DIES IRAE

Nestor Dockhorn

 

Em minha exposição, apresentarei o hino litúrgico DIES IRAE. Serão apresentados os seguintes itens: texto, tradução, autor e época, gênero e estrutura formal poética, problemas de grafia, aspectos morfossintáticos, aspectos do conteúdo e vocabulário.

 

Texto e tradução

 

DIES IRAE

 

TEXTO

Dies irae, dies illa,
soluet saeclum in fauilla,
teste Dauid cum Sybilla.

Quantus tremor est futurus,
quando iudex est uenturus, 
cuncta stricte discussurus.

Tuba mirum spargens sonum
per sepulchra regionum,
coget omnes ante thronum.

Mors stupebit et natura,
cum resurget creatura,
iudicanti responsura.

Liber scriptus proferetur,
in quo totum continetur
unde mundus iudicetur.



Iudex ergo cum sedebit,
quidquid latet apparebit,
nil inultum remanebit.

Quid sum miser tunc dicturus?       

Quem patronm rogaturus, 
cum uix iustus sit securus?

Rex tremendae maiestatis, 
qui saluandos saluas gratis,
salua me, fons pietatis.       

Recordare Iesu pie,
quod sum causa tuae uiae, 
ne me perdas illa die.          
                                               
Quaerens me sedisti lassus              
redemisti crucem passus    
tantus labor non sit cassus.
                                               
Iuste iudex ultionis,            
donum fac remissionis        
ante diem rationis.              
                                               
Ingemisco tanquam reus,   
culpa rubet uultus meus,    
supplicanti parce, Deus.      
                                               
Qui Mariam absoluisti,      
et latronem exaudisti,         
mihi quoque spem dedisti. 
                                               
Preces meae non sunt dignae,          
sed tu, bonus, fac benigne, 
ne perenni cremer igne.     
                                               
Inter oues locum praesta,   
et ab hoedis me sequestra, 
statuens in parte dextra.

Confutatis maledictis,
flammis acribus addictis,
uoca me cum benedictis.

Oro supplex et acclinis,
cor contritum quasi cinis,
gere curam mei finis.

 

Lacrimosa dies illa,
qua resurget ex fauilla
Iudicandus homo reus
Huic ergo parce, Deus.

Pie Iesu Domine,
dona eis requiem.

Amen.

TRADUÇÃO

Aquele dia, dia de ira,
desmanchará o mundo em quentes cinzas;
assim predisseram Davi e a Sibila.

Que terror tão grande vai ocorrer,
quando vier o juiz,
para minuciosamente tudo examinar.

Uma trombeta que espalha um som estranho
pelos sepulcros de todos os lugares,
conduzirá todos até o trono.

A morte e a natureza vão se espantar,-
quando as criaturas vão ressuscitar
para responder a quem vai julgar.

Será apresentado um livro escrito
no qual está tudo contido
por onde o mundo vai ser julgado.
[por onde o mundo possa ser julgado].


Então, quando o juiz se assentar
vai aparecer tudo o que está escondido;
nada vai ficar sem castigo.

Que é que vou dizer, pobre de mim?
Qual é o advogado que vou chamar,
se nem os justos estão seguros?

Ó rei de tremenda majestade,
que salvas sem pagamento os que devem ser salvos,
salva-me, fonte de piedade.

Lembra-te, Jesus piedoso,
que sou a causa de tuas andanças,
não me percas naquele dia.

Quando me procuravas, sentaste cansado,
sofreste a cruz para me remir,
Tanto trabalho não seja perdido.

Ó juiz justo da punição,
dá-me o dom do perdão
antes do dia do julgamento.

Estou gemendo como um réu,
o meu rosto enrubesce de culpa,
perdoa a quem pede, ó Deus.

Tu que perdoaste a Maria,
e atendeste ao assaltante,
a mim também deste esperança.

As minhas preces não são dignas,
 mas tu, que és bom, concede bondosamente,
que eu não queime no fogo eterno.

Dá-me um lugar junto às ovelhas,
afasta-me dos bodes,
colocando-me do lado direito.

Depois de rejeitados os malditos,
condenados às chamas terríveis,
chama-me com os benditos.

Peço curvado e de joelhos dobrados
com o coração esmagado como cinza,
toma conta do meu destino. 

 

Será cheio de lágrimas aquele dia,
em que ressurgirá das cinzas
o homem que deve ser julgado
Ó Deus, dá-lhe o perdão.

Senhor Jesus piedoso,
dá-lhes o descanso.

Amém.

 

Autor e Época

A maior parte dos estudiosos atribui a autoria do hino a Tomás de Celano, frade franciscano, contemporâneo de São Francisco de Assis. O hino seria, portanto, do século XIII, uma vez que Francisco de Assis morreu em 1226. Foram sugeridos outros nomes para sua autoria: São Gregório, o Grande (+604), São Bernardo de Clair- vaux (+1153), São Boaventura (+1274), Cardeal Mateus d´Acquasparta, (+1302), Inocêncio III (+1216), Cardeal Latino Orsini (+1296), Hymberto (+1277), Agustinho Biella (+1491), Felix Haemmerlein (+1457). É possível que esse último autor tenha acrescentado as três últimas estrofes do hino: realmente, elas têm uma estrutura poética diferente das outras.

