RELATOS DE PROFESSORES DE ESPANHOL LE:
RECONSTRUÇÃO DE UMA TRAJETÓRIA DE ENSINO

Maria Cecília do Nascimento Bevilaqua (UERJ)

 

Apresentação

O presente estudo vincula-se ao projeto intitulado Relatos de professores universitários de espanhol / LE que atuam no RJ: uma análise lingüístico-discursiva, desenvolvido no âmbito de nossa recente atuação como bolsista de Iniciação Científica (IC)[1]. Privilegia, dessa forma, o enfoque da Análise do Discurso de base enunciativa na abordagem da temática do trabalho docente, tendo em vista o propósito de contribuir para as reflexões voltadas para as articulações entre práticas de linguagem e mundo do trabalho. Portanto, parece-nos necessário comentar a proposta do projeto anterior, cujos desdobramentos apontaram para a definição deste artigo.

O projeto por nós desenvolvido orientou-se pelo propósito de alcançar uma maior visibilidade sobre a trajetória do ensino de espanhol no Rio de Janeiro, marcada por ausências e retomadas no currículo escolar[2]. Diante da falta de conservação de registros sobre essa trajetória, a via que seguimos foi a do resgate e análise de relatos produzidos em situação de entrevista por professores universitários do idioma que atuam/atuaram no estado, cuja formação ocorreu nas décadas de 60, 70 e 80, respectivamente.

Nesse enfoque, voltamos nosso olhar para processos avaliativos (Kerbrat-Oreccioni, 1980) que constituem opiniões e juízos de valor atribuídos ao ensino de espanhol em referências a práticas docentes inscritas em diferentes contextos históricos. Buscamos, assim, melhor compreender tanto aspectos que marcaram esse ensino no passado como questões que incidem na atual prática docente do idioma, que dialoga com um contexto histórico anterior. A análise desses discursos possibilitou-nos verificar, dentre outros aspectos, referências a contextos de formação em que não havia uma preocupação com a preparação dos futuros professores para atuar nas escolas.

Em um âmbito maior, a realização desse estudo permitiu-nos observar como aspectos de trajetórias pessoais apontam para questões referentes à memória do ensino de espanhol no Rio de Janeiro. Podemos, afirmar, nesse sentido, que o acesso a relatos de professores acerca de seu próprio percurso profissional, possibilitou-nos o resgate de certa dimensão da historicidade desse trabalho (Daher, Rocha e Sant’ Anna, 2002), o que envolve, em grande medida, a verificação de elementos que atestam a complexidade constitutiva da atividade docente da área.

Cabe ressaltar que a opção pela utilização da entrevista como instrumento de acesso a discursos relativos a trajetórias profissionais considera a necessidade que se destaca cada vez mais no campo da educação de aceder a outras informações importantes no passado, além das apresentadas em livros didáticos e em textos oficiais. Assim, ao voltarmos nosso olhar para discursos produzidos por professores universitários do idioma, privilegiamos o resgate de uma memória de ensino construída discursivamente, sob a perspectiva dos próprios sujeitos que atuaram nesse percurso.

A partir dessas considerações, este artigo busca explicitar o caminho teórico-metodológico seguido para a construção do roteiro de entrevista, o qual norteou a realização das interações estabelecidas entre pesquisador e entrevistados. Assim, na próxima seção, apresentamos algumas contribuições teóricas compreendidas como fundamentais para a realização de nossa proposta de pesquisa.

 

Reflexões teóricas

O enfoque da Análise do Discurso de base enunciativa (AD) orienta nossa compreensão da língua relacionada ao seu uso, ou seja, como fenômeno social. Nesse campo de estudos, não se considera o discurso como estrutura transparente que simplesmente representa uma realidade, mas como um espaço de produção de sentidos que ultrapassa os limites da matéria lingüística.

Segundo a AD, um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada (Maingueneau 2001, p.85). A linguagem, sob esse ponto de vista, caracteriza-se por meio da interação entre indivíduos em um momento concreto de enunciação que deve ser compreendido em relação ao contexto social mais amplo em que se insere. Segundo Orlandi:

Diferentemente da análise do conteúdo, a AD considera que a linguagem não é transparente. Desse modo ela não procura atravessar o texto e procurar um sentido do outro lado. A questão que se coloca é: como este texto significa? (2001, pp17-18).

Entender a comunicação verbal como interação significa considerar o discurso como resultado de um processo de constituição de sentidos que nunca é predeterminado, já que se constitui a partir da interatividade entre os coenunciadores (eu –tu) em um momento (agora) e lugar (aqui) específicos. O enunciado, desse modo, caracteriza um texto único composto por uma progressão de marcas lingüísticas. A análise dessas marcas, sob a perspectiva da AD, se fundamenta na dualidade da linguagem, ou seja, no fato de que esta é formal, mas, ao mesmo tempo, se encontra atravessada por embates subjetivos e sociais. (Maingueneau, 2001).

Além do diálogo entre os coenunciadores, em nosso caso, entre pesquisador e informante, é necessário considerar o diálogo que se estabelece entre diferentes discursos no interior do enunciado. Nesse sentido, aproximamo-nos às reflexões de Bakhtin, de grande relevância para os estudos da AD, que apontam para o caráter duplamente dialógico do enunciado. O autor ressalta o fato de que o ‘eu’ sempre situa seus discursos com relação a um ‘outro’, este compreendido tanto como o co-enunciador, como outros discursos. De acordo com Bakhtin,

Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. (BAKHTIN, 2003, p. 297).

Sob esse ponto de vista, compreendemos que os enunciados dos professores se caracterizam por meio de relações dialógicas – dialogam com enunciados anteriores ou futuros – indicando posicionamentos com relação a práticas docentes de língua espanhola em distintos contextos históricos. Esses discursos não se constroem de forma isolada, mas a partir de outros discursos, caracterizando textos singulares diretamente relacionados a determinado contexto de interação verbal, nesse caso específico, ao contexto de entrevista.

Bakhtin (1992) ressalta a relação dialética existente entre língua e sociedade e afirma ser o enunciado um fenômeno sociológico. A consideração de elementos situados no âmbito extra-lingüístico inaugura uma perspectiva diferenciada às reflexões sobre a linguagem, possibilitando a verificação do uso da língua de acordo com diferentes esferas da atividade humana. Para o autor, os diferentes âmbitos da comunicação verbal, com suas condições e fins específicos, dão origem aos gêneros do discurso. Assim,

A riqueza e a variedade dos gêneros de discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório dos gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. (BAKHTIN, 2003, p.26).

Observa-se, desse modo, que todas as produções verbais se inserem em um determinado gênero de discurso que, por sua vez, se constitui de acordo com os costumes da sociedade. Assim, conhecer as características de determinado gênero é um aspecto fundamental na comunicação verbal, uma vez que os discursos sempre se orientam a partir de critérios construídos sócio-historicamente, ainda que a enunciação seja um fenômeno singular.

No entanto, não se deve conceber o gênero como uma forma fixa, visto que pode subverter regras de estruturação textual, inclusive estabelecendo uma dimensão intergenérica por meio do diálogo com outros gêneros. O gênero pode, assim, reorganizar-se, criando novas interpretações de acordo com as condições oferecidas pelo contexto do qual se enuncia. (Daher e Sant’anna 2002, p.57).

É importante considerar, também, a distinção proposta por Bakhtin entre gêneros primários e secundários. Em sua categorização, considera os primeiros como formas simples de enunciados que se constituem na interação verbal cotidiana e os segundos como estruturas relacionadas às circunstâncias de comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída.

Compreendemos o discurso que se produz em situação de entrevista, no âmbito de pesquisa científica, como integrante do gênero secundário, ou seja, como forma específica de enunciado resultante da interação entre pesquisador e entrevistado. Essas práticas discursivas, ainda que apresentem relativa flexibilidade estrutural, devido ao fato de que se materializam sob a forma de conversação, são de ordem diferente da simples conversa informal, já que se caracterizam a partir de propósitos anteriormente definidos pelo pesquisador, os quais dialogam com os objetivos mais amplos da pesquisa que as sustém.

Nesse sentido, aproximamo-nos às reflexões de Rocha, Daher e Sant’Anna (2004) sobre a entrevista em contexto de pesquisa acadêmica. Os autores ressaltam a complexidade desses relatos como gênero discursivo – que se constituem a partir de objetivos específicos -, distanciando-se da concepção de entrevista como uma simples ferramenta ou técnica que permite ao pesquisador aceder a uma “verdade”. Ao destacar a distância entre o plano empírico e o discursivo, descarta-se a idéia da entrevista como mera estratégia de obtenção de informações que se consideram de acordo com critérios de verdade.

Com isso, nosso olhar sobre os relatos não se apóia em critérios de verdade ou falsidade com relação às informações apresentadas. Antes, nosso interesse ao ouvir esses sujeitos se define pela necessidade de melhor compreender aspectos da trajetória do ensino de espanhol sob o ponto de vista do professor/trabalhador entrevistado, cuja experiência, conflitos e valores influenciam a forma de ver e falar sobre o passado e sobre o presente.

Compreendemos que a realização de entrevistas com docentes, no âmbito desta pesquisa, permite a criação de novas práticas discursivas sobre a atividade de trabalho desses professores. A concepção desses relatos como enunciados nos leva a considerar as implicações do pesquisador na forma como se concretiza a comunicação verbal, já que é a partir da interação entre os sujeitos que se constituem os sentidos no discurso. Observamos, assim, que o enunciado produzido por esses interlocutores se insere em um determinado contexto situacional e social que estabelece a liberdade e as restrições com relação ao que se diz.

Considerando que sempre olhamos o passado a partir de determinado lugar do presente, cabe destacar a relação estreita entre a narrativa e o discurso no gênero entrevista. Nesses enunciados, observamos que as questões do contexto interferem na forma como os entrevistados falam sobre o passado, daí a relação de dependência da narrativa com relação ao discurso.

A partir dessas considerações, partimos para a construção do instrumento de entrevista, cujos passos metodológicos detalhamos a seguir.

 

A ELABORAÇÃO DO DISPOSITIVO DE ENTREVISTA

Para a elaboração do roteiro de entrevista, seguimos a proposta metodológica de Daher (1998), que considera a construção de blocos temáticos nos quais se organizam perguntas definidas a partir de objetivos, problemas e de hipóteses que tem o pesquisador antes da realização das entrevistas.

A partir do objetivo primeiro de recuperar informações relacionadas à memória do ensino de espanhol no Rio de Janeiro, no que se refere à formação de docentes para a área, definimos e elaboramos os blocos de perguntas: “Formação do professor”, “O ensino de espanhol no passado” e “O ensino de espanhol hoje”, buscando, com isso, responder às seguintes perguntas:

·          Como ocorre a caracterização do ensino do idioma no passado e no presente?

·          Que papel cumprem as referências do passado na definição da prática desses professores?

Pretendemos, assim, verificar como o professor universitário de espanhol fala, do presente, sobre sua trajetória profissional, comentando a organização das aulas, os objetivos do ensino, a principais dificuldades nesse estudo etc. Nosso interesse por melhor compreender o trabalho desse professor nos motivou a elaborar questões referentes à sua formação e à sua atuação, considerando a importância desses elementos em diferentes momentos de sua trajetória profissional, de modo a visualizar mudanças e permanências na perspectiva de ensino do idioma.

Assim, com o bloco denominado “Formação do professor”, objetivamos elaborar perguntas que garantissem informações sobre os fatores que motivaram o entrevistado a estudar espanhol e sobre como se caracterizava o ensino do idioma no contexto de sua formação. As perguntas são as seguintes: “De onde surgiu seu interesse pelo espanhol?” ; “Como foi sua formação na graduação?”.

No que se refere aos blocos intitulados “O ensino de espanhol no passado” e “O ensino de espanhol hoje”, elaboramos questões que motivassem os entrevistados a falar sobre a trajetória de sua atuação como professores de espanhol. Com isso, pretendíamos obter informações sobre o ensino de espanhol, sob a perspectiva do professor, envolvendo um passado recente e o momento atual. Assim, o bloco “O ensino de espanhol no passado” compreende as perguntas: “Como era o ensino de espanhol no início de sua atuação no magistério?”; “Que mudanças ocorreram ao longo do tempo?”.. Já no bloco “O ensino de espanhol hoje”, perguntamos: “Como é a sua experiência hoje?”.

Após a organização do instrumento, realizamos uma entrevista piloto. Cabe destacar que os resultados alcançados permitiram a revisão e a reformulação do roteiro de entrevista[3], por meio da confrontação entre as hipóteses construídas e as respostas apresentadas no relato. Com isso, realizamos as demais entrevistas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, propomos uma discussão acerca de aspectos teórico-metodológicos que nortearam a realização da pesquisa por nós desenvolvida, a qual propôs uma reflexão sobre aspectos da trajetória do ensino de espanhol no Rio de Janeiro via análise de relatos de professores.

Para a consecução do objetivo de resgatar e analisar esses enunciados, consideramos o interesse de contribuir para a construção de novos conhecimentos sobre uma memória pouco conhecida e investigada. Desse modo, a elaboração de um roteiro de entrevista se insere na proposta de provocar a criação de enunciados a partir da interação entre pesquisador e entrevistado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKTHIN, Mikhail (1979). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992,2003.

DAHER, M. Del C.F.G. Quando informar é gerenciar conflitos: a entrevista como estratégia metodológica. In: The ESPecialist, vol.19, nº especial. São Paulo: CEPRIL/EDUC, 1998, pp. 287-303.

KERBRAT-ORECCHIONI, C. L’enonciation. Paris, Armand Colin, 1980.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. São Paulo: Pontes, 2001.

ROCHA, D.; DAHER, D. C.; SANT'ANNA, V.L. A. A entrevista em situação de pesquisa acadêmica: reflexões numa perspectiva discursiva. In: Revista Polifonia 8. Cuiabá: EdUFMT, 2004, pp. 161-180.

ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas/ SP: Pontes, 2001.

 


 

ANEXO

Roteiro de Entrevista

 

OBJETIVOS

PROBLEMAS

HIPÓTESES

PERGUNTA

FORMAÇÃO

 

 - Identificar aspectos do ensino no contexto de formação do entrevistado.

 - Verificar concepções a respeito de práticas educativas.

-A relação entre o espanhol no contexto brasileiro e as razões que influenciaram a opção do entrevistado por estudar o idioma.

 -A relação entre aspectos da formação do entrevistado e questões relativas ao contexto em que se situa.

- Os entrevistados apontariam diferentes motivos que influenciaram a opção pelo estudo da língua espanhola.

- Os entrevistados caracterizariam diferentes formações, a partir de referências a teorias e práticas.

 1     -De onde surgiu seu interesse pelo espanhol?

 2     -Fale sobre como foi sua formação na graduação.

O ENSINO NO PASSADO

 - Identificar a forma como se configurava o ensino de E/LE no passado.

 - Verificar concepções a respeito de práticas educativas.

 -As semelhanças e diferenças entre o ensino de espanhol no contexto de formação e no contexto de atuação profissional do entrevistado

- Os entrevistados indicariam aspectos que aproximam o ensino do idioma no contexto de sua atuação como professor ao ensino no contexto de sua formação, além de aspectos que distanciam esses dois momentos.

3     -Como era o ensino de espanhol no início de sua atuação no magistério?

 4     -Que mudanças ocorreram ao longo do tempo?

O ENSINO HOJE

-Verificar continuidades e rupturas na trajetória do ensino do idioma.

 - Verificar concepções a respeito de práticas educativas.

- A relação entre a trajetória do ensino do idioma e a configuração atual desse ensino.

- Os entrevistados caracterizariam o ensino de espanhol através do diálogo com um contexto histórico anterior.

5     -E hoje, como é sua experiência?/

 6     -Como é o ensino de espanhol hoje?

 


 

[1] Remetemo-nos aqui à nossa participação no projeto intitulado Práticas de Linguagem e mundo do trabalho: exames de seleção profissional (Daher: prociência/UERJ/FAPERJ, 2005-2008).

[2] O ensino de espanhol no Brasil apresenta uma trajetória peculiar com relação ao ensino dos demais idiomas. Seu trajeto se inicia oficialmente em 1942, quando se integra ao currículo das escolas e é interrompido em 1961, devido a mudanças na legislação educacional. No Rio de Janeiro, o idioma retorna à grade escolar no ano de 1985, quando é realizado o primeiro concurso para professor de espanhol da rede estadual.

[3] O roteiro de entrevista segue em anexo