão ou nossa visão daquilo que deve ou não ser ensinado, tendo em vista que visamos à aprovação. É necessário, portanto, “comungar com a opinião X, da qual discordo, para ser aprovado”. Entendemos que, numa segunda etapa, a prova discursiva, mesmo com um padrão de respostas a ser seguido, permite que o candidato responda a partir daquilo que acredita, e esse pode emitir juízos de valor, críticas, apontar caminhos, enfim, mostrar como compreende a relação ensino-aprendizagem.

Notamos que não há nenhuma questão que exija conhecimento, por parte do candidato, sobre gênero discursivo, isto é, o candidato não precisa demonstrar nenhum conhecimento sobre tal assunto, já que não há perguntas que abordem os textos partir de suas características genéricas.

A nosso ver, com base em Bakhtin, a abordagem de tal conceito torna-se relevante visto que, como já foi dito, é através do reconhecimento das características particulares que distinguem um gênero de outro que o leitor estabelece as bases do seu entendimento, pois, ao enquadrarmos nossa fala num gênero determinado, os coenunciadores compartilham conhecimentos que permitem situá-los dentro do contexto da comunicação. Em sendo assim, identificar as características recorrentes em cada gênero discursivo faz com que, em nosso caso, o candidato esteja apto a reconhecer mais rapidamente possíveis marcas que facilitem a compreensão tanto do edital, quanto do manual e das provas, pois as características genéricas são fundamentais, já que favorecem o reconhecimento de importantes pistas discursivas que funcionam como apoio à remissão a outros textos.

 

Considerações finais

Concluímos nossa reflexão, lançando mão de Bakhtin (1979). O autor afirmar que os enunciados e o tipo a que pertencem - isto é, os gêneros de discurso - são “as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua.”. Portanto, o conceito de gênero está vinculado a tipos de interação relacionados a costumes de um determinado grupo que, ao serem acionados, funcionam como referências de sentido. São criados a partir de determinada(s) comunidade(s) que os mantêm ou não, de acordo com suas necessidades. Além disso, o gênero pode transgredir, subverter regras de estruturação, possibilitando outras formas de interpretação e de organização, que lhe permitem renovar-se.

Em sendo assim, se, como afirma Bakhtin, os gêneros podem ser mantidos ou não de acordo com as necessidades de comunidades específicas, além de possuírem a capacidade transgredir regras, reconstruindo-se e renovando-se, por que as provas, avaliações, processos de seleção ainda que tão polêmicos e discutidos, se mantêm como práticas institucionalizadas com um lugar aparentemente intocável? Compreendemos, então, que se os discursos são um encontro de uma produção textual e, ao mesmo tempo, produção de uma comunidade que sustenta esses discursos, como propõem Rocha, Daher e Sant’Anna (2002), esses documentos resultam de um diálogo anterior com a sociedade, que permite que eles se constituam da forma que são.

 

Referências bibliográFicas

AROUCA, M. Do discurso à Educação no Brasil: uma interlocução com a Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96. São Paulo, 2003. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

BAKHTIN, M. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

––––––. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.

––––––. Problemas de la poética de Dostoievski. Madrid: Fondo de cultura económica de España, 2004.

DAHER, M. & SANT’ANNA, V. “Reflexiones acerca de la noción de competencia lectora: aportes enunciativos e interculturales”. In: GUBERMAN, M. (org.) 20 años de APEERJ - El español: un idioma universal – 1981-2001. Rio de Janeiro: APEERJ. 2002, p. 54-67.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: [s/e.?], 1987.

PARÂMETROS Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: Secretaria de Educação Média e Tecnológica/MEC, 1999.

ROCHA, D., DAHER, M. & SANT’ANNA, V. (). Produtividade das investigações dos discursos sobre o trabalho. In: SOUZA-E-SILVA, M. C. & FAÏTA, D. Linguagem e trabalho: construção de objetos de análise no Brasil e na França. São Paulo, Cortez, 2002, p. 77-91.

VIVONI, R. Interlocução seletiva: análise de provas para seleção de docentes – A construção do perfil do profissional professor. Rio de Janeiro, 2003. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


 

[1] Apenas o Manual não se faz obrigatório em todo concurso público, mas parece-nos ser possível afirmar que este integra aqueles que abarcam um grande número de candidatos.

[2] Lembramos que os concursos de seleção docente promovidos por universidades públicas, por exemplo, não costumam fornecer um manual.

[3] No local onde fiz as inscrições, ao solicitar o exemplar do manual que me cabia, fui informada de que este “não existia” e que seria preciso “entrar na Internet” para receber as instruções. Alguns dias depois consegui uma cópia com um colega que recebeu seu exemplar ao se inscrever em outro local, o que demonstra uma não garantia de informações comuns a todos os candidatos.