 

Gênero literário e aspectos formais
do texto

O texto é um hino religioso da Igreja Católica Romana, que foi inserido no ritual da missa dos finados (in commemoratione omnium fidelium defunctorum). O termo técnico da liturgia para designá-lo é seqüência. Seu texto já aparece num missal manuscrito da época de 1253 a 1255. Esse manuscrito se encontra na Biblioteca Nazionale de Nápoles.

O ritmo é acentual; está baseado no acento da palavra e não na quantidade das sílabas. Corresponde à métrica de quatro pés troqueus (ou coreus – que seriam longa/breve). O troqueu consiste de um tempo forte e um tempo fraco. Em alguns versos, o acento do ritmo não coincide totalmente com o acento tônico: discussurus, rogaturus, ingemisco, absoluisti, lacrimosa, iudicandus.

 

Problemas de grafia

Não reproduzi a grafia do texto que encontrei. Isso, pelas seguintes razões. O texto foi escrito, provavelmente, no século XIII. Ora, nessa época, não haviam sido introduzidas as letras ramistas, que começaram a ser utilizadas a partir do século XVI, por influência de Pierre La Ramée. Nessa época, usavam-se ainda o u e o i . O problema de pronúncia é outro: tendo sido composto na Itália, por autor italiano, é provável que a pronúncia do latim já tivesse um sabor de italiano.

 

Estrutura morfossintática

A estrutura morfossintática praticamente corresponde à da variante culta.

Convém notar o uso dos particípios futuros: uenturus, futurus, respon- surus, dicturus, rogaturus. Também é empregada uma forma de verbo depo- ente: recordare.

O ablativo absoluto é empregado: teste Dauid; confutatis maledictis, flammis acribus addictis.

Nas orações temporais, aparece a conjunção cum, alternando com quando.

A forma recordare aparece seguida de quod.

Observamos que cada estrofe tem autonomia sintática. Aparecem orações subordinadas, como temporais, causais, relativas, mas não há períodos longos. A estrutura sintática é muito simples.


 

Conteúdo

Podemos dividir o hino em três partes: na primeira parte (estrofes 1 a 6) o autor apresenta uma descrição daquilo que – na visão cristã da época – será o Juízo Universal. Será um dia de ira, com a destruição do mundo, com o chamamento da trombeta que convoca os mortos para serem julgados. Haverá um livro que contém tudo e um juiz sentado em seu trono.

Na segunda parte (estrofes 7 a 17), o autor apresenta a sua situação nesse julgamento: por um lado, não pode apresentar um advogado; por outro lado, recorre à suplica. Motiva o seu pedido com várias razões: a salvação é dada gratuitamente; o réu é causa das andanças de Jesus na terra; o cansaço e os sofrimentos do juiz; a justiça do juiz; a vergonha do réu; o perdão dado a Maria e ao bandido (o bom ladrão); a benignidade do juiz; o pedido para ser posto entre as ovelhas e ser colocado no meio dos benditos; o coração contrito do réu.

Na terceira parte, o autor faz uma espécie de resumo de tudo, com um pedido, não para si, mas para o homem, em geral. A última estrofe faz um pedido para todos os defuntos.

É interessante observar que o autor mencione Davi juntamente com a Sibila. Sobre Davi, podemos dizer que no salmo 69 é feita alusão ao Livro da Vida. O profeta Daniel também faz alusão ao Livro dos Vivos e à ressurreição dos mortos (Dn, 12).

Sobre a Sibila, devemos saber que não havia uma única Sibila. A primeira pessoa que teve essa denominação chamava-se realmente Sibila e era filha do troiano Dárdano. As outras profetisas adotaram o nome de Sibila. Uma Sibila muito famosa foi a Sibila de Éritras (que alguns pensam ser a mesma de Cumas). Na Eneida há uma descrição do transe que ela costumava sofrer (Eneida, 6,42-51). Existiam os Livros Sibilinos, que foram queimados por Estilicão, no século IV d. C. Na Capela Sistina do Vaticano, a Sibila aparece ao lado dos profetas. Os Livros Sibilinos prediziam catástrofes.

 

Vocabulário

O termo saluus, usado na variante culta do latim, recebeu um significado especial na linguagem cristã e formou o verbo saluo, saluare.

O mesmo aconteceu com o termo iustus, que tem, no cristianismo, um significado especial.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, J. Dicionário mítico-etimológico da mitologia e da religião romana. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

CATHOLIC ENCYCLOPEDIA ON CD-ROM - Google.

ERNOUT, A., MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine. 4e. éd. Paris: Klincksieck, 1967.

HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Trad. Mário da Gama Cury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